Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) foi um juiz francês que viveu num dos períodos mais conturbados de seu país, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX. A Revolução Francesa quase lhe tirou a cabeça, mas não foi por isso que ele entrou para a história.
Quem o colocou lá foi seu livro A fisiologia do gosto (Companhia das Letras, 2005, 384 páginas), um tratado bem-humorado e cheio de verdades sobre a gastronomia, que o colocou na boca de personagens de cinema e nas conversas de chefs de cuisine no mundo inteiro.
Para o autor, todos os campos do conhecimento humano acabam tangenciando o universo gastronômico, desde a física, a história natural, a química, a própria culinária até o comércio e a economia política. Para falar de gastronomia, ele usa todas essas referências, e seu texto enriquece com isso.
“A influência da gastronomia se exerce em todas as classes da sociedade; pois se é ela que dirige os banquetes dos reis reunidos, também é ela que calcula o número de minutos de ebulição necessários para que um ovo fresco seja cozido ao ponto”, diz.
Sinceridade e graça
Segundo Brillat-Savarin, os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, embora os mais ricos sejam os que mais precisam deles em função de suas relações amplas dentro da sociedade, seus encontros políticos, posturas diplomáticas e reuniões de negócios. Mas são úteis também ao homem simples, pelos laços de amizade que esse conhecimento proporciona, ao saber fazer uma boa comida.
Publicado originalmente em 1825, um ano, portanto, antes de o autor falecer, A fisiologia do gosto é um livro peculiar do gênero pelo fino senso de humor de Brillat-Savarin. As definições de cada sensação ou de determinadas posturas são sinceras, mas escritas de forma graciosa.
Ele define o apetite, por exemplo, como o monitor do corpo que avisa quando a contínua perda de nutrientes ameaça parar o funcionamento orgânico: “O apetite se anuncia por um certo langor no estômago e uma leve sensação de fadiga”, comenta.
Cegos gastronômicos
Nesse ritmo de conversa e ensinamento, o autor vai pontuando a complexa engrenagem da gastronomia. Fala dos sentidos, incluindo um sexto, que ele chama de ‘genésico’ ou ‘amor físico’, cujo estímulo pela boa comida é responsável por grande parte do prazer que o homem tem ao se alimentar, chegando próximo ao prazer do orgasmo. Mas adverte que nem todos são dotados de boa língua.
A língua de alguns desafortunados, diz ele, “é mal provida de terminações nervosas destinadas a absorver e apreciar os sabores. Estes suscitam-lhes apenas uma sensação obtusa; em relação aos sabores, são como cegos em relação à luz”, finaliza.
Como exemplo de ‘cegos’ gastronômicos, Brillat-Savarin cita Napoleão Bonaparte, que “comia depressa e mal”. Neste caso, o autor demonstra aqui a vocação da gastronomia para a slow food em contraposição à fast food, que se tornou quase padrão no mundo veloz de hoje.
O livro passeia pelas dicas e receitas de como escolher um bom restaurante, os tipos de bebidas e suas combinações, fala de especialidades, da sede, da fritura, do prazer da mesa, da digestão, do sono, dos sonhos, da obesidade, da magreza, do jejum, da morte, da gastronomia clássica e até do fim do mundo.
O que não se sabe é o que ele tinha comido quando lançou sua filosofia sobre os últimos dias sobre a terra. Em todo caso, nessas reflexões, ele diz que não vale a pena imaginar grandes catástrofes sobre o mundo, porque nada nesse universo conspiraria tão grandiosamente sobre nós, pois “não valemos tamanha pompa”.
Aforismos
O autor abre seu livro com uma série de aforismos que servem como trilha rumo ao que o leitor poderá encontrar nas páginas seguintes.
1) O universo nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta.
2) Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de espírito sabe comer.
3) O destino das nações depende da maneira como elas se alimentam.
4) Dize-me o que comes e te direi quem és.
5) O criador, ao obrigar o homem a comer para viver, o incita pelo apetite, e o recompensa pelo prazer.
6) A gastronomia é um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade.
7) O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias; pode se associar a todos os outros prazeres, e é sempre o último para nos consolar da perda destes.
8) A mesa é o único lugar onde jamais nos entediamos durante a primeira hora.
9) A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela.
10) Os que se empanturram ou se embriagam não sabem comer nem beber.
11) A ordem correta do comer é dos pratos mais substanciais aos mais leves.
12) A ordem correta do beber é dos vinhos mais suaves aos mais capitosos e perfumados.
13) Afirmar que não se deve mudar de vinhos é uma heresia; o paladar se satura; e, depois do terceiro copo, o melhor vinho não provoca mais que uma sensação obtusa.
14) Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho.
15) Aprende-se a ser cozinheiro, mas se nasce assador.
16) A qualidade mais indispensável do cozinheiro é a pontualidade: ela deve ser também a do convidado.
17) Esperar muito tempo por um conviva retardatário é falta de consideração para com os que estão presentes.
18) Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos.
19) A dona da casa deve sempre ter certeza de que o café é excelente; e o dono, de que os licores são de primeira qualidade.
20) Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário