quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As prostitutas de Gabriel

                                                                                                                                                        Ilustração: Blog Diario Sur-Espanha


A realidade da América Latina é mais fantástica do que sua própria literatura, disse o colombiano Gabriel García Márquez, em 1982, ao ser laureado com o Prêmio Nobel daquele ano. E não afirmou isso para efeito de retórica.

Sua obra, toda ela, vem carregada dos traços peculiares, excêntricos e exageradamente poéticos que se encontram nesse mar latino, desde sempre. A começar pelas prostitutas. Elas estão presentes na maioria de seus livros, povoam a paisagem feito pássaras noturnas, mulheres livres que ensinaram a Gabriel o caminho do humano.

Depois de serem lembradas, por tantas vezes, num viés secundário, as prostitutas de Gabriel ganharam uma homenagem definitiva em Memória de minhas putas tristes (2005). A homenagem está mais explícita no título, que traz um plural que não está na trama. A não ser em estatística.

O plural do título aparece quando o protagonista, um nonagenário viciado em sexo pago, que não consegue – e nunca o fez – transar sem pagar pelo serviço, diz: “até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez”.

Levando em conta o que o autor diz em Cheiro de goiaba (1982) (“eu começo todos os meus livros a partir de uma imagem real e não de uma idéia”), essas prostitutas estão em algum lugar de suas lembranças.

E estão mesmo. Aparecem anônimas, na maioria das vezes, na primeira parte de sua autobiografia, de título sugestivo, Viver para contar. A partir dali, pode-se decodificar a solidão e a tristeza de suas meninas. É a chave para compreender que se elas não se apresentam de forma precisa em Memória de minhas putas tristes é porque vivem implicitamente em cada esquina dobrada e em cada rua percorrida nesta novela.

Todo o cenário composto pelo autor é retirado do ambiente vivido por ele mesmo nas cidades de Cartagena, Bogotá e Barranquilla, no final da década de 1940 e começo da de 50. Nessa época, estava com seus vinte e poucos anos. Era estudante de direito (que não chegou a concluir) e aprendiz de jornalista e escritor.

Com pouco dinheiro no bolso, a melhor alternativa que encontrou para sobreviver com o salário miserável que ganhava foi, em certa ocasião, morar num hotel de alta rotatividade. Lá, intensificou seu estágio com as prostitutas. Aulas que começara a ter em sua cidade natal, Aracataca, quando era garoto.

Sua iniciação sexual foi com uma dessas pássaras da noite, que lhe prestou serviços sem exigir em troca nenhuma paga, apenas por ser filho do boticário da cidade.

Memória de minhas putas tristes parece ser um título bem pessoal, do próprio Gabriel. Mas a história é fictícia, narrada em primeira pessoa, por um homem que se identifica apenas como sábio, alcunha merecedora, pelos anos vividos e tempo gasto no que há de mais profano e, por isso mesmo, o que demanda a maior fatia do conhecimento mundano: o sexo e suas mil faces.

Ao fazer noventa anos, o sábio decide comemorá-los num estilo peculiar, contratando uma cafetina para lhe arranjar uma virgem. Passando por cima da problemática moral e legal de aliciar uma menor, o protesto maior da senhora da noite é contra a dificuldade de obter tal donzela àquela altura do século XX. Com muito esforço ela consegue o intento, encontrando uma garota de 14 anos, que precisava do dinheiro para cuidar da mãe doente.

Mas o sábio não consegue efetivar suas vontades e fica apenas na parte teórica da filosofia de alcova, rememorando seus dias fugazmente felizes de apreciador de meretrizes, enquanto passa a noite com a donzela, sem fazer nada, apenas olhando-a dormir e contando-lhe historinhas, cantando cançõezinhas em seu ouvido, ninando a bela adormecida, como se quisesse plantar em seu coração a derradeira esperança de alguém que já está no crepúsculo. Fez isso por várias noites. Uma vida em seu final admirando a exuberância de outra no desabrochar.

Essa imagem de garota prostituída, ou amante de um homem bem mais velho, aparece em vários livros de García Márquez. E em suas memórias, ele deixa claro de que realidade ela surgiu, e até mesmo como foi fundida com outras similares para produzir sua ficção.

Segundo ele, em seus tempos de Cartagena, junto com os colegas de faculdade, virava a noite nos bordéis a céu aberto, à beira do mar caribenho. “De vez em quando alguma pássara nostálgica nos chamava para dormir com o pouco amor que lhe sobrava ao amanhecer. Uma delas, cujo nome e cujo tamanho recordo muito bem, se deixou seduzir pelas fantasias que eu contava enquanto dormia”.

Junto a essa imagem, uma outra compõe a essência de sua personagem mais recorrente. Agora em Bogotá, em 1954, Márquez ainda paupérrimo, morava num pensionato, onde testemunhou de ouvido, várias vezes, a sofreguidão amorosa de um casal de amantes. A surpresa era pela diferença de idade entre os dois. “Uma menina esquálida com um vestido de orfanato público, e um senhor de muita idade, com cabelos platinados e de dois metros de altura, que podia muito bem ser seu avô”.

As prostitutas ofereceram a García Márquez, em seu tempo de formação, um aspecto triste e fértil, e ele não se cansou de pintá-las em sua obra. Principalmente a jovem que ele conheceu em Cartagena, certamente. Em A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada (1972), Eréndira tem 14 anos, é órfã de pai e mãe, e mora com a avó paterna. Certo dia, num descuido, ela deixa a casa pegar fogo, e para puni-la, a avó passa a vender o corpo da menina. Andam pelo país inteiro, como caixeiras viajantes, cujo produto vendido e consumido na hora é o sexo de Eréndira.

Essa mesma história já havia sido contada, rapidamente, em Cem anos de solidão (1967), em que uma “mulata adolescente, com suas tetazinhas de cadela” se deitava – por vinte centavos cada vez – com todos os homens para pagar a dívida com a avó. Em O amor nos tempos do cólera (1985), outra adolescente aparece, com o nome de América Vicuña. Mas dessa vez, apenas como amante de Florentino Ariza, que a essa altura da trama já era um senhor de 75 anos de idade.

De todas as obras de García Márquez, Memória de minhas putas tristes é a que mais se assemelha às suas memórias próprias, não exatamente pelo que ele viveu de fato, mas pelo que presenciou e aprendeu. Passagens inteiras descritas em sua autobiografia estão presentes nessa novela.

Muito mais do que uma inspiração de A casa das belas adormecidas, de Kawabata (1899-1972), que aliás é citada na epígrafe, é um livro feito com o intuito de celebrar a velhice, que olha para si mesma, e resgatar a humanidade das tristes meretrizes que ele, o autor, deixou para trás.

Gabriel García Márquez, o homem que inventou a solidão, realmente explorou bem de perto o universo de suas prostitutas, e por isso mesmo soube retirar delas todo o sentimento de tristeza e abandono. Talvez por ter sido feliz nessa empreitada, ele goste de citar William Faulkner (1897-1962), seu mestre na arte de narrar: “um bordel é o melhor domicílio para um escritor, porque as manhãs são tranqüilas, tem festa toda noite e todos têm boas relações com a polícia”.

(Gilberto G. Pereira. Com ajustes ao tempo, publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 2005. Texto escrito e publicado antes do de John Updike, em The New Yorker, intitulado Dying for Love, que fala do mesmo assunto)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O inferno confirmado



Ler a pentalogia Inferno provisório, de Luiz Ruffato, não é fácil, não pelo que se imagina costumeiramente. É uma prosa compreensível, apesar dos sumidouros da linguagem, com personagens que aparecem e desaparecem da trama, vêm, dão seu recado e retornam ao nada de onde surgiram.

É difícil porque consegue retratar uma realidade complexa, sem perder a poesia daquilo. Para lê-lo, é preciso ter o coração na mão. Desde o primeiro volume, Mamma, son tanto felice, de 2005, passando por O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e, agora, Domingos sem Deus (Record, 2011, 112 páginas, R$ 32,90), o último da série, o que prevalece é a sensação de desamparo.

O projeto de Ruffato é mostrar a labuta diária do homem do interior, que sonha em melhorar de vida, e acha que isso só é possível nas grandes cidades, nos parques industriais. Ele mostra a diáspora incessante dos moradores de pequenas cidades do interior de Minas Gerais rumo a São Paulo e Rio de Janeiro.

