Em 2005, fiz uma matéria para a revista Superinteressante na seção Surreal: E se Romeu e Julieta não tivessem morrido? É claro que muitos críticos literários fecharam a cara para a questão, alegando que se tratava de personagens, não de pessoas reais.
Mas muitos outros embarcaram na brincadeira, porque sabiam que não haveria nenhum prejuízo à crítica literária, nem à teoria literária, à literatura, à dramaturgia, enfim. Um dos que aceitaram o jogo foi o escritor e tradutor Fernando Nuno.
Nuno foi muito gentil ao me responder perguntas delirantes sobre os dois personagens imortalizados por Shakespeare, mas que já vinham de outras versões. Em minha biblioteca tenho inclusive uma versão anterior de Romeu e Julieta, do padre italiano Matteo Bandello (1585-1561).
Além de levantar e esclarecer diversas questões, Nuno me disse que o arquétipo de Romeu e Julieta, essa legenda amorosa, vem do mito de Píramo e Tisbe, personagens menores da mitologia grega. Aliás, a peça de Sófocles, Antígona, também tem em seus dois personagens principais, Antígona e Hêmon, a base desse mito.
Nuno é especialista em Shakespeare, tendo traduzido várias peças do dramaturgo de Stratford, adaptando-as para uma linguagem mais palatável aos jovens. Conversei com ele ao telefone várias vezes, mas é o questionário que me respondeu, extenso e valioso, que permanece em riqueza de detalhes.
Sou grato a ele por isso, pela paciência de escrever tão longas explicações e ser tolerante aos meus cochilos de leitura, pois, confesso, na ocasião da matéria, não me dera ao trabalho de ler de novo a peça, pois a tinha na memória, e a primeira pergunta é um misto de desastre e ignorância.
O resultado da entrevista com Nuno é um resumo da peça e uma bela análise. Agora segue o texto para quem tiver fôlego e se interessar pelo assunto.
Se Romeu e Julieta não tivessem morrido ...
Gilberto G. Pereira: Será que eles conseguiriam se casar sem o consentimento dos pais?
Fernando Nuno: Na verdade, Romeu e Julieta se casam, na história de Shakespeare. A peça é dividida em cinco atos, e o casamento acontece bem no meio da trama, no terceiro ato.
Frei Lourenço casa os dois em segredo. A idéia do frade é aproveitar a ligação entre Julieta Capuleto e Romeu Montecchio para promover a conciliação entre as duas famílias inimigas: os dois chegam a passar a chamada “noite de núpcias” juntos. O combinado entre os três é que rei Lourenço vá procurar as duas famílias e falar sobre a paixão repentina entre os dois jovens e a consumação do casamento, sobre a qual não haverá como voltar atrás.
É certo que muito ranger de dentes ainda se fará ouvir, mas a expectativa (ou ilusão) do frade é que, contando com o casamento já realizado, os Capuletos e os Montecchios finalmente acabarão por se entender.
Em suma, eles conseguiram se casar sem o consentimento dos pais. Para isso bastou a boa vontade de um clérigo bem-intencionado que julgou ver no casamento a oportunidade para conciliar inimigos históricos. O problema é que, por uma série de mal-entendidos, a paz só se fez tragicamente, com a morte dos dois amantes (na verdade, já marido e mulher), não com seu casamento.
GGP: Haveria outra saída que não a morte? Como? Qual?
FN: Se formos seguir estritamente o roteiro da peça de William Shakespeare – que, lembremos sempre, é uma ficção baseada numa mescla de fatos reais e de uma história que remonta à mitologia grega –, tudo estava planejado de modo a atingir um final feliz, ou para que as duas famílias amenizassem a rivalidade, sem que os noivos precisassem morrer. Pelo menos era isso que frei Lourenço, Romeu e Julieta acreditavam ser possível.
Os desencontros que se seguiram ao casamento secreto é que ditaram o rumo trágico da história. Para começar, enquanto Julieta, pronta para se casar, espera Romeu no mosteiro, junto a frei Lourenço, ocorre mais uma briga de rua entre Capuletos e Montecchios e seus agregados.
Teobaldo, que é um primo muito querido de Julieta, acaba matando Mercúcio, melhor amigo de Romeu e primo do príncipe Escalo, governante de Verona. Romeu, que passava pelo local justamente nessa hora, a caminho de se casar, tentou apartar a briga, apesar das provocações de Teobaldo – pois nessa hora já era partidário da pacificação entre as famílias, embora os participantes da rixa não conseguissem entender por quê –, mas tudo o que consegue é matar o primo de Julieta. Romeu foge para o mosteiro e se casa com ela. Pela manhã, frei Lourenço providencia a fuga dele para Mântua, uma cidade próxima. Enquanto isso, o frade irá procurar as duas famílias e tentar um acordo, explicando a situação.
No entanto, o pai de Julieta, que é um tipo muito autoritário, muito boca e pouco ouvidos, sem saber que ela já estava casada, já ordenou que a menina se casasse dentro de três dias com um pretendente escolhido por ele, o conde de Páris. A única outra pessoa que sabe que ela já está casada com Romeu é a ama de Julieta. Com medo das reações violentas do velho Capuleto, a ama sugere que ela esqueça Romeu (afinal, ninguém sabe nada mesmo...) e se case com o conde de Páris para agradar ao pai.
Na casa dos Capuletos é preparado um grande banquete, os convidados e os músicos vão chegando, Julieta é vestida para a cerimônia. Isso arruína a ideia de frei Lourenço, que elabora um “plano B”: Julieta deve tomar uma poção de ervas que, sem matá-la, fará que ela pareça estar morta.
O casamento com o conde é suspenso, e Julieta é levada para o jazigo da família. Até aí tudo corre como planejado. O problema começa na segunda parte do plano: frei Lourenço manda um colega avisar o ocorrido a Romeu. A ideia é que ele volte às escondidas para Verona.
