A Folha de S. Paulo desse sábado deu uma cobertura completa a Leite Derramado, o mais recente romance de Chico Buarque, cantor, compositor e escritor. Além do texto da jornalista Sylvia Colombo, o jornal trouxe duas grandes resenhas de alta envergadura, de Roberto Schwarz, uma das maiores autoridades em Machado de Assis, autor de Ao vencedor as batatas, e de Eduardo Giannetti, autor de Felicidade.
Ambos avaliaram o livro de Chico Buarque como ótimo e fizeram longas análises dos tipos, da linguagem e dos cenários, que perpassam três séculos, da chegada da família real, em 1808, até 2007. Ambos enxergaram em Leite Derramado uma sintonia com a obra de Machado de Assis, citando o romance Dom Casmurro e o conto Teoria do Medalhão.
Rubem Fonseca, como primeiro leitor do livro, antes de ir para o prelo, detestou o título e sugeriu que Chico Buarque o trocasse, mas este não acatou a dica do mestre.
Chico Buarque já vendeu 540 mil exemplares de seus três primeiros romances: Estorvo (180 mil), Benjamin (85 mil) e Budapeste (275 mil), segundo Sylvia Colombo. Para o crítico literário Wilson Bueno, essa é uma literatura de engodo, que só é aceita pelo público por causa da grande popularidade do autor como cantor e compositor.
Embora Leite Derramado seja mesmo um título horroroso, isso é o de menos, principalmente quando seu desenvolvimento tem o aval de grandes leitores, como são Schwarz e Giannetti.
No site http://www.leitederramado.com.br/, você poderá ler um texto muito bom de Leyla Perrone-Moisés e o primeiro capítulo do romance, além de informações sobre o autor e suas outras publicações.
Leia trechos das críticas publicadas na Folha de S. Paulo:
Brincalhão, mas não ingênuo
Roberto Schwarz
“‘Leite Derramado’ é um livro divertido, que se lê de um estirão. O título refere-se a um casamento estragado pelo ciúme e, indiretamente, ao curso das coisas no Brasil. Aos leitores mais atentos o romance sugere uma porção de perspectivas meio escondidas, que fazem dele uma obra ambiciosa. Os amigos de Machado de Assis notarão o paralelo com ‘Dom Casmurro’.
Entre as façanhas da narrativa está a figura de Matilde, uma garota incrivelmente desejável feita de quase nada. Quando ela entra no mar, daquele jeito dela, é ‘como se pulasse corda’. ‘Saía da igreja como quem saísse do cinema Pathé’ e circulava pela fila de pêsames ‘como se estivesse numa fila de sorveteria’. O ciúme que ela desperta no marido-narrador, Eulálio d'Assumpção (com "p", para não ser confundido com os meros Assunção), é o pivô do livro e dá margem a sequências e análises memoráveis.
Note-se, para contrabalançar a impressão de encantamento juvenil, que o narrador é um homem de cem anos, internado à força num hospital infecto. Entre gritos, vizinhos entubados e baratas andando na parede ele recorda -a 80 anos de distância- o breve casamento em que foi feliz e traído (em sua opinião). De tempos em tempos a boa lembrança ainda é capaz de transformar o macróbio acamado em ‘maior homem do mundo’, metáfora que é uma indecência alegre. Por sua vez, o feitiço irreverente de Matilde, entre modernista e patriarcal, também foge ao decoro: a esposa perturbadora não tem ginásio completo, é mãe aos 16 anos e assobia para chamar os garçons, além de ser aluna-problema do Sacré Coeur e congregada mariana."
A vida desde o fim
Eduardo Giannetti
“Farsa e profundidade. ‘Leite Derramado’ é o relato em primeira pessoa de um duplo malogro: a decadência da família Assumpção, egressa do patronato político brasileiro, e o colapso de um casamento carioca, provocado pelo misterioso sumiço da jovem esposa do narrador.
Obra de alta carpintaria literária, o quarto romance de Chico Buarque impressiona mais pela beleza e astúcia de peças isoladas -soluções felizes de linguagem espalhadas como dádivas pelo texto- do que pelo efeito conjunto do quebra-cabeça que ele nos instiga a montar. A leitura encanta e arrebata, mas o todo é menor que a soma das partes. O romance se desmancha em sopro assim que termina.
Eulálio Montenegro d'Assumpção, o narrador, tem mais de cem anos, está à beira da morte e conta sua história, entremeada de delírios, incongruências e devaneios, a partir de um leito de hospital. Ele é um elo - frágil ponto de inflexão - numa vasta linhagem de Eulálios que medrou no Brasil desde a vinda da corte portuguesa.”
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