Em Domingos sem Deus, é como se o inferno fosse confirmado, no sentido de haver um ciclo de vida completamente sem perspectiva dentro da diáspora. Se o mundo não está legal, se tudo isso parece infernal demais para uma boa alma, as coisas vão melhorar. Essa é a premissa das personagens. Mas não melhoram. Ou melhoram pouco.

Como volume que fecha os caminhos possíveis, Domingos sem Deus é marcante justamente pela constatação do fracasso de quase todos, para ser brando. Quando alguém parece ter se dado bem na vida, é apenas uma miragem de quem olha de fora, como no episódio de Sandra, menina do interior, ativa, inteligente, que é levada para trabalhar de doméstica no Rio de Janeiro.

Na Cidade Maravilhosa, Sandra vai se virando até que é contaminada pelo vírus da Aids. O título dessa história é “Sorte teve a Sandra”. Era o que diziam. E por quê? Porque quando se soube com Aids, “apelou ao doutor Samuel, que, demandando contra a Previdência, acertou encostá-la na Caixa, um salário-mínimo limpo, todo quinto dia útil do mês.”

Fratura

Ruffato tem fama de não criar enredo, e não cria mesmo. Desde o início de sua carreira como escritor, quando lançou Eles eram muitos cavalos e caiu nas graças da crítica nacional, seus livros passam por cima da fábula para chegar ao osso da narrativa e expor a fratura da realidade desse homem do interior que não consegue abraçar a cidade grande.

Os livros de sua pentalogia são chamados de romance por puro capricho classificatório, mas o que há são feixes de histórias que vão dando ritmo e cadência a um mundo cheio de vida, a realidade pulsante das vontades e sonhos do Brasil adentro.

As histórias desenham famílias inteiras que se dispersam, e narram rios de fracassos. E esses fracassos sempre vêm com uma desculpa ou um discurso de que não é bem assim, para depois, lá no fundo ou ao final, descobrirmos que o inferno ainda existe, que sua existência não é provisória para a maioria, que a maioria muda de endereço, mas não muda de situação.

A diáspora leva os filhos dessas famílias para longe. Muitos jamais voltam a pisar o pé novamente na terra natal. Quando fracassam, e quase todos fracassam, se tornam uma espécie de Ulisses que se esquece de Ítaca e que ainda não venceu a guerra. Quando vencem, simplesmente querem esquecer o passado rapidinho.

Malogro
O primeiro episódio de Domingos sem Deus é exemplar dessa dança de malogro em que a maioria das pessoas se vê coreografada. Narra a vida de um garoto inteligente como o diabo, o Mirim do Tatão Ribeiro, pequenino zanzando pelas ruas de Rodeiro, a pequena cidade onde todos o conheciam e apostavam no seu futuro.

Aos 18 anos, Mirim foi tentar a sorte em São Paulo. Foi parar nos campos de fábricas de Diadema, de onde já velho rememora sua trajetória de batalha. Repassa suas aventuras, imaginando as possibilidades que o mundo sugere (só as possibilidades). Imagina-se voltando à sua cidade natal. “Quem diria... É... assentou em São Paulo”, indagariam as pessoas, reconhecendo-o.

E ele passearia orgulhoso, vencedor, pela cidade natal:

É o Mirim, gente, o Mirim!, Alá ele! Ê, Mirim, apeia aí, vem tomar café com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vem comer com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vamos armar uma briga de galo, de canário, uma pelada, solteiros contra casados, ranca-toco e quebra-canela, Ê Mirim, alembra da Gina? Pegou corpo, inteligente como o diabo, logo-logo casa, assim ó, de pretendente, mas a preferência é procê, né, que a gente conhece desde um cotoquinho assim, Mosquito Elétrico voando pelo Rodeiro, Vamos lá, Mirim, vamos fazer uma farra, Esse Mirim é pedra-noventa!, É o Cão!, É o que há!

Mas não voltou.


Essa passagem não é o final da história, mas poderia acabar ali. Essa sentença final no texto de Ruffato é uma pá de cal nos sonhos do velho homem saudoso de um projeto que malogrou.

Inferno provisório - que, nos moldes da burocracia brasileira, pretende ser uma ponte para algo melhor, enquanto se arma toda a papelada da vida, mas acaba se instalando como que para sempre - é uma das coisas mais interessantes da literatura nacional nos primeiros anos do século XXI. E Domingos sem Deus fecha essa série com muita força poética.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 18/12/2011)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A lavoura prosaica de Edival Lourenço



Se será um clássico da literatura produzida em Goiás só o tempo vai dizer, mas Naqueles morros, depois da chuva (Hedra, 2011, 236 páginas, R$ 36), de Edival Lourenço, é uma obra de mestre, de quem sabe manejar a linguagem para alçar os voos altos da criação.

Ambientado no século XVIII, o romance narra os primórdios da fundação do estado de Goiás, mostrando os conflitos entre nativos e exploradores do ouro e, principalmente, a aventura quase errante de uma comitiva oficial que traz o novo governador da província de São Paulo para elevar o Arraial de Nossa Senhora de Santana a Vila Boa de Goiás.

Dom Luís de Assis Masca­renhas, personagem real, vem terminar o que seu antecessor não conseguiu. Este “veio da província de São Paulo, de mula, e voltou de vento: só a alma”. E quem narra é a figura mais interessante do romance de Lourenço, uma ficção que ganha vida absoluta e toma conta do livro inteiro num monólogo ritmado, que não deixa, em momento algum, a peteca cair.

O narrador é conhecido como o homem da cobra, porque como sentinela traz uma jiboia de nome Messalina enrolada ao pescoço, enquanto segura firme o pescoço dela, durante as vigílias noturnas. Se ele cochilar e afrouxar seu pulso, a cobra o enforca, e ao mesmo tempo não pode matá-la.

Há tanto tempo sendo chamado assim, nem se lembra mais de quando seu nome deixou de ser pronunciado. Diz que é filho bastardo de Barto­lo­meu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera, com uma escrava. E que só por isso se livrou dos grilhões. Seu pai, que não o as­sumiu como filho, teve ao me­nos a decência de não o escravizar.

Pela armação do texto, desde o título, outra grande personagem do romance é o lugar, a região das Minas dos Goyazes e adjacências, em que se veem mescladas a vida privada e a pública. A viagem da comitiva oferece ao leitor a apreciação da paisagem e das cenas que ilustram uma época, uma passagem da história brasileira, em geral, e da goiana, em particular.

Outros sertões

Não é à toa que Naqueles morros, depois da chuva traz um título tão semelhante e ao gosto de Grande sertão: veredas. Têm naturezas parecidas. Longe de querer pôr aqui os dois no mesmo barco. Mas não há dúvida de que Lourenço tinha consciência dessa aproximação, e nem podia ser diferente.

Em certo trecho, o narrador diz “coragem em mim, às vezes é não, às vezes é sim. Sou muito carecedor é da sustância que na hora me acuda.” Quem leu Grande sertão: veredas deve se lembrar de um momento parecido, quando Riobaldo tenta explicar o medo que lhe correu pela espinha no confronto com o diabo: “Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem.”

O monólogo, tal como o faz Riobaldo no romance fundante de Guimarães Rosa, a linguagem trabalhada pela expressividade de um lugar e tempo que está diretamente ligada aos gerais, tudo isso dá ao romance de Edival Lourenço o tom de uma criação de grande valor.

No coração das minas dos goyazes surgem várias personagens que compõem o quadro geral desse romance de fundação. Muitas delas criadas na atmosfera do realismo fantástico, no ambiente místico de uma época dura, sem romantismo, pessoas afundadas numa realidade que não distinguia muito da magia e do mistério da vida, do medo, da sensação de esquecimento, da violência desmedida.

Fantástico

De um lado estão os caiapós, que se preparam para uma batalha épica contra os homens brancos que usurparam as terras dos goyazes e que certamente renderiam as outras tribos. Para antecipar a batalha e tentar salvar sua nação, os caiapós desenham estratégias bélicas, fazem exercícios de guerra e começam a atacar os mineiros, numa fúria arrasadora.

De outro lado, vem a comitiva do novo governante de São Paulo de Piratininga. É nessa trilha onde surgem os principais acontecimentos da narrativa, caminho pelo qual a comitiva vai encontrando os rastros de destruição deixados pelos indígenas, além de sofrer fenômenos estranhos de doenças e superstições.