Quando Romeu chegar ao cemitério estará na hora de Julieta despertar, e os dois fugirão da cidade para sempre – ou para voltar quando o frade consiga explicar tudo aos pais dos dois.
O que estraga o plano é que Baltasar, o empregado pessoal de Romeu, que não estava a par do plano do frade, acredita como todo o mundo que Julieta está morta e também vai a Mântua, aonde chega antes do enviado do frade. Romeu fica desesperado, compra veneno, vem correndo para o cemitério, vê Julieta (aparentemente) morta e se suicida.
Ela acorda e, ao vê-lo morto, faz a mesma coisa – a tragédia que todos conhecem. Mas sem os imprevistos, os desencontros, não existiria a peça, a obra de arte, não teríamos a genialidade de Shakespeare exposta.
GGP: Pelo que se vê na peça, no que descreve Shakespeare, como a sociedade os aceitaria, mesmo sabendo que as famílias não haviam aprovado aquele amor? Como viveriam?
FN: Realmente, pelo que conhecemos da sociedade da época, seria difícil a convivência social das famílias. E, pela descrição que Shakespeare faz do temperamento do pai de Julieta, um tipo folgazão mas irascível e violento, os dois teriam mesmo que fugir da cidade, de preferência para bem longe. Ainda assim, estavam sujeitos a que o sogro de Romeu mandasse procurá-los e matar a ambos fosse onde fosse para restaurar a honra bélica da família.
Não se pode, por outro lado, negligenciar o papel da Igreja e dos frades da época na pacificação das famílias, que era realmente efetivo. Santa Rita de Cássia, por exemplo, fazia parte de uma família de pessoas – que tanto podiam ser religiosas como leigas – que exerciam profissional o papel de conciliadores de inimigos nessas épocas tão turbulentas (embora talvez não muito mais que hoje) da história da humanidade.
GGP: Que análise factual pode-se fazer a partir da leitura da peça?
FN: Histórias de paixões entre rapaz e moça de famílias inimigas são recorrentes e encontram paralelo em fatos reais. Os nomes das famílias Capuleto e Montecchio já aparecem trezentos anos antes de Shakespeare, na Divina comédia, de Dante Alighieri, quando a guerra civil entre guelfos (partidários do Papa) e gibelinos (adeptos do imperador) provocava verdadeiros massacres na região que vai do sul da Alemanha ao norte da Itália, onde fica Verona.
A história da paixão entre Romeu e Julieta já havia sido contada várias vezes em italiano mesmo antes de Shakespeare, que a leu na adaptação inglesa de uma versão francesa das histórias italianas e resolveu adaptá-la ele próprio.
Algumas versões situavam a ação na cidade de Sena, mais de 200 quilômetros ao sul de Verona. A essa altura, a história do amor proibido já tinha incorporado elementos do mito grego de Píramo e Tisbe, que também são rebentos de famílias rivais e se suicidam depois de um mal-entendido.
Aliás, é curioso que o Bardo, o mais adaptado dos autores, tenho sido também o maior adaptador de todos, muitas vezes reproduzindo até palavra por palavra de trechos escritos por outros autores.
O que faz a diferença, trazendo para Shakespeare os louros de – para muitos – maior autor da história da humanidade, é a maneira como ele exprime os conflitos íntimos dos personagens, a densidade de que os reveste, a forma extremamente realista com que traz à luz as nossas motivações mais torpes ou mais nobres.
GGP: Julieta, que tinha apenas 13 anos de idade, parecia bem madura, até mais madura que Romeu, certo? Era avançada para sua época?
FN: Os estudos históricos confirmam que a infância e a pré-adolescência medievais eram bem menos preservadas que hoje. As crianças eram muito mais expostas ao ambiente e às expressões adultas – principalmente nas classes populares, em que as casas não tinham ambientes propícios, e meninos e meninas não passavam o tempo nas escolas.
As crianças trabalhavam no campo, e os aprendizes dos ofícios começavam as 12 anos de idade, atingindo a maioridade legal aos 16. Na classe social de Julieta era comum o casamento temporão. Meninas de sete anos eram casadas para facilitar a transmissão e a concentração das prosperidades.
Na Inglaterra, uma menina chamada Grace de Salely se casou aos quatro anos com um nobre, enviuvou logo em seguida e se casou novamente aos seis anos, chegando ao terceiro marido com 13. Perto dela, Julieta estaria atrasada... Santa Isabel casou-se aos 12 anos com dom Dinis, o rei português que fundou a Universidade de Coimbra.
A própria Igreja acabou criando leis para proibir o casamento das meninas antes dos 15 anos, mas não resistia à pressão e acabava abrindo inúmeras exceções. Julieta é bem saidinha, e foi criada por uma ama bastante desbocada. Tem também por perto um pai que é um dos maiores faladores de palavrões nas peças de Shakespeare. Em suma, embora houvesse televisão nem cinema, o que acontecia não era muito diferente do que vemos hoje.
GGP: Por que a peça Romeu e Julieta é considerada o marco do amor romântico?
FN: Não à toa é a peça de amor mais representada do mundo. Não por acaso são as obras de Shakespeare as mais lidas depois da Bíblia e as mais representadas. Harold Bloom refere-se ao Bardo como o inventor do humano, colocando essa referência no título mesmo de sua grande obra sobre Shakespeare [Shakespeare: a invenção do humano, publicado no Brasil pela Objetiva].
Tanto barulho não é por nada. Não poderemos dizer que o resto é silêncio, mas William Shakespeare como que reciclou os sentimentos humanos. Tomou as motivações íntimas que jaziam, ignoradas ou dissimuladas, na psique e as trouxe à luz – antecipando Freud em alguns séculos, como dizem alguns especialistas. E fez isso com complacência, com cumplicidade por todos nós, sem olhar do alto, sem maldade ou desdém, deixando entrever sempre que as falhas que apontava são de todos nós, mas dele inclusive.
E as boas qualidades também. Revelou-nos com arte muito do que de mais humano existe dentro de nós, como ele passamos a ter mais consciência de nós e das diferenças de conteúdo entre as pessoas, e a essa revelação Bloom se refere como “invenção” do ser humano contemporâneo.
