Este poema abre o belíssimo livro Dionísio esfacelado: Quilombo dos Plamares (Editora Achiamé, 1984), de Domício Proença Filho, professor de literatura, poeta, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. A canção vertiginosa do poema sugere o ritmo dos tambores afros, a dança e o transe afro-brasileiros.
Também, sua leitura recupera os principais ícones da cultura negra, coloca na poesia, com beleza e técnica, os marcos da resistência e da dor. Mostra aquilo que deve haver em nossa consciência para não ser esquecido jamais.
Com seus versos curtos, palavras lancinantes, brusca mudança de sentido e o resgate do sentido anterior, imediatamente após, como numa dança de voltas e revoltas, gingado e negaceio, o poema perfaz o caminho da escravidão e da consciência negra.
Para falar de Dionísio, como o deus do entusiasmo, do vinho, da dança, da representação e até da dor, rechaçado e negado como foi ele, e sua relação com os poemas do livro de Proença Filho, haverá outro post, um dia. Vamos ao poema:
Dionísio Esfacelado
Porque houve Cam
o esposo bem-amado
e Eloá
porque o deserto
o verde
e os dóceis campos
da terra de Ararat
porque bantus
zulus
Congos
angolanos
minas
cafres
antigos
agomés
nagôs
gegôs
e tapas e sentys
e hauçás
porque o mar e os tumbeiros
e as parcas
porcas
no porão
a terra verde
a madeira brasa
e aqueles homens
alvos
como luas
nuas
porque rebenques
argola tronco
e asa fraturada
e grito aprisionado
e os dentes
martelados
e a cirurgia fria
dos alicates
unhas descarnadas
e o arrancar a pele
a sangue-frio
a morte entre formigas
assanhadas
a sombra de uma cruz
abençoada
por que houve ladinos
e mães pretas
e virgens
estupradas
ventre alerta
porque houve rosauras
houve isauras
e mestiças
e olhares azougados
e seios mutilados
porque havia cana
e o comércio
dos ingleses
porque houve o ferro
e o fogo e a faca
a lâmina da faca
viva e acesa
e o banzo
porque houve outrora um rei
chamado Ganga – Zumba
e o imperador
Zambi
da Tróia Negra
terra escondida
do sabiá perdido
Numância
reino
onde se repartia
e houve amor alimentando
luta e as mãos unidas
fortes
tanto sangue
porque se plantou carne
e nasceu ouro
porque se plantou gente
e nasceu seiva
de povo
e canto
porque a infante e santa e bem-amada
terra
e a semente
na encosta verde-sonho
braço de bronze ferro aço
e coração
ternura antiga
acalanto
lundus
calango
semba
porque houve a nação
negra
do Quilombo
a raça
é.
Na terra pindorama
espinho e casco
duro
e sobrecarga
e mais-valia
e senzalas
de longa anestesia
a raça
é.
Pingente
doente
sofrente
carente
mas brava
mas forte
mas filha do norte
da morte
escrava da música
folclore
e fazenda
de muitos cabrais
e festa do povo
exotismo ano novo
mulata no mapa
pivete na praça
e rei que incomoda
no olímpico estádio
os leões de casaca
e cartola
e a bola
rola
frenética
histérica
o grito
unge o mito
porque há um rei
de coroa
abstrata
e tênue
capa
de papel
cruel
entre sons de violões
e zabumbas
a socos dos pés
a cantiga migalha
nas casas de Baco
e o suor do sovaco
a escorrer sempre mais.
Silêncio, Musa!
Já não choras mais.
A raça dorme
o sabiá não canta
os dedos repartidos
mãos abertas
calos perenes
sangue arrebatado
a vida torta
pesado fardo
asfáltico
ou rural
a espera de uma porta
a veia frágil
o veio fraco,
branco.