A certa altura eles se deparam com uma figura maravilhosa (do realismo fantástico) chamada Zumba Macumbela, que para alguns já passou da idade de morrer de tão velho, e para outros já morreu há muito tempo, mas, por ter pacto com o diabo ainda zanza por aquelas plagas. “Tem capacidade de exalar-se quando não quer ser visto (...). às vezes desaparece, sem mais nem menos, como que por encanto.”

“Às vezes, vira outra coisa: um murundum de cupim, um toco de pau seco, um cogumelo, uma árvore com vento individual ou com flores de chama, um enxame de abelhas ferozes, um sapo emproado, uma jaguatirica furiosa, um pássaro voando, um grito zunindo, um rodamoinho, uma nuvem que passa com zunido de chuva sem chover.”

As proezas de Zumba Macumbela são inúmeras. Ele caberia sem dificuldades num roteiro de HQ. É ca­paz de voar “enganchado em seu bastão de peregrino, com a tralha tremulando ao vento e tamborilando nas costas (...). Às vezes salta com suavidade do cimo das montanhas, segurando seu cajado ao meio e fazendo ele rodar por entre os dedos feito as pás velozes de um moinho de vento.”

“Dizem que ele banca até um riacho correndo para cima com cachoeira e tudo (...).” To­das essas proezas ainda parecem mínimas perto de realizações ainda mais fantásticas, que o aproximam sem a menor sombra de dúvida do grande pai das peripécias, o próprio diabo.

Tem o dom da onipresença e de “chegar ao destino antes de sair de onde esteja, ou de aparecer de repente, como se chegasse sem ter vindo. Às vezes não chega de todo, só o mau cheiro; às vezes chega a tralha, depois ele. Às vezes chega a voz e ao redor da voz ele se faz sem chegar.”

O romance e a negação da fábula

Zumba Macumbela tem uma importância fundamental dentro da narrativa de Na­que­les morros porque é ele quem evita o confronto da comitiva com o batalhão de índios que passa pelos povoados arrasando tudo. Ele previne dom Luís de Assis Masca­renhas, que acampa no Arraial do Meia-Pon­te (futura Pirenópolis) e fica lá até se sentir seguro para con­tinuar a marcha rumo ao Ar­raial de Nossa Senhora de Santana.

Neste sentido, Macumbela é o anticlímax da história. E é a chave principal do não-romance proposto pelo autor. Por causa dele não existe a batalha épica, da mesma forma que ele mesmo é uma figura simbólica da aventura humana, ele mesmo existe apenas no imaginário da cultura, é um não personagem dentro de um romance histórico.

O que não acontece nesta narrativa de Edival Lourenço é matéria para outra leitura, mas podemos vislumbrar algumas coisas. Anhanguera, por exemplo, surge no início como uma promessa de protagonista, como se sua velhice é que fosse ser contada, o outono do diabo velho. Mas, nada.

No decorrer da viagem, a comitiva encontra um vilarejo massacrado pelos índios, onde sobrevivem apenas um velho com sua filha. Aquele põe a filha à venda. O governador diz não à proposta. Mas aceita levá-los na trupe, fazendo nascer a promessa de um futuro romance, que é frustrado ao longo da narração.

A narrativa (não a narração em si, mas a técnica, a linguagem, a forma, enfim) dá a entender que haverá o confronto. Os caiapós se preparam para isso, e o governador continua a marcha na expectativa da resistência. Mas os índios desistem da luta, e os homens brancos chegam sãos e salvos.

O narrador é fulcral, muito bem desenhado pelo autor. Foi castrado num momento pré-narração. Conta essa história e promete vingança. “Jurei a mim mesmo, por tudo de mais sa­gra­do que possa haver, que o dia em que eu topar o Trairi­nha, o chefe da escumalha que botou fora meus petrechos de macho, vou vingar dele, com adornos de crueza.” O leitor espera essa vingança, mas ela não acontece.

Genocídio

Por tudo isso, a narrativa é o grande sucesso do romance. Uma linha da história contada é capaz de comprovar a eficácia do autor. Até certa altura, o narrador é o sentinela substituto, e assume o posto definitivamente quando morre o primeiro, que é um legítimo goyá. E aí o narrador diz: “morria ali o derradeiro dos derradeiros da dita nação goyá.”

Não precisa mais do que isso para ter narrado (sem narrar) a extinção de um povo. O genocídio está registrado, como está prenunciado o que virá contra os caiapós. Esse jogo de tramas e não tramas é típico do romance moderno. E o de Edival Lourenço traz essa carga de modernidade, principalmente, em se tratando de uma ambientação de época.

A riqueza de detalhes da pai­sagem humana e geográfica é outra mostra da importância do lugar como personagem. Isso vem aliado a uma su­cessão de frames narrativos, com cortes e zooms cinematográficos e um narrador que ultrapassa seu tempo. Sua cultura livresca às vezes parece extrapolar a fronteira de seu sa­ber, deixando escapar vestígios de erudição do próprio autor.

Não pelos livros e ideias citados, porque isso, inteligente que é, mesmo num fim de mundo como era o Brasil colonial, ele poderia ouvir e ler (talvez às escondidas) dos viajantes cultos, como o próprio dom Luís de Assis Mascarenhas. Mas algumas palavras provavelmente não tinham registro em sua época.

Palavras como ‘guerrilheiro’ e ‘negrada’ são vocábulos que só vieram a ter registro no final do século XIX. E é pouco provável que elas existissem na boca de quem quer que fosse na primeira metade do século XVIII. Menos provável ainda é que o autor, em suas pesquisas, as tivesse encontrado.

Filhos da mistura

Ou seja, é um prova da mo­dernidade do texto, porque há uma intervenção do autor, que ultrapassa o narrador em si. Existe um ditado popular, se­gun­do o qual uma pessoa falastrona ‘fala mais do que o ho­mem da cobra’, e esta é a sen­sação do leitor quando (ouve) lê o narrador de Naqueles morros.

O sopro moderno na alma desse narrador que nasceu no último ano do século XVII também pode ser visto pelo riso, a ironia, o jogo de palavras, o rit­mo de sua fala, que vêm em con­traste com o espírito da época.

O narrador, o espaço e o tempo em que se crava a narrativa são as melhores coisas deste livro, que ainda têm inúmeros casos e personagens excêntricos e interessantes. Há uma fina sugestão de que somos mesmo, do aedo ao grão-mestre, filhos da mistura.

O que vale pouco (o narrador) é filho de um dos homens mais importantes da história de fundação de Goiás. O que mais manda, gene da alta roda, é fi­lho incógnito de um “flâmulo ser­viçal da casa.” Goiás agora tem um débito com Edival Lourenço.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 11/12/2011)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Umberto Eco e os livros que não lemos

Temos todos em nossas casas dezenas, ou centenas, ou mesmo milhares (se nossa biblioteca for imponente) de livros que não lemos.

Entretanto, um dia ou outro, acabamos por pegar esses livros na mão para perceber que já os conhecíamos. E aí? Como reconhecemos livros que não lemos? Primeira explicação ocultista que não considero: ondas circulam do livro até você.

Segunda explicação: ao longo dos anos, não é verdade que você não abriu esse livro, você deslocou-o diversas vezes, talvez tenha até mesmo folheado, mas não se lembra.

Terceira resposta: durante esses anos você leu um monte de livros que citavam esse livro, o qual terminou por lhe ser familiar. Logo, há diversas maneiras de saber alguma coisa sobre livros que não lemos. Felizmente, senão, onde arranjar tempo para reler quatro vezes o mesmo livro?

(Umberto Eco, in: Não contem com o fim do livro (Record, 2010, 272 páginas, tradução de André Telles, R$ 39,90)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Caminhando, deslumbrado, sobre pedras


Atualmente, nossas estantes estão mais enriquecidas com traduções diretas da fonte de literaturas importantes sempre como a japonesa, a russa, a árabe e a chinesa, além das que se já conhecem tradicionalmente. Uma das razões para isso é a chegada de um novo tempo para o valor que se dá aos tradutores.

Muitos nomes surgiram com força nos últimos 20 anos, como Mamede Jarouche (árabe), Rubens Figueiredo (inglês e russo), Paulo Henriques Britto (inglês), Paulo César Souza (alemão), Paulo Bezerra (russo), Sonia Branco (russo) e tutti quantti. Como lastros deste grupo tão competente, há nomes fundamentais.