A frase final de Romeu e Julieta, “Pois nunca houve história mais triste do que esta de Julieta e de seu amado Romeu”, parece banal dita fora do contexto, mas torna-se divina quando surge como fecho de todas as outras que acabamos de ouvir ou ler antes dessa.
É uma frase que, isolada, pode ser ouvida sem emoção como outra qualquer, mas já vi bastante gente chorar quando a lê depois que a morte dos dois recém-casados acaba de promover a “melancólica paz” entre as famílias inimigas e como fecho das explicações de frei Lourenço.
GGP: Qual a importância de Romeu e Julieta como modelo de personagens na história da literatura universal?
FN: Tão imensa que já existia antes de Shakespeare. São até hoje um lugar-comum na literatura, desde a mitologia grega ou até desde antes. E não só na literatura: a música, o cinema, a dança, todas as artes os tomam como modelo alguma vez.
Ainda há pouco vimos um filme sobre o amor de jovens que fazem parte de torcidas de times de futebol rivais [O casamento de Romeu e Julieta (2005), do brasileiro Bruno Barreto], o tema é sempre retomado.
GGP: Por que Shakespeare não fez uma comédia de Romeu e Julieta? Não daria?
FN: Não lembro agora se foi Bloom quem disse que faltou pouco para Shakespeare fazer dessa obra uma comédia. Os elementos trágicos estão concentrados na sequência final, o que dá o tom da peça, mas por várias vezes os elementos cômicos predominam.
A ama de Julieta é um personagem hilariante. Mercúcio, que fala sem parar, é um gozador inveterado – diz-se que Shakespeare declarou que teve de matá-lo para que ele não “matasse” a peça, transformando-a definitivamente em comédia. O pai de Julieta também faz rir muito com seus impropérios, e o próprio frei Lourenço chega a ser um “sábio” um tanto atrapalhado como o Mérlim de Walt Disney em A espada era a lei.
Shakespeare era especialista em comédias, tinha faro para o sucesso de público, sabia que muitos atores agradavam mais à heterogênea plateia (as peças eram tanto encenadas na Corte quanto diante da patuleia e tinham de agradar a ambos os públicos) quando faziam rir do que quando faziam chorar.
Assim, tanto em Romeu e Julieta como em Hamlet ou Macbeth, por exemplo, com frequência as cenas mais trágicas são contrabalançadas por outras absolutamente hilariantes.
Em Romeu e Julieta, por exemplo, assim que a noiva aparece morta (pelo menos é essa a aparência da menina) na manhã do casamento com o conde Páris, a ridícula cena do luto do pai e da ama é seguida por outra mais engraçada ainda, dos músicos preocupados com o fato de que o rango prometido para o almoço pode não mais sair, uma vez que não vai haver mais casamento.
Numa outra obra, Sonho de uma noite de verão, uma comédia, Shakespeare conta outra vez essa mesma história do mal-entendimento que conduz ao suicídio dos recém-casados, mas de uma forma absolutamente hilariante. Só que ali o Bardo a apresenta na versão da mitologia, em que Romeu e Julieta são Píramo e Tisbe. Contudo, em Romeu e Julieta a forma de terminar – lembremos que “nunca houve história mais triste do que esta” – impede que Romeu e Julieta se encerre como comédia, apesar das várias oscilações ao longo do texto.
GGP: Até que ponto esta peça pode ser lida num viés político, de relação de forças na estrutura medieval?
FN: Lembremos que Shakespeare escreveu na Inglaterra, na Renascença. Assim, embora suas histórias fossem ambientadas na Grécia e na Roma antigas, ou na península italiana medieval – como Romeu e Julieta –, o tratamento que dava aos personagens era o seu próprio meio.
Assim, as situações localizadas no interior da Itália ganhavam elementos tipicamente ingleses, nos modos de dizer, no vestuário, na ambientação histórica e geográfica.
Era comum, por exemplo, numa peça passada na Grécia antiga, o Bardo fazer referência a acontecimentos da Inglaterra de quase 2 mil anos depois. Porém, como o ser humano é basicamente igual em qualquer parte, esses anacronismos não prejudicam os conteúdos.
Em Romeu e Julieta, no entanto, Shakespeare parece estar bem informado das realidades políticas italianas nos séculos anteriores a ele. A península se dividia em pequenos países rivais. Verona aparece como estado independente na peça – o que torna verossímil a existência de famílias poderosas e inimigas dilacerando a cidade, a despeito das tentativas do príncipe governante de manter a paz e a unidade.
A cidade que mais sofreu com as divisões internas entre famílias que apoiavam um ou outro dos partidos era Florença: como na Verona de Romeu e Julieta, eram comuns os crimes para vingar um assassínio anterior, sem saber quem tinha começado a mortandade.
A Igreja exerce papel político de importância no trato com os reis das grandes nações, a par de seu próprio poder temporal na região da península diretamente governada por ela. Numa cidade menor como Verona, porém, mais ao norte de Roma e fora do território papal, esse papel depende muito da personalidade e da atuação dos religiosos locais.
Aqui ela [a peça Romeu e Julieta] está representada por frei Lourenço, que se limita às funções religiosas, mas apesar do papel político reduzido busca oportunidades para promover a paz.
GGP: Na adaptação para uma linguagem mais arejada que você fez de Romeu e Julieta, há alguma situação que não existe no original?
FN: mantive todas as cenas, todas as falas. Não acrescentei nem tirei. A atualização dos textos de Shakespeare que faço se processa no terreno da linguagem. Leio e releio cada frase do original e procuro reescrevê-la como ela poderia ser dita com a maior fluência possível na nossa língua, hoje.
A intenção é fazer que o leitor brasileiro de hoje possa ler Shakespeare e compreendê-lo com a mesma fluência que as plateias de há 400 anos sentiam ao assistir às peças dele. Sem notas de rodapé.
Por outro lado, também me deleito com as traduções tradicionais, quando fiéis ao texto, cheias de notas, em que sentimos Shakespeare colocado sobre um altar ou um pedestal – coisa que ele, iconoclasta e preocupado com a comunicação imediata, talvez não apreciasse muito.
Mas gosto também de me aproximar dele dessa forma, é outra sensação. Para quem apreciar a leitura literal, o melhor mesmo é ir direto ao original inglês – o ideal seria estar lá, há 400 anos, assistindo às representações originais.
GGP: Uma vez você disse e demonstrou que muitos dos ditados que usamos hoje foi Shakespeare quem criou. Há em Romeu e Julieta alguma coisa desse tipo?
FN: William Shakespeare foi o grande frasista, tanto ao criar quanto ao se apropriar – pois hoje os estudiosos indicam que algumas das frases marcantes atribuídas a ele já eram ditados populares mais antigos. Mas as sentenças melhores, mais impressivas (e expressivas), tipo “Ser ou não ser ...”, são as criadas pelo Bardo.
Romeu e Julieta não é pródiga em frases famosas, mas contém algumas preciosidades, como a ideia de que “amor é transgressão” ou as brilhantes constatações de que “duas pessoas sabem guardar um segredo quando a primeira não o conta à segunda.”
E a ideia de que uma rosa é uma rosa, não importando o seu nome, que dá título ao romance O nome da rosa, de Umberto Eco, é desta forma reapresentada por Shakespeare quando Julieta diz a Romeu: “É só o seu nome que é meu inimigo, não é você! Você é você, não é Montecchio. O que significa ‘Montecchio’? Não é ‘mão’, ‘pé’, nem ‘braço’ ou ‘rosto’ (...). O que importa é a pessoa, o nome tanto faz. Afinal de contas, o que é um nome? O que nós chamamos de ‘rosa’ vai continuar a ter o mesmo aroma, mesmo se mudarmos o seu nome” (sigo o texto da versão atualizada por mim). Provavelmente há muito mais ditados conhecidos em Romeu e Julieta, eu é que não estou lembrando agora nesta entrevista.
GGP: Tenho aqui uma lista de possibilidades do que poderia acontecer se os dois não se matassem. Você pode comentar as seguintes possibilidades?
a) Romeu e Julieta velhinhos e juntos?
FN: Até poderia ser, mas pouco provável. Juntos até a morte de um dos dois, é possível, mas velhinhos são muito. As pessoas morriam mais cedo por motivo de saúde; além disso, a região estava conflagrada e Romeu podia acabar morto num conflito.
Tanto podia ser assassinado por alguém a mando dos Capuletos como na guerra entre guelfos e gibelinos; também poderia acabar em alguma cruzada, em terra árabe ou na Europa mesmo, levando Julieta com ele (muitas mulheres iam para as Cruzadas), pensando em fugir dos conflitos mais próximos.
b) Romeu assassinado pela família de Julieta?
FN: Muito provável. Ele, mesmo não querendo, acabou por matar o sobrinho querido do irado pai da noiva. Podia fugir como planejado, mas provavelmente mandariam alguém atrás dele.
c) Julieta jogada na sarjeta, depois de ser abandonada por Romeu?
FN: Romeu é muito volúvel. Ainda não contei que é só no final do primeiro ato, depois de muitas páginas, que ele encontra Julieta. Até ali, estava perdidamente apaixonado por uma tal de Rosalina: para gáudio do sempre gozador Mercúcio, dizia que era capaz de morrer por ela e que nunca mais iria gostar de outra mulher.
Foi só surgir Julieta para continuar a dizer exatamente as mesmas coisas, só que em relação à nova paixão, e concluir que não entendia como tinha podido amar Rosalina até então. É possível que a história se repetisse no futuro... Se bem que Rosalina rejeitara Romeu, ao passo que Julieta havia sido bem mais receptiva logo de cara.
d) As famílias do casal juntando forças políticas?
FN: Houve casos em que inimigos se tornaram aliados, e até poderia ocorrer, mas devido a mudanças na política – não como consequência do casamento secreto entre os jovens rebentos das duas famílias.
No final da peça, as duas famílias tornaram-se amigas – ou melhor, deixaram de lado a inimizade – devido à tragédia, mas nada indica que tenham abandonado suas posições políticas; ou seja, podem ter se tornado “inimigos cordiais”, com a morte de Romeu e Julieta.
Se bem que, como Shakespeare nada diz sobre opções políticas na peça, talvez a inimizade estivesse baseada apenas nas vinganças sucessivas de um assassínio primordial, em que ninguém mais sabia quem tinha matado quem primeiro, e nesse caso a rixa estaria encerrada realmente no fim da peça.
Mas é óbvio que por trás havia uma rivalidade pelo poder local. Mercúcio, melhor amigo de Romeu Montecchio, era primo do príncipe Escalo, que não pertencia a nenhuma das duas famílias e procurava punir os desmandos das duas igualmente.
e) Outras possibilidades?
FN: Estamos laborando sobre uma obra de ficção – apesar do fato real, o amor proibido, que está em seu cerne. Portanto, tudo o que supusemos aqui é exercício de ficção.
A manterem-se vivos os dois:
Julieta poderá ser abandonada por Romeu quando surja outra que desperte nele os mesmos sentimentos, mas também poderá ser ela a abandoná-lo. Na altura da peça ela tem 13 anos, mas não é nenhuma criança, soube muito bem corresponder ao jogo da conquista quando Romeu se aproximou dela. Além disso, tem o “mau exemplo” da ama, pessoa que pelo menos nas palavras relativiza bastante a moral.
Já disse que Romeu pode ir para as Cruzadas. Pode ir com ou sem Julieta. Já fez correr o sangue do inimigo quando matou Teobaldo. Passada a fase dos remorsos, pode se tornar um importante líder militar. Vários exercícios de continuação da história são possíveis neste caso.
Mas muitos outros embarcaram na brincadeira, porque sabiam que não haveria nenhum prejuízo à crítica literária, nem à teoria literária, à literatura, à dramaturgia, enfim. Um dos que aceitaram o jogo foi o escritor e tradutor Fernando Nuno.
Nuno foi muito gentil ao me responder perguntas delirantes sobre os dois personagens imortalizados por Shakespeare, mas que já vinham de outras versões. Em minha biblioteca tenho inclusive uma versão anterior de Romeu e Julieta, do padre italiano Matteo Bandello (1585-1561).
Além de levantar e esclarecer diversas questões, Nuno me disse que o arquétipo de Romeu e Julieta, essa legenda amorosa, vem do mito de Píramo e Tisbe, personagens menores da mitologia grega. Aliás, a peça de Sófocles, Antígona, também tem em seus dois personagens principais, Antígona e Hêmon, a base desse mito.
Nuno é especialista em Shakespeare, tendo traduzido várias peças do dramaturgo de Stratford, adaptando-as para uma linguagem mais palatável aos jovens. Conversei com ele ao telefone várias vezes, mas é o questionário que me respondeu, extenso e valioso, que permanece em riqueza de detalhes.
Sou grato a ele por isso, pela paciência de escrever tão longas explicações e ser tolerante aos meus cochilos de leitura, pois, confesso, na ocasião da matéria, não me dera ao trabalho de ler de novo a peça, pois a tinha na memória, e a primeira pergunta é um misto de desastre e ignorância.
O resultado da entrevista com Nuno é um resumo da peça e uma bela análise. Agora segue o texto para quem tiver fôlego e se interessar pelo assunto.
Se Romeu e Julieta não tivessem morrido ...
Gilberto G. Pereira: Será que eles conseguiriam se casar sem o consentimento dos pais?
Fernando Nuno: Na verdade, Romeu e Julieta se casam, na história de Shakespeare. A peça é dividida em cinco atos, e o casamento acontece bem no meio da trama, no terceiro ato.
Frei Lourenço casa os dois em segredo. A idéia do frade é aproveitar a ligação entre Julieta Capuleto e Romeu Montecchio para promover a conciliação entre as duas famílias inimigas: os dois chegam a passar a chamada “noite de núpcias” juntos. O combinado entre os três é que rei Lourenço vá procurar as duas famílias e falar sobre a paixão repentina entre os dois jovens e a consumação do casamento, sobre a qual não haverá como voltar atrás.
É certo que muito ranger de dentes ainda se fará ouvir, mas a expectativa (ou ilusão) do frade é que, contando com o casamento já realizado, os Capuletos e os Montecchios finalmente acabarão por se entender.
Em suma, eles conseguiram se casar sem o consentimento dos pais. Para isso bastou a boa vontade de um clérigo bem-intencionado que julgou ver no casamento a oportunidade para conciliar inimigos históricos. O problema é que, por uma série de mal-entendidos, a paz só se fez tragicamente, com a morte dos dois amantes (na verdade, já marido e mulher), não com seu casamento.
GGP: Haveria outra saída que não a morte? Como? Qual?
FN: Se formos seguir estritamente o roteiro da peça de William Shakespeare – que, lembremos sempre, é uma ficção baseada numa mescla de fatos reais e de uma história que remonta à mitologia grega –, tudo estava planejado de modo a atingir um final feliz, ou para que as duas famílias amenizassem a rivalidade, sem que os noivos precisassem morrer. Pelo menos era isso que frei Lourenço, Romeu e Julieta acreditavam ser possível.
Os desencontros que se seguiram ao casamento secreto é que ditaram o rumo trágico da história. Para começar, enquanto Julieta, pronta para se casar, espera Romeu no mosteiro, junto a frei Lourenço, ocorre mais uma briga de rua entre Capuletos e Montecchios e seus agregados.
Teobaldo, que é um primo muito querido de Julieta, acaba matando Mercúcio, melhor amigo de Romeu e primo do príncipe Escalo, governante de Verona. Romeu, que passava pelo local justamente nessa hora, a caminho de se casar, tentou apartar a briga, apesar das provocações de Teobaldo – pois nessa hora já era partidário da pacificação entre as famílias, embora os participantes da rixa não conseguissem entender por quê –, mas tudo o que consegue é matar o primo de Julieta. Romeu foge para o mosteiro e se casa com ela. Pela manhã, frei Lourenço providencia a fuga dele para Mântua, uma cidade próxima. Enquanto isso, o frade irá procurar as duas famílias e tentar um acordo, explicando a situação.
No entanto, o pai de Julieta, que é um tipo muito autoritário, muito boca e pouco ouvidos, sem saber que ela já estava casada, já ordenou que a menina se casasse dentro de três dias com um pretendente escolhido por ele, o conde de Páris. A única outra pessoa que sabe que ela já está casada com Romeu é a ama de Julieta. Com medo das reações violentas do velho Capuleto, a ama sugere que ela esqueça Romeu (afinal, ninguém sabe nada mesmo...) e se case com o conde de Páris para agradar ao pai.
Na casa dos Capuletos é preparado um grande banquete, os convidados e os músicos vão chegando, Julieta é vestida para a cerimônia. Isso arruína a ideia de frei Lourenço, que elabora um “plano B”: Julieta deve tomar uma poção de ervas que, sem matá-la, fará que ela pareça estar morta.
O casamento com o conde é suspenso, e Julieta é levada para o jazigo da família. Até aí tudo corre como planejado. O problema começa na segunda parte do plano: frei Lourenço manda um colega avisar o ocorrido a Romeu. A ideia é que ele volte às escondidas para Verona.
Quando Romeu chegar ao cemitério estará na hora de Julieta despertar, e os dois fugirão da cidade para sempre – ou para voltar quando o frade consiga explicar tudo aos pais dos dois.
O que estraga o plano é que Baltasar, o empregado pessoal de Romeu, que não estava a par do plano do frade, acredita como todo o mundo que Julieta está morta e também vai a Mântua, aonde chega antes do enviado do frade. Romeu fica desesperado, compra veneno, vem correndo para o cemitério, vê Julieta (aparentemente) morta e se suicida.