A raça dorme
tradição de velhos ancestrais
a raça dorme
e já não sonha mais
o rei de outrora
não existe
mais
e Tróia
colina sitiada
agoniza
eterna
ao som
de velhos
Também, sua leitura recupera os principais ícones da cultura negra, coloca na poesia, com beleza e técnica, os marcos da resistência e da dor. Mostra aquilo que deve haver em nossa consciência para não ser esquecido jamais.
Com seus versos curtos, palavras lancinantes, brusca mudança de sentido e o resgate do sentido anterior, imediatamente após, como numa dança de voltas e revoltas, gingado e negaceio, o poema perfaz o caminho da escravidão e da consciência negra.
Para falar de Dionísio, como o deus do entusiasmo, do vinho, da dança, da representação e até da dor, rechaçado e negado como foi ele, e sua relação com os poemas do livro de Proença Filho, haverá outro post, um dia. Vamos ao poema:
Dionísio Esfacelado
Porque houve Cam
o esposo bem-amado
e Eloá
porque o deserto
o verde
e os dóceis campos
da terra de Ararat
porque bantus
zulus
Congos
angolanos
minas
cafres
antigos
agomés
nagôs
gegôs
e tapas e sentys
e hauçás
porque o mar e os tumbeiros
e as parcas
porcas
no porão
a terra verde
a madeira brasa
e aqueles homens
alvos
como luas
nuas
porque rebenques
argola tronco
e asa fraturada
e grito aprisionado
e os dentes
martelados
e a cirurgia fria
dos alicates
unhas descarnadas
e o arrancar a pele
a sangue-frio
a morte entre formigas
assanhadas
a sombra de uma cruz
abençoada
por que houve ladinos
e mães pretas
e virgens
estupradas
ventre alerta
porque houve rosauras
houve isauras
e mestiças
e olhares azougados
e seios mutilados
porque havia cana
e o comércio
dos ingleses
porque houve o ferro
e o fogo e a faca
a lâmina da faca
viva e acesa
e o banzo
porque houve outrora um rei
chamado Ganga – Zumba
e o imperador
Zambi
da Tróia Negra
terra escondida
do sabiá perdido
Numância
reino
onde se repartia
e houve amor alimentando
luta e as mãos unidas
fortes
tanto sangue
porque se plantou carne
e nasceu ouro
porque se plantou gente
e nasceu seiva
de povo
e canto
porque a infante e santa e bem-amada
terra
e a semente
na encosta verde-sonho
braço de bronze ferro aço
e coração
ternura antiga
acalanto
lundus
calango
semba
porque houve a nação
negra
do Quilombo
a raça
é.
Na terra pindorama
espinho e casco
duro
e sobrecarga
e mais-valia
e senzalas
de longa anestesia
a raça
é.
Pingente
doente
sofrente
carente
mas brava
mas forte
mas filha do norte
da morte
escrava da música
folclore
e fazenda
de muitos cabrais
e festa do povo
exotismo ano novo
mulata no mapa
pivete na praça
e rei que incomoda
no olímpico estádio
os leões de casaca
e cartola
e a bola
rola
frenética
histérica
o grito
unge o mito
porque há um rei
de coroa
abstrata
e tênue
capa
de papel
cruel
entre sons de violões
e zabumbas
a socos dos pés
a cantiga migalha
nas casas de Baco
e o suor do sovaco
a escorrer sempre mais.
Silêncio, Musa!
Já não choras mais.
A raça dorme
o sabiá não canta
os dedos repartidos
mãos abertas
calos perenes
sangue arrebatado
a vida torta
pesado fardo
asfáltico
ou rural
a espera de uma porta
a veia frágil
o veio fraco,
branco.
A raça dorme
tradição de velhos ancestrais
a raça dorme
e já não sonha mais
o rei de outrora
não existe
mais
e Tróia
colina sitiada
agoniza
eterna
ao som
de velhos
carnavais.
Um comentário:
me lembrei-me da "Vai passar" e "Reconvexo"...
Mas a esta altura da situação nem me etrevo-me a tentar explicar-me me. Próclise. ênclise. mesóclise.
Flaviólise.
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