No caso da cultura russa, Boris Schnaiderman é um dos que mais contribuíram para a elevação da qualidade nas traduções dos principais romances de lá. Para saber mais sobre essa aventura e arte de traduzir, chega às livrarias Tradução, ato desmedido (Perspectiva, 2011, 216 páginas, R$ 30), que Schnaiderman vinha prometendo publicar há uns dez anos, e que agora chega aos olhos do leitor.

Tradutor de linha de grandeza incomparável, Schnaiderman é responsável por uma gama incrivelmente rica de traduções do russo, das grandes obras de Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov e, em parcerias, dos poetas Maiakovski e Pushkin. Além disso, é fundador do curso de russo da Universidade de São Paulo, ensaísta e dono de uma prosa fácil de ler, que foge aos clichês intelectuais.

Quem lê Tradução, ato desmedido sai ganhando com as dicas literárias, com o debate em torno da dificuldade imposta pelo ato de traduzir e com a sensação de que o autor esteve falando pessoalmente com o leitor.

O livro é composto de textos publicados na imprensa em épocas diferentes, resultado de conferências, reflexões, anotações e impressões de viagens à Rússia. Aborda os inúmeros aspectos de um trabalho de tradução.

As complicações, as impossibilidades, o delicioso labor da palavra convertida, a ponte armada para a transposição dos sentimentos possíveis, as lacunas, as ambiguidades e chistes de uma língua, que parecem não caber em outra jamais. Eis a tarefa do tradutor, alinhavar tudo isso, que vem como prazer doloroso.

Néctar e fel

Segundo Schnaiderman, o ato de traduzir é desmedido porque não se pode prender aos grilhões da gramática, nem da semântica mesma, ou de alguma lógica linguística, simplesmente, sob pena de se perder o filão da arte contida nas palavras da língua de partida. É preciso navegar com coragem, portando uma bússola de sensibilidade. É preciso mergulhar na vida.

Para ele, o exercício da tradução é “elixir e veneno, néctar e fel”, e cita o título de um dos livros de Ortega e Gasset, indispensável a quem queira se aventurar por essas águas tão imprecisas, “esplendor e miséria”, é o que é o ato de traduzir. E arremata: “a tradução é dos atos capitais da vida humana.”

Um xará seu, Boris Pasternak, lembra que traduzir é uma “entrega total”. E isso implica, dialoga Schnaiderman, “numa caminhada sobre pedras, em obsessão contínua, mas ainda em momentos de raro deslumbramento. E não estará neles a verdadeira recompensa do tradutor?”

Em seu livro, Schnaiderman fala de um universo imenso, mas fala sobretudo da literatura russa, cuja língua é a sua de origem. Nasceu em 1917, na cidade de Úman, Ucrânia. Seus pais, no entanto, só falavam em russo, passando ao largo do ucraniano. Como veio para o Brasil aos oito anos de idade, com a família, acabou se naturalizando brasileiro e hoje chama o português de “nossa língua”.

Ler Tradução, ato desmedido é também estar em contato com uma inteligência superior e bem ilustrada. Não deixa de ser uma grande aula de literatura, humanismo e um ensinamento de como se permeia o outro lado, o lado estrangeiro, a face além-fronteira da linguagem.

Apesar de haver uma autobiografia publicada do autor, neste livro podemos acompanhar outros elementos de sua vida que jogam luz sobre sua condição de tradutor e de homem desenraizado que ele é. Ele conta casos pitorescos que se convertem em caminhos de espinho e delícia da tarefa de traduzir. Mas também relata situações dramáticas, emocionantes que lhe são caras.

Um exemplo daquilo que se passa em sua alma é o relato memorialístico, em que ele diz se sentir um estranho no mundo. Embora tenha nascido em Úman, viveu sua infância em Odessa. Mesmo de família judaica, não falou ídiche, tampouco ucraniano, e muito cedo ainda partiu de sua terra natal para um país completamente distante.

Diáspora

Em suas memórias e neste livro agora resenhado, Schnaiderman explica que a razão de sua diáspora não fora política. Seu pai era comerciante se sentiu sufocado no ambiente pós-revolução que se criava na região e decidiu vir tentar a vida no Brasil. Mesmo assim sabemos quão caro seria ficar na terra dos pogroms. E sentimos isso na revelação que o autor faz nesses relatos.


Eu me sinto às vezes como um bicho estranho, um pterodáctilo surgido de repente em nosso mundo.

Tendo passado a primeira infância em Odessa, vivi ali num meio completamente russo, embora a geografia nos ensine que essa cidade e porto importante do Mar Negro fica na Ucrânia. Eu só ouvia falar russo, frequentei escola russa e aprendi a ler em grandes cartilhas onde havia sempre um retrato de Lênin.


Numa passagem mais adiante, ele comenta que essas lembranças parecem estar todas ligadas a seu trabalho de tradutor. São lembranças que formam ou questionam uma identidade, mas também, pela vivência e pelas diversas leituras da palavra e de mundo, calam em seu espírito por ser judeu.

Em 1987, Schnaiderman e a mulher, Jerusa, viajaram para Odessa. Na ocasião, tinha 70 anos de idade, 62 anos, portanto, depois de sair de lá. Nessa viagem, ele fez uma série de reflexões de todo o passado que tangencia sua vida e que, na opinião dele, influencia em sua maneira de traduzir a literatura russa.

O que dizer da visita que fizemos ao prédio onde morei com meus pais e minha irmã, antes de viajar para o Brasil?

Soubemos que ali ficara instalada, durante a ocupação romena de Odessa, a polícia política, o equivalente romeno da Gestapo, e que atuou numa íntima cooperação com esta. E ali mesmo se efetuavam os interrogatórios acompanhados de tortura.

Quem me contou isso foi um judeu velho residente no prédio, um homem triste, grisalho e muito magro, que se afeiçoou fortemente a Jerusa. Ficamos sabendo, também, que a tristeza em seu rosto tinha um motivo bem concreto: ele fizera os maiores sacrifícios para que sua filha pudesse emigrar para o exterior com o marido, e agora ela nem mandava notícias.

“Mas para onde ela foi?” - perguntei-lhe. Resposta: “Ora, ela foi para onde todos vão, para o Brooklin”. Abraçamo-nos por despedida, e como não tivéssemos conosco nenhum objeto melhor, Jerusa deixou-lhe de lembrança uma canetinha sem valor. Quando saímos dali, ele ficou acenando de longe e apertando ao peito aquela canetinha.


Sim, “a tradução vivida”, afirmou Paulo Rónai e eu me convenço cada vez mais da justeza desta afirmação.


Obstinação

Apesar de passagens comoventes como estas, e tantas outras que defrontam o homem com sua condição judaica, e humana, acima de tudo, há também o horizonte aberto da arte de traduzir, amplo demais, perigoso demais, e ao mesmo tempo fascinante ao extremo.

Tudo isso aprendemos com Schnaiderman. Ele reforça que uma língua se aprende quando se entende o funcionamento de seu ritmo. Na tradução, ainda é preciso ir além e compreender o ritmo da cultura, do autor e da linguagem construída naquilo que se vai traduzir. “Qualquer tradução de uma obra, o tradutor tem de lê-la ‘em seus ritmos’ e recriá-los. Caso contrário, não existe tradução digna deste nome.”

Outro nó górdio da tradução é o fato de se pretender à altura do traduzido. “Não tenhamos dúvida: qualquer compromisso de traduzir um grande escritor é ato de soberba”, avalia. E humildemente se retrata: “falando com franqueza, quem sou eu para traduzir um Tolstói, um Dostoiévski.” Mas logo se recompõe para encarar o desafio. “É uma exorbitância que eu tenho de assumir, quem puder que o faça melhor.”

Numa passagem adiante, Schnaiderman explica melhor essa angústia, e alivia os tradutores medianos, argumentando que não é necessário estar à altura do gênio do traduzido (pois muitas vezes é impossível), mas pelo menos à altura de sua obstinação.

“Evidentemente não se pode esperar que Dostoiévski seja traduzido por outro Dostoiévski, mas, desde que o tradutor procure penetrar nas peculiaridades da linguagem primeira, que se aplique com afinco e faça com que sua criatividade orientada pelo original permita, paradoxalmente, afastar-se do texto para ficar mais próximo deste, um passo importante será dado.”