Ela acorda e, ao vê-lo morto, faz a mesma coisa – a tragédia que todos conhecem. Mas sem os imprevistos, os desencontros, não existiria a peça, a obra de arte, não teríamos a genialidade de Shakespeare exposta.
GGP: Pelo que se vê na peça, no que descreve Shakespeare, como a sociedade os aceitaria, mesmo sabendo que as famílias não haviam aprovado aquele amor? Como viveriam?
FN: Realmente, pelo que conhecemos da sociedade da época, seria difícil a convivência social das famílias. E, pela descrição que Shakespeare faz do temperamento do pai de Julieta, um tipo folgazão mas irascível e violento, os dois teriam mesmo que fugir da cidade, de preferência para bem longe. Ainda assim, estavam sujeitos a que o sogro de Romeu mandasse procurá-los e matar a ambos fosse onde fosse para restaurar a honra bélica da família.
Não se pode, por outro lado, negligenciar o papel da Igreja e dos frades da época na pacificação das famílias, que era realmente efetivo. Santa Rita de Cássia, por exemplo, fazia parte de uma família de pessoas – que tanto podiam ser religiosas como leigas – que exerciam profissional o papel de conciliadores de inimigos nessas épocas tão turbulentas (embora talvez não muito mais que hoje) da história da humanidade.
GGP: Que análise factual pode-se fazer a partir da leitura da peça?
FN: Histórias de paixões entre rapaz e moça de famílias inimigas são recorrentes e encontram paralelo em fatos reais. Os nomes das famílias Capuleto e Montecchio já aparecem trezentos anos antes de Shakespeare, na Divina comédia, de Dante Alighieri, quando a guerra civil entre guelfos (partidários do Papa) e gibelinos (adeptos do imperador) provocava verdadeiros massacres na região que vai do sul da Alemanha ao norte da Itália, onde fica Verona.
A história da paixão entre Romeu e Julieta já havia sido contada várias vezes em italiano mesmo antes de Shakespeare, que a leu na adaptação inglesa de uma versão francesa das histórias italianas e resolveu adaptá-la ele próprio.
Algumas versões situavam a ação na cidade de Sena, mais de 200 quilômetros ao sul de Verona. A essa altura, a história do amor proibido já tinha incorporado elementos do mito grego de Píramo e Tisbe, que também são rebentos de famílias rivais e se suicidam depois de um mal-entendido.
Aliás, é curioso que o Bardo, o mais adaptado dos autores, tenho sido também o maior adaptador de todos, muitas vezes reproduzindo até palavra por palavra de trechos escritos por outros autores.
O que faz a diferença, trazendo para Shakespeare os louros de – para muitos – maior autor da história da humanidade, é a maneira como ele exprime os conflitos íntimos dos personagens, a densidade de que os reveste, a forma extremamente realista com que traz à luz as nossas motivações mais torpes ou mais nobres.
GGP: Julieta, que tinha apenas 13 anos de idade, parecia bem madura, até mais madura que Romeu, certo? Era avançada para sua época?
FN: Os estudos históricos confirmam que a infância e a pré-adolescência medievais eram bem menos preservadas que hoje. As crianças eram muito mais expostas ao ambiente e às expressões adultas – principalmente nas classes populares, em que as casas não tinham ambientes propícios, e meninos e meninas não passavam o tempo nas escolas.
As crianças trabalhavam no campo, e os aprendizes dos ofícios começavam as 12 anos de idade, atingindo a maioridade legal aos 16. Na classe social de Julieta era comum o casamento temporão. Meninas de sete anos eram casadas para facilitar a transmissão e a concentração das prosperidades.
Na Inglaterra, uma menina chamada Grace de Salely se casou aos quatro anos com um nobre, enviuvou logo em seguida e se casou novamente aos seis anos, chegando ao terceiro marido com 13. Perto dela, Julieta estaria atrasada... Santa Isabel casou-se aos 12 anos com dom Dinis, o rei português que fundou a Universidade de Coimbra.
A própria Igreja acabou criando leis para proibir o casamento das meninas antes dos 15 anos, mas não resistia à pressão e acabava abrindo inúmeras exceções. Julieta é bem saidinha, e foi criada por uma ama bastante desbocada. Tem também por perto um pai que é um dos maiores faladores de palavrões nas peças de Shakespeare. Em suma, embora houvesse televisão nem cinema, o que acontecia não era muito diferente do que vemos hoje.
GGP: Por que a peça Romeu e Julieta é considerada o marco do amor romântico?
FN: Não à toa é a peça de amor mais representada do mundo. Não por acaso são as obras de Shakespeare as mais lidas depois da Bíblia e as mais representadas. Harold Bloom refere-se ao Bardo como o inventor do humano, colocando essa referência no título mesmo de sua grande obra sobre Shakespeare [Shakespeare: a invenção do humano, publicado no Brasil pela Objetiva].
Tanto barulho não é por nada. Não poderemos dizer que o resto é silêncio, mas William Shakespeare como que reciclou os sentimentos humanos. Tomou as motivações íntimas que jaziam, ignoradas ou dissimuladas, na psique e as trouxe à luz – antecipando Freud em alguns séculos, como dizem alguns especialistas. E fez isso com complacência, com cumplicidade por todos nós, sem olhar do alto, sem maldade ou desdém, deixando entrever sempre que as falhas que apontava são de todos nós, mas dele inclusive.
E as boas qualidades também. Revelou-nos com arte muito do que de mais humano existe dentro de nós, como ele passamos a ter mais consciência de nós e das diferenças de conteúdo entre as pessoas, e a essa revelação Bloom se refere como “invenção” do ser humano contemporâneo.
A frase final de Romeu e Julieta, “Pois nunca houve história mais triste do que esta de Julieta e de seu amado Romeu”, parece banal dita fora do contexto, mas torna-se divina quando surge como fecho de todas as outras que acabamos de ouvir ou ler antes dessa.