(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 4/12/2011)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Vinicius de Moraes e o amor total

Vinicius de Moraes (1913-1980)


Depois de Camões, talvez o poeta que mais tenha falado de amor na literatura de língua portuguesa tenha sido Vinicius de Moraes. Não se trata aqui de comparar o libertador do idioma lusitano, o artista que pôs nossa língua no mapa da existência literária, com o poeta brasileiro.

Mas não podemos nos esquecer que, além da influência de Shakespeare, Rimbaud e companhia, Vinicius também foi influenciado pela poesia de Camões. Os sonetos são parte dessa herança. O mais famoso deles é o de “Fidelidade”, “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.”

Vinicius de Moraes parece fácil. Passou da fase do sublime, das complexas golfadas de palavras, entre o místico e o hermetismo (“Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre/ Eu sinto a luz desesperadamente”), para a simpleza do verbo. Amar é o mais caro deles.

Na sua antologia de sonetos, o poeta abre um portal de diversidade temática, falando de amizade, natureza, pintura, cinema, futebol, animais e amor, claro. Mas sempre numa atmosfera de intimidade que encanta. Vinicius elegeu o soneto como a forma de manifestar seu espírito, sua alma larga e profunda de poeta, perpassando os poemas pela temporalidade.

A duração do tempo e a transcendência dele estão no centro da sua poética. E o objeto mais duro, como diamante, capaz de atravessar a massa espessa e invisível do tempo, é o amor. Mas não de maneira tão retilínea e simples. O amor em Vinicius é como uma chama que pode até se apagar, mas, contraditoriamente, não tem fim.

Para resolver a contradição, ou conceituá-la, aceita dizer que a duração, por mais relâmpago que seja, se vivida com tal intensidade, permanece na linha contínua do tempo, para sempre.

O amor, em geral, e o que ele mesmo sente, não precisa ser imortal “posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”, conclui o poeta em “Soneto de fidelidade”. Esta frase está ligada a uma tradição existencial que remonta aos gregos.

Estética existencial

Vinicius não criou nada de novo, neste caso, mas ousou formular uma estética existencialista, que mistura Kirkergaard, Pascal, Nietzsche, os romanos e os gregos. É como se dissesse “nosso momento é o que temos agora, vamos, portanto, senti-lo como se fosse para sempre”.

Todos conhecem essa ideia pela famosa frase em latim carpe diem (goze este dia, aproveite o dia), em um dos poemas de Horácio. Mas ela vem de mais longe, e consta no registro de um dos sete sábios da Grécia Antiga, Pítaco: “Aproveite o dia de hoje”. Foi a única coisa que sobrou do pensamento deste sábio, mas o eternizou.

Na literatura brasileira, antes de Vinicius, outro grande poeta que influenciou todas as gerações dos românticos, Basílio da Gama, também forjou dois versos que entraram para a história com ideia parecida: “Gozemo-nos agora, enquanto dura,/ Já que dura tão pouco a flor dos anos.”

O que Vinicius fez de diferente foi buscar o conceito de instante, que remonta a Platão e chega a Kirkergaard, para fazer dele uma espécie de portal da eternidade. Viver o amor dentro do instante é uma escolha de se entregar totalmente, mesmo sabendo que haverá a consequência do fim, uma vez que é chama, mas naquele momento o amor se torna eterno.

Igual ao “Soneto de fidelidade”, o poeta escreveu outros que compõem o quadro geral do amor, o amor como o que dá sentido à existência e que, portanto, não figura na horda mortal dos homens, apenas passeia por aqui, estando além, numa outra dimensão. Amar é mergulhar na experiência da eternidade. É claro que o tempo do amor, sim, é infinito, não o nosso próprio tempo. Este sempre acaba.

Além daqueles que não trazem a palavra ‘amor’ no título, o poeta dedicou três sonetos para configurar essa ideia de amar. “Soneto do amor maior”, “Do amor total” e “Do amor como um rio”. Para fechar esta conversa, segue o segundo poema e um rápido comentário sobre ele, em que o leitor pode sentir e entender como o poeta usa o ritmo e a musicalidade para fixar o significado do amor.

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Musicalidade

Dedicado a Lila Boscoli, a terceira mulher e uma das paixões mais arrebatadoras do poeta, “Soneto do amor total” foi escrito em 1951, quando Vinicius, aos 38 anos, conheceu Lila, que tinha 20, e se casou com ela naquele mesmo ano.

Já na primeira estrofe, o sujeito poético, que neste caso é mesmo Vinicius, faz uma afirmação categórica. O amor que sente não tem nada de ideal, é verdadeiro e real, e é maior do que uma pessoa pode suportar. A verdade que há nesse amor está acima do humano, ultrapassa o coração humano e vai além.

Já na segunda estrofe, levanta todo o peso do amor que sente e tenta fazê-lo se tornar mais leve, colocando-o no espaço do etéreo, do sublime, mergulhando na eternidade para talvez tentar suportar essa fixação absoluta. Mas na terceira estrofe, o poeta volta à experiência carnal do amor.

Lido todo o soneto, o leitor pode ver as palavras dançando dentro da musicalidade construída. Cria-se ao longo dos versos um jogo de contradição (antíteses) e música: eternidade, instante, amigo, amante, afim, enfim (sugerindo fim e infinito), além, presente.

É um amor intenso e total. Ninguém pode amar assim. As duas pontas do poema dizem isso claramente. No entanto, ele ama. Eis o espanto.

Em função do sentimento avassalador, o poeta tenta captar a totalidade desse amor. Para tanto, armou uma estrutura circular, simples no vocabulário, mas complexo no jogo de palavras. O poema só tem seis verbos: amar, cantar, haver (locução), morrer, ser e poder. E ele os conjuga com absoluta intensidade junto a substantivos, advérbios e adjetivos, criando a melopeia dos sentidos.

Se levarmos em conta algumas escolas teóricas, como a de Ezra Pound, vemos que as palavras usadas no poema têm uma tonalidade nasal que sugere interioridade. Essa jornada interior, que vai do primeiro verso ao último, repetindo a palavra ‘amor’ em combinações de substantivo e verbo, coloca esse sentimento no cerne da existência do poema e do poeta.

O poeta ama demais, e seu amor é totalizante, a ponto de ele não saber se suporta amar assim. É uma agonia, a agonia do gozo e da morte. A última estrofe funde essas duas concepções, uma carnal demais e outra que flerta com a finitude do corpo e a elevação da alma.

“E de te amar assim, muito e amiúde”, dize o poeta, “É que um dia em teu corpo, de repente/ Hei de morrer de amar mais do que pude.” Morre, mas renasce. Ressurge na circularidade das coisas, o eterno retorno.

Filosofia poética

O poema afirma que a totalidade do amor está além do que nos é possível. Nossa capacidade de amar não suporta o amor total. Essa concepção também é existencialista e está no centro das discussões da filosofia moral do século XX. Quem não ama não vive. Mas amar demais é ir de encontro à morte.

O filósofo francês Vladimir Jankélévitch escreveu um livro inteiro para falar do paradoxo da existência e colocou o amor no cerne dessa discussão. “Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simples fantasma”, diz em O paradoxo da moral.

Tal como Vinicius, Jankélévitch via no amor uma condição essencial da vida, e ao mesmo tempo, transcendente a ela. “Podemos amar até morrer – é essa contradição intestina que é demente, em verdade absurda, e, em certo caso, sublime.” O amor trespassa o corpo da vida no indivíduo, que morre, e por ser mortal, não consegue sustentar ad infinito o amor.

“O amor infinito, com sua abnegação infinita”, diz Jankélévitch, “tem necessariamente como sujeito um ser finito”. Eis o mesmo drama do poeta, que sabe de tudo isso também. O filósofo francês, ligado ao pensamento clássico e a ideias contemporâneas suas como as de Henri Bergson, tacitamente se comunica com essa poesia de Vinicius.

Todas as palavras caras ao existencialismo cristão estão no “Soneto do amor total”, como verdade, realidade, liberdade, eternidade, instante, mistério e virtude. Elas se juntam ao bojo do poema e criam uma polifonia própria, a música do amor total, cujo estribilho é a frase “amo-te”, ecoando todo o poema.

Desse modo, o amor pulsa no corpo do poema, que começa com o verbo amar no presente e termina com o verbo poder no passado, mas prevendo um futuro, dentro de uma circularidade que evoca a morte, mas de forma ambígua, pois morrer no corpo da mulher amada é o orgasmo, a morte ideal, que só o amor (ou o sexo) é capaz de proporcionar.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 27/11/2011)

domingo, 20 de novembro de 2011

sábado, 19 de novembro de 2011

Solano Trindade e a poesia negra

                                                                                                                                                                 Foto: Revista Raiz


“Lincharam um homem/ entre os arranha-céus/ (li num jornal)/ procurei o crime do homem/ o crime não estava no homem/ estava na cor de sua epiderme...”. Este poema de Solano Trindade (1908-1974), intitulado “Civilização branca” demonstra bem que tipo de poeta ele é, um poeta negro, claro.

Sua poesia não trata de militância, trata-se, isso, sim, de uma realidade ainda hoje complicada para quem é negro no Brasil. Depois de Cruz e Sousa, passadas várias décadas de silêncio em torno da temática do negro, ele apareceu como um bálsamo.

Inteligente e conhecedor das técnicas da poética moderna, não quis se fazer passar por Mallarmé tupiniquim. Embrenhou na densa mata, olhou para os guetos, para a história e para a marginalização sistemática dos negros e focou sua poesia no próprio universo de sua consciência.

Criou uma poesia ao som dos atabaques, do aguê, e toda a musicalidade encontrada nos cerimoniais afros, o culto aos deuses, sempre falando de amor, evocando cidades, pessoas, expondo a violência contra o negro, mas também a festa desse mesmo negro.

Em um de seus livros mais significativos na questão da consciência negra, Cantares ao meu povo, de 1961, Solano Trindade escancara a força de sua poética e de sua revolta. Mas há sempre um acalanto. Seus brados trazem sempre uma carga poderosa e ao mesmo tempo suave.

Diáspora

Seus versos meio que flutuam sobre a face do país como vento, que pode ser breve e leve, e também mensageiro de tempestade e dor. No poema “Canto da América”, o poeta dá o tom de sua verve, indicando na abertura os ritmos cantados na escansão dos versos: blues, swings, sambas, frevos, macumbas, jongos.

“Ritmos de angústia e de protestos”, diz o poema, “estão ferindo os meus ouvidos !...” E em seguida desfecha a diversidade de sons pelos quais canta a América, buscando a união junto ao sentimento da diáspora:

São gemidos seculares da humanidade ferida
que se impregnaram nas emoções estéticas
da alma americana...
É a América que canta...

Esta rumba é um manifesto
contra os preconceitos raciais
Esta conga é um grito de revolta
contra as injustiças sociais
Este frevo é um exemplo de aproximação
e de igualdade...


O sentimento de diáspora está presente no coração de todo negro de consciência despertada. Está presente na literatura, na música e nas artes de modo geral, nos ensaios sociológicos escritos por negros, na dança, nos ritos e nos cultos aos deuses afros em toda a América.

Local e global

Só para fazer aqui uma comparação e mostrar tanto a riqueza dessa poesia que canta aos negros da América quanto a pujança da outra, feita por um negro que canta ao mundo todo, enquanto Solano Trindade faz versos na simpleza das formas, Cruz e Sousa sobe às alturas, mas também fala do negro, de si mesmo, cantando à alma universal.

Solano Trindade canta a seu povo em todos os cantos da América, no sentimento de diáspora, de rearranjamento no espaço e no tempo, na tentativa de entender a nova identidade, que já não é mais africana, mas sem deixar os símbolos da velha cultura para trás, uma vez que ela é seu sustentáculo, a sua arca.

Se a poesia de Cruz e Sousa nos ensina que o negro de gênio educado nos moldes da cultura ocidental, aprendendo a dominar as técnicas no veio da linguagem utilizada pelos grandes mestres dessa cultura, consegue feitos à altura de qualquer homem branco, a de Solano Trindade nos dá o presente dos ritmos simples, com os instrumentos da própria cultura negra.

Em Cantares ao meu povo, há uma infinidade de formas construídas para dar conta desse universo de afirmação, ao mesmo tempo de protesto, que revela o medo, a dor, a revolta. Tudo isso vem entre risos, danças, pouca mágoa, é verdade, mas está no sulco da memória que não deixa esquecer a exploração no passado e as injustiças no presente.

Entre uma verdade e outra, a música e a sensualidade dos corpos. Como no poema “Macumba”, que revela ao mesmo tempo o rito e a riqueza de sons e de instrumentos, com os negros tocando o “aguê/ o caxixi/ o agogô/ o engona/ o gã/ o ilu/ o lê/ o ronco/ o rum/ o rumpi.”

Quando se trata da realidade dos negros, no entanto, a festa sempre abre espaço para a sombra dos males que eles sofreram, e sofrem. Entre os poemas mais conhecidos de Solano Trindade está “Tem gente com fome”, que periodicamente aparece em cartilhas e livros do ensino fundamental.

Fome e versos

Em 2008, quando se celebraram os cem anos de nascimento do poeta, a editora Nova Alexandria publicou o poema separado e rotulado como literatura infanto-juvenil, mas é muito mais que isso.

O poema recria o movimento, o som de um trem e a paisagem por onde ele passa, crivando uma espécie de geografia da fome. “Trem sujo da Leopoldina/ correndo correndo/ parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome”, enquanto vai passando por bairros pobres do Rio de Janeiro.

E finaliza com um tom de ironia, denunciando uma situação que até hoje ainda se vê, ora por parte de governantes, ora por parte da elite econômica (que geralmente controla os rumos da política) e que não quer que se mostre a face faminta do país.

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 20/11/2011)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A sonoridade da guerra



Os romances de guerra são inúmeros. Sobre a Segunda Guerra Mundial, então, há uma infinidade deles, de ex-soldados, de ex-prisioneiros de campo de concentração, de escritores que pesquisaram o período, de autores que criam em cima daquela atmosfera sem estudar profundamente o ambiente.

Há romances best-sellers, como O buraco da agulha, de Ken Follet, há os trágicos, como É isto um homem?, de Primo Levi, os diários, como o de Anne Frank. E há Guerra em surdina, do ucraniano Boris Schnaiderman, escrito em português, 20 anos depois de a Segunda Guerra acabar, guerra da qual ele participou junto às tropas brasileiras.

Schnaiderman, que nasceu na Ucrânia, em 1917, e veio para o Brasil aos oito anos de idade, participou da campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como sargento de artilharia, e presenciou de perto o horror da guerra. Seu romance é costurado numa mescla de focos narrativos que captam todas as vozes, cercando os fatos e o ambiente de vários ângulos possíveis.

Desse modo, ele mostra como a guerra desumaniza o homem, degrada-o, colocando a condição humana numa situação de absurdo. Aliás, o absurdo é uma presença constante nesse livro, e em diversos níveis, o que lembra um pouco os personagens de Albert Camus, como o que acontece no banheiro do navio, a caminho da guerra, em que os praças se encaram, sentados no vaso, um de frente para o outro, na hora da necessidade.

Outro exemplo camusiano se dá na repetição do ato de um segundo-sargento, responsável pela cozinha de uma unidade da FEB. Ele começa a contar uma pilha de latas de comida em conserva, mas quando está próximo dos cem, pensa na namorada. Desconcentra-se, perde a conta e tem de começar tudo de novo.

O absurdo da cena aproxima o cozinheiro ao personagem de Sísifo, o herói mitológico preferido de Camus. Sísifo driblou a morte duas vezes, e por isso fora condenado por Zeus a rolar uma pedra até o topo da montanha, mas antes de chegar, a pedra despencava de novo, e o anti-herói refazia seu trabalho, condenado a uma eterna repetição.

O que Schnaiderman deixa transparecer em seu romance é justamente esse contrassenso da guerra. Sua narrativa metralha palavras de forma precisa, concatenando um discurso límpido e fluente, cuja leitura não se deixa pela metade. O primeiro capítulo é um dos mais vertiginosos rumo à sangria do conflito, que culminou na vitória da FEB no Monte Castelo.

A meio tom

Mas o conflito maior era interior. Esta é a mensagem do autor, que demorou tanto tempo para escrever sua história porque não achava um tom adequado. Havia muitas perspectivas, muito drama dentro dele mesmo.