É uma frase que, isolada, pode ser ouvida sem emoção como outra qualquer, mas já vi bastante gente chorar quando a lê depois que a morte dos dois recém-casados acaba de promover a “melancólica paz” entre as famílias inimigas e como fecho das explicações de frei Lourenço.
GGP: Qual a importância de Romeu e Julieta como modelo de personagens na história da literatura universal?
FN: Tão imensa que já existia antes de Shakespeare. São até hoje um lugar-comum na literatura, desde a mitologia grega ou até desde antes. E não só na literatura: a música, o cinema, a dança, todas as artes os tomam como modelo alguma vez.
Ainda há pouco vimos um filme sobre o amor de jovens que fazem parte de torcidas de times de futebol rivais [O casamento de Romeu e Julieta (2005), do brasileiro Bruno Barreto], o tema é sempre retomado.
GGP: Por que Shakespeare não fez uma comédia de Romeu e Julieta? Não daria?
FN: Não lembro agora se foi Bloom quem disse que faltou pouco para Shakespeare fazer dessa obra uma comédia. Os elementos trágicos estão concentrados na sequência final, o que dá o tom da peça, mas por várias vezes os elementos cômicos predominam.
A ama de Julieta é um personagem hilariante. Mercúcio, que fala sem parar, é um gozador inveterado – diz-se que Shakespeare declarou que teve de matá-lo para que ele não “matasse” a peça, transformando-a definitivamente em comédia. O pai de Julieta também faz rir muito com seus impropérios, e o próprio frei Lourenço chega a ser um “sábio” um tanto atrapalhado como o Mérlim de Walt Disney em A espada era a lei.
Shakespeare era especialista em comédias, tinha faro para o sucesso de público, sabia que muitos atores agradavam mais à heterogênea plateia (as peças eram tanto encenadas na Corte quanto diante da patuleia e tinham de agradar a ambos os públicos) quando faziam rir do que quando faziam chorar.
Assim, tanto em Romeu e Julieta como em Hamlet ou Macbeth, por exemplo, com frequência as cenas mais trágicas são contrabalançadas por outras absolutamente hilariantes.
Em Romeu e Julieta, por exemplo, assim que a noiva aparece morta (pelo menos é essa a aparência da menina) na manhã do casamento com o conde Páris, a ridícula cena do luto do pai e da ama é seguida por outra mais engraçada ainda, dos músicos preocupados com o fato de que o rango prometido para o almoço pode não mais sair, uma vez que não vai haver mais casamento.
Numa outra obra, Sonho de uma noite de verão, uma comédia, Shakespeare conta outra vez essa mesma história do mal-entendimento que conduz ao suicídio dos recém-casados, mas de uma forma absolutamente hilariante. Só que ali o Bardo a apresenta na versão da mitologia, em que Romeu e Julieta são Píramo e Tisbe. Contudo, em Romeu e Julieta a forma de terminar – lembremos que “nunca houve história mais triste do que esta” – impede que Romeu e Julieta se encerre como comédia, apesar das várias oscilações ao longo do texto.
GGP: Até que ponto esta peça pode ser lida num viés político, de relação de forças na estrutura medieval?
FN: Lembremos que Shakespeare escreveu na Inglaterra, na Renascença. Assim, embora suas histórias fossem ambientadas na Grécia e na Roma antigas, ou na península italiana medieval – como Romeu e Julieta –, o tratamento que dava aos personagens era o seu próprio meio.
Assim, as situações localizadas no interior da Itália ganhavam elementos tipicamente ingleses, nos modos de dizer, no vestuário, na ambientação histórica e geográfica.
Era comum, por exemplo, numa peça passada na Grécia antiga, o Bardo fazer referência a acontecimentos da Inglaterra de quase 2 mil anos depois. Porém, como o ser humano é basicamente igual em qualquer parte, esses anacronismos não prejudicam os conteúdos.
Em Romeu e Julieta, no entanto, Shakespeare parece estar bem informado das realidades políticas italianas nos séculos anteriores a ele. A península se dividia em pequenos países rivais. Verona aparece como estado independente na peça – o que torna verossímil a existência de famílias poderosas e inimigas dilacerando a cidade, a despeito das tentativas do príncipe governante de manter a paz e a unidade.
A cidade que mais sofreu com as divisões internas entre famílias que apoiavam um ou outro dos partidos era Florença: como na Verona de Romeu e Julieta, eram comuns os crimes para vingar um assassínio anterior, sem saber quem tinha começado a mortandade.
A Igreja exerce papel político de importância no trato com os reis das grandes nações, a par de seu próprio poder temporal na região da península diretamente governada por ela. Numa cidade menor como Verona, porém, mais ao norte de Roma e fora do território papal, esse papel depende muito da personalidade e da atuação dos religiosos locais.
Aqui ela [a peça Romeu e Julieta] está representada por frei Lourenço, que se limita às funções religiosas, mas apesar do papel político reduzido busca oportunidades para promover a paz.
GGP: Na adaptação para uma linguagem mais arejada que você fez de Romeu e Julieta, há alguma situação que não existe no original?
FN: mantive todas as cenas, todas as falas. Não acrescentei nem tirei. A atualização dos textos de Shakespeare que faço se processa no terreno da linguagem. Leio e releio cada frase do original e procuro reescrevê-la como ela poderia ser dita com a maior fluência possível na nossa língua, hoje.
A intenção é fazer que o leitor brasileiro de hoje possa ler Shakespeare e compreendê-lo com a mesma fluência que as plateias de há 400 anos sentiam ao assistir às peças dele. Sem notas de rodapé.
Por outro lado, também me deleito com as traduções tradicionais, quando fiéis ao texto, cheias de notas, em que sentimos Shakespeare colocado sobre um altar ou um pedestal – coisa que ele, iconoclasta e preocupado com a comunicação imediata, talvez não apreciasse muito.