A palavra ‘surdina’ diz bastante de sua intenção. Significa, entre outras coisas, uma voz a meio tom, quase um sussurro, e também é o nome de um aparelho que serve para abafar a sonoridade de certos instrumentos musicais. Imagine o zunido da bala, as explosões, os gritos de dor, a revolta de não querer estar no front. Agora ponha tudo isso na alma dos indivíduos.

A força do romance de Schnaiderman está nessa capacidade de expor o drama de uma guerra pelo ponto de vista de quem mata e morre, não pelo de quem manda matar, que também está presente na trama, mas na revolta dos comandados. Uma cena no começo do livro, quando tudo vem na velocidade do tiro, mostra bem a resistência e o conflito em surdina.

Os homens foram mandados para exame de saúde. Ficaram descalços e de busto nu, andando de sala em sala da Policlínica Militar. De vez em quando, entravam numa sala, onde eram submetidos a exame sumário.


O médico militar encarregado do Exame Neuropsíquico nem erguia os olhos do papel em que vinham impressas as perguntas que devia fazer:

— Gosta da vida militar?
— Não, senhor.
— Pretende fazer carreira no Exército?
— Não, senhor.
— Houve algum louco em sua família?
— Não, senhor.
O médico rabiscava “normal” na ficha e gritava:
— O seguinte!


Imprescindível

Crítico literário, ensaísta e tradutor do russo, Boris Schnaiderman é professor aposentado pela Universidade de São Paulo (USP), e um dos fundadores do curso de estudos russos dessa instituição.

Na lista de suas traduções figuram os clássicos mais sublimes da literatura mundial, como Memórias do subsolo, Um jogador, O eterno marido, Nietotchka Niezvanova, todos de Dostoievski, além de autores como Tolstoi e Tchekhov.

Em 2010, ele lançou suas memórias, em que narra sua rica aventura de vida, contando passagens que marcaram sua infância, como quando assistiu aos bastidores da filmagem das cenas da escadaria do filme Encouraçado Pontemkin, obra prima de Sergei Eisenstein.

Este ano, ele lançou Tradução, ato desmedido, em que analisa a relação de fidelidade e liberdade de recriar na arte de traduzir. Guerra em surdina é seu único romance. Em 2004, a editora Cosac & Naify lançou a quarta edição do livro, que não é exatamente autobiográfico.


Entre dados que são de seu testemunho, o autor também cria, e o resultado é este romance imprescindível ao leitor da literatura brasileira, não só aos que gostam de narrativas de guerra, mas também aos que buscam a crítica humanista no crivo da arte.

sábado, 12 de novembro de 2011

Réplica: Mirisola responde à Folha

Na edição deste sábado da Folha de S. Paulo, o escritor Marcelo Mirisola replicou o texto de Josélia Aguiar, do sábado passado (5 de novembro), em que a jornalista e blogueira, a propósito do novo livro do escritor paulistano, Charque, fala das polêmicas e de desafetos em torno dele.

Como eu havia escrito um texto ecoando essa coisa toda, vou ecoar também a réplica. Segue abaixo.


RÉPLICA

Como se deve servir o "Charque"

MARCELO MIRISOLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Fama de encrenqueiro atrapalha lançamento de livro de Mirisola."

Eis o título da matéria publicada nesta Folha na edição de sábado passado.

Um encrenqueiro de verdade, desses que frequentam manchetes sensacionalistas, teria -no mínimo- pedido indenização por danos morais. Não vou fazer isso.

De qualquer forma, quero dizer que é muito triste estar aqui exercendo o direito de resposta em vez de falar de literatura, que é o que deveria importar em um caderno de cultura.

Mas vamos lá. Logo no início da "matéria", a repórter afirma que, nos últimos dez anos, depois de eu ter publicado o "Azul do Filho Morto", apareci na web e na imprensa mais por conta de "fanfarras" e "polêmicas" do que por conta dos livros que eu deveria ter escrito.

Para ela, "Bangalô", "Joana a Contragosto", "Memórias da Sauna Finlandesa", entre outros seis títulos publicados, não passam de bizarrias, e daí depreende que o período em que fui cronista da AOL e os três anos que sou colunista do site Congresso em Foco devem significar marmelada e goiabada.

Os palhaços quem são? Decerto meus leitores e os editores que me publicaram ao longo desse tempo.

A repórter acredita que meu chibantismo afastou-me do convívio civilizado de colegas, curadores e críticos afins.

Graças a Deus!, quero distância dessa gente cultivada que promove bacanais com dinheiro de renúncia fiscal e frequenta os mesmos saraus da ilustríssima repórter.

Não sou despachante, meu lance é literatura.

Isso não quer dizer que eu seja um homem amargo e irascível, como a "matéria" quis me vender.

Ao contrário, sempre recebi de braços abertos quem me procurou para entrevistas e se, eventualmente, minhas reações parecem desproporcionais, podem apostar que não são gratuitas.

Jamais usaria "cofrinhos peludos" para ilustrar minhas ideias e/ou embalar meus ressentimentos.

Tenho educação, e ainda me sobra muito estilo e independência -essas coisas que devem contrariar o "modus faciendi" e envenenar a rotina dos tais "curadores", "críticos" e "colegas de trabalho". Lamento.

Enfim. Dizer que estou mendigando resenha só não é mais leviano e estapafúrdio do que terminar o texto dizendo que eu vou ser "retratado" num livro infantil do qual sou autor, com Furio Lonza.

A repórter não teve acesso a esse livro, portanto a informação é falsa e incita o leitor distraído a deduzir que o autor em questão é um tolo inconsequente e carente (em busca de uma resenha) que não deveria ser levado a sério.

Se tem alguma criança mostrando o "cofrinho peludo em festa de aniversário" no lugar de tratar de literatura, essa criança (ou fanfarrão) seguramente não sou eu.

Ah, e o lançamento que a Folha não cobriu foi um sucesso.

MARCELO MIRISOLA, 45, é autor de 12 livros, entre os quais "Charque" (Barcarola, 2011)".

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A beleza diária da música

Foto: Marco Novack


É doce ouvir A Banda Mais Bonita da Cidade, que acaba de disponibilizar seu primeiro álbum na internet para quem quiser escutar (clique aqui). A voz da única mulher do grupo, Uyara, se sobressai nas canções. O texto de um release anterior de divulgação da banda diz que “a vocalista baixinha cresce quando sobe ao palco e canta de forma emocionada.”

E é verdade. Mas os outros integrantes pontuam o tecido vocal ao longo das 12 músicas, ora fazendo back vocal, ora tomando o espaço da primeira voz. Há um jogo de vozes e estilo dentro da concepção do álbum homônimo que acaba sendo a assinatura da banda.

Entre a suavidade e a força muito bem dosada por Uyara, o ouvinte se deleita com a miscelânea de sons, a babilônia de batidas e estilos, baladas, blues, soul, toques mais voltados para a MPB e rock em letras que falam do cotidiano. A maioria das canções traz palavras comuns do dia a dia, mas vestidas de grande musicalidade, que é sempre o que faz a palavra cantada se tornar bonita.

Mas não é só isso. Junte-se a ela, a plasticidade do verbo. Não são palavras a esmo, há sempre uma intenção que atravessa a rima rumo à poeticidade elaborada em cima do comum, e até do patético. É visível a presença da literatura e do cinema nas composições.

“Solitária”, por exemplo, é uma música marcada cenicamente. É quase um curta metragem. A moça escreve ao namorado para falar de sua depressão, e esbraveja, chora, se sacode toda verbalmente, sem deixar de imaginar a reação dele, na leitura da carta, impávido.

A relação não deu certo, e ela quer acabar com tudo de um modo original. Quer se matar com uma lâmina de barbear. “Quando você ler esse bilhete/ Já estarei na rodoviária/ Quem sabe até na alta estrada/ Viajei pra um cidade/ Chamada solitária”, diz a letra, para mais adiante expor as vísceras num verso: “Vou cometer haraquiri/ Mesmo sabendo que nesse momento você ri.”

Notável
Tristeza, reflexão, celeridade urbana, depressão, amor, amor, amor sempre, como fruto inevitável das relações. Dor de amor, solidão e tristeza, em meio à beleza forjada e cantada pela Banda Mais Bonita da Cidade. É um trabalho notável, sim. Um grupo de jovens artistas que veio para ficar, sem dúvida.