Mas gosto também de me aproximar dele dessa forma, é outra sensação. Para quem apreciar a leitura literal, o melhor mesmo é ir direto ao original inglês – o ideal seria estar lá, há 400 anos, assistindo às representações originais.
GGP: Uma vez você disse e demonstrou que muitos dos ditados que usamos hoje foi Shakespeare quem criou. Há em Romeu e Julieta alguma coisa desse tipo?
FN: William Shakespeare foi o grande frasista, tanto ao criar quanto ao se apropriar – pois hoje os estudiosos indicam que algumas das frases marcantes atribuídas a ele já eram ditados populares mais antigos. Mas as sentenças melhores, mais impressivas (e expressivas), tipo “Ser ou não ser ...”, são as criadas pelo Bardo.
Romeu e Julieta não é pródiga em frases famosas, mas contém algumas preciosidades, como a ideia de que “amor é transgressão” ou as brilhantes constatações de que “duas pessoas sabem guardar um segredo quando a primeira não o conta à segunda.”
E a ideia de que uma rosa é uma rosa, não importando o seu nome, que dá título ao romance O nome da rosa, de Umberto Eco, é desta forma reapresentada por Shakespeare quando Julieta diz a Romeu: “É só o seu nome que é meu inimigo, não é você! Você é você, não é Montecchio. O que significa ‘Montecchio’? Não é ‘mão’, ‘pé’, nem ‘braço’ ou ‘rosto’ (...). O que importa é a pessoa, o nome tanto faz. Afinal de contas, o que é um nome? O que nós chamamos de ‘rosa’ vai continuar a ter o mesmo aroma, mesmo se mudarmos o seu nome” (sigo o texto da versão atualizada por mim). Provavelmente há muito mais ditados conhecidos em Romeu e Julieta, eu é que não estou lembrando agora nesta entrevista.
GGP: Tenho aqui uma lista de possibilidades do que poderia acontecer se os dois não se matassem. Você pode comentar as seguintes possibilidades?
a) Romeu e Julieta velhinhos e juntos?
FN: Até poderia ser, mas pouco provável. Juntos até a morte de um dos dois, é possível, mas velhinhos são muito. As pessoas morriam mais cedo por motivo de saúde; além disso, a região estava conflagrada e Romeu podia acabar morto num conflito.
Tanto podia ser assassinado por alguém a mando dos Capuletos como na guerra entre guelfos e gibelinos; também poderia acabar em alguma cruzada, em terra árabe ou na Europa mesmo, levando Julieta com ele (muitas mulheres iam para as Cruzadas), pensando em fugir dos conflitos mais próximos.
b) Romeu assassinado pela família de Julieta?
FN: Muito provável. Ele, mesmo não querendo, acabou por matar o sobrinho querido do irado pai da noiva. Podia fugir como planejado, mas provavelmente mandariam alguém atrás dele.
c) Julieta jogada na sarjeta, depois de ser abandonada por Romeu?
FN: Romeu é muito volúvel. Ainda não contei que é só no final do primeiro ato, depois de muitas páginas, que ele encontra Julieta. Até ali, estava perdidamente apaixonado por uma tal de Rosalina: para gáudio do sempre gozador Mercúcio, dizia que era capaz de morrer por ela e que nunca mais iria gostar de outra mulher.
Foi só surgir Julieta para continuar a dizer exatamente as mesmas coisas, só que em relação à nova paixão, e concluir que não entendia como tinha podido amar Rosalina até então. É possível que a história se repetisse no futuro... Se bem que Rosalina rejeitara Romeu, ao passo que Julieta havia sido bem mais receptiva logo de cara.
d) As famílias do casal juntando forças políticas?
FN: Houve casos em que inimigos se tornaram aliados, e até poderia ocorrer, mas devido a mudanças na política – não como consequência do casamento secreto entre os jovens rebentos das duas famílias.
No final da peça, as duas famílias tornaram-se amigas – ou melhor, deixaram de lado a inimizade – devido à tragédia, mas nada indica que tenham abandonado suas posições políticas; ou seja, podem ter se tornado “inimigos cordiais”, com a morte de Romeu e Julieta.
Se bem que, como Shakespeare nada diz sobre opções políticas na peça, talvez a inimizade estivesse baseada apenas nas vinganças sucessivas de um assassínio primordial, em que ninguém mais sabia quem tinha matado quem primeiro, e nesse caso a rixa estaria encerrada realmente no fim da peça.
Mas é óbvio que por trás havia uma rivalidade pelo poder local. Mercúcio, melhor amigo de Romeu Montecchio, era primo do príncipe Escalo, que não pertencia a nenhuma das duas famílias e procurava punir os desmandos das duas igualmente.
e) Outras possibilidades?
FN: Estamos laborando sobre uma obra de ficção – apesar do fato real, o amor proibido, que está em seu cerne. Portanto, tudo o que supusemos aqui é exercício de ficção.
A manterem-se vivos os dois:
Julieta poderá ser abandonada por Romeu quando surja outra que desperte nele os mesmos sentimentos, mas também poderá ser ela a abandoná-lo. Na altura da peça ela tem 13 anos, mas não é nenhuma criança, soube muito bem corresponder ao jogo da conquista quando Romeu se aproximou dela. Além disso, tem o “mau exemplo” da ama, pessoa que pelo menos nas palavras relativiza bastante a moral.
Já disse que Romeu pode ir para as Cruzadas. Pode ir com ou sem Julieta. Já fez correr o sangue do inimigo quando matou Teobaldo. Passada a fase dos remorsos, pode se tornar um importante líder militar. Vários exercícios de continuação da história são possíveis neste caso.
Romeu pode morrer à mão de um inimigo e Julieta entrar para m convento. Aliado a outros amigos de Mercúcio e aos parentes de Escalo, Romeu volta à cidade, de onde expulsa o pai de Julieta e toda a família Capuleto. Julieta fica ressentida com Romeu, que promove negociações e anistia os inimigos. Escalo não tem herdeiros e Romeu é aclamado novo governante de Verona. Final feliz.
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