Em “Mercadorama”, o cotidiano de Curitiba aflora nos versos. Mercadorama é uma rede de supermercados de médio porte muito conhecida na capital paranaense, onde moram os integrantes da banda. A canção fala de uma noite atípica de um jovem casal que vive o drama de cuidar do primeiro filho.

O álbum da BMBC é uma espécie de pop rock oxigenado, mas aí já é um rótulo, coisa que a banda não curte, e com toda razão. Suas canções são camaleônicas. “Aos garotos de aluguel”, por exemplo, flerta com o brega trazendo elementos de outros estilos, como o blues.

Outra coisa interessante desses jovens artistas é a importância que dão ao trabalho com a palavra. E neste caso, o álbum é avaliado pelas assinaturas das composições. A banda é essencialmente intérprete, mas seus integrantes sabem o que querem na hora de escolher as canções.

Eles escolhem bem os compositores, muitos deles amigos do grupo de longa data. O álbum inclui a canção “A balada da bailarina torta”, o primeiro hit da banda na internet, antes do estouro surreal de “Oração”. Essas duas canções são de Leo Fressato. Mas um outro parece roubar a cena no quesito belas letras: Luis Felipe Leprevost.

Ele está presente em quase todas as composições, e geralmente as mais belas. É compositor de “Solitária” e “Se eu corro”. Em todas as canções do álbum, as letras têm o que se pode chamar de consciência literária. Não é só um casamento com a melodia. A voz da letra salta para além dos arranjos.

Em “Se eu corro”, há uma homenagem clara a Roberto Carlos. A música traz uma voz masculina junto com a de Uyara, compondo um dueto maravilhoso. “Se eu corro/ Eu corro demais só pra te ver meu bem/ É que eu quero um socorro/ Se eu corro”

BMBC tem um som intimista. Não é de grande agitação, mas também oferece aos ouvidos uma inquietação, desperta uma vontade de cantarolar, como quem quer ser filósofo para pensar (e cantar) as coisas banais do cotidiano, que, no fundo, são as questões fundamentais. “Preciso cortar os cabelos/ Comprar mais um creme amarelo/ Retomar a semiótica/ Uma dieta de atleta/ Um protótipo uma meta/Uma nova ótica”.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 6 de outubro de 2011)

sábado, 5 de novembro de 2011

Um escritor em busca de resenha: Mirisola e as polêmicas

                                                                                                                                                                           Foto: Substantivo Plural
Mirisola: “Não sou convidado nem para quermesse de igreja. Fico em casa, isolado, trabalhando honestamente, enquanto as raposas se refestelam no galinheiro chamado literatura brasileira” (In: FSP)

Não sou versado na literatura de Marcelo Mirisola (1966). A primeira vez que ouvi falar dele, eu morava em Curitiba, em 2002, e li uma entrevista sua na Gazeta do Povo, quando ele voltava de um tempo ancorado em Florianópolis (para escrever O azul do filho morto [editora 34]).

Depois acompanhei suas polêmicas pela imprensa. Uma delas foi quando alguém reuniu disposição para convidá-lo a escrever um texto sobre a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2006.

Não deu outra. Mirisola isolou os bons fluidos e desceu a lenha em tudo, cunhando inclusive um novo termo às namoradinhas das letras, Marias Rodapé.

Como não era comigo (e quando não é com a gente, a tendência é que as coisas se tornem engraçadas, a menos que a gente seja um xiita), morria de rir com tudo isso.

Em 2007, já morando em São Paulo (voltei para Goiânia só em 2009), eu estava no Sebo do Bac, na Praça Roosevelt (nem sei se ainda está lá), perto do Satyros, procurando um livro de Georges Perec, quando olhei para a cadeira ao lado e vi Mirisola.

Puxei conversa. “Você é o Mirisola, né?”. “Sim, sou eu mesmo”. Conversou comigo como um lorde, numa educação e civilidade de qualquer homem urbano que sabe conversar. Eu disse que sempre ouvia falar dele, e estava querendo ler um livro seu. Qual ele me indicaria?

Homem do subsolo

Mirisola me indicou justamente O azul do filho morto. Mas um colega seu, que participava da conversa, bem humorado, disse que talvez eu não fosse gostar do livro. Puro preconceito (mas, num sentido bem light).

Na verdade, O azul é polêmico (Márcio Scheel, no blog Revista Cidade Sol, do Lúcio, disse que Mirisola fez um romance de deformação, em relação a esse livro, que também me fez rolar de rir) e seu personagem, Marcelo Mirisola, é um escroto de marca maior, na linhagem de Memórias do subsolo.

É um livro fantástico, arrebatado de uma poesia intensa e uma tristeza velada pelos palavrões, um drama interior suspenso pela violência verbal, pela descarga de ódio em tudo quanto é tipo e coisa, com raras concessões. “Alguma coisa, imagino, devia estar errada pro Kid Abelha (Paulinha Toller fica fora desta bandalha) se dar bem, em 1984.

Ofensas a quem?

O azul reconstrói, e de alguma forma destrói, a vida inteira das décadas de 1980 e 1990. Mas é bom que se saiba que o escritor Marcelo Mirisola definitivamente não é exatamente o personagem que aparece no livro, é um duplo (dúbio), esse troço comum da literatura contemporânea.

Entre as passagens mais raivosas, o leitor pode ler coisas do tipo:

“Uma vez enfiei o garfo no braço da faxineira. A negrinha servia pras minhas cavalgadas. Tenho fotos.”

“Adorei ver o Senna espatifado na Tamburello. Um dia vou festejar a morte do Ed Motta.”

“Para mim, os editores – com exceção do meu que está pagando uma merreca pr’eu escrever este livro – são todos uns chupadores de pica, analfabetos, cegos por opção, degenerados, mercenários e débeis mentais. Vale a mesma coisa pros jurados de concursos literários e pros poetas em geral. Odeio poetas.”

“Pior que poeta, só livro psicografado. Esse tal de Emmanuel é um espírito de porco, apenas não é mais covarde, tarado e mau caráter do que escritor de livro infantil (incluo aí os autores de autoajuda e policiais, enredo é coisa de criança). Os irmãos Gasparetto o recebem (ou gerenciam, o tal do Emmanuel) via anal – de quatro – bundinha virada pros céus. A mãe deles, dona Zíbia, é a cópia fiel da minha madrinha, vai na mesma cabeleireira. Fui batizado na Igreja do Calvário. Os exus e orixás, todavia, são mais honestos porque são deliberadamente analfabetos, não escrevem livros bem-intencionados. Sincretismo dá nisso.”

Talvez por isso, o amigo de Mirisola me achasse inadequado para a leitura, porque sou negro. Para ele, me sentiria ofendido, como se a literatura não fosse feita para transgredir. É claro que a transgressão tem algo que vai além dos insultos gratuitos.

Há ali uma concepção estética, que passa pela técnica de narrar e pela capacidade do autor de rearranjar o mundo de modo que um novo sentido apareça, uma verdade escondida pela estampa da ética, pelos lençóis estendidos no varal das convenções, que tapam os outros sóis.

Os outros

Hoje, na Folha de São Paulo (Ilustrada), saiu um apanhado sobre Mirisola, a propósito do lançamento de seu livro mais recente, Charque (Companhia das Letras), com texto assinado por Josélia Aguiar.

“Charque, novo livro de Marcelo Mirisola, é uma continuação de ‘Azul do Filho Morto’ (2002), apontado por escritores e resenhistas como a melhor entre suas 12 obras.”, diz Josélia.

E aí desfia a novela em torno do autor. “Na década que separa os dois livros, o autor apareceu mais na web e na imprensa por fanfarras e polêmicas. Tantas que afastaram colegas, curadores e críticos e o tornaram difícil de tratar até em reportagens. ‘Mirisola equivale àquele tio que adora mostrar o cofrinho peludo nas festinhas de aniversário’, define Joca Terron, o único que aceitou fazer críticas às claras.”

“‘Não li o novo livro, mas ele parece ter parado em ‘Azul’. Os mais recentes, assim como as entrevistas, por sua ingenuidade e ressentimento, me causam profunda vergonha alheia’”, continua Joca Reiners Terron, que também é escritor.

Apesar de sua saga de “escritor em busca de uma resenha”, conforme diz Josélia (que, aliás, deveria ser o título da matéria dela), há quem o elogie, segundo a própria jornalista. “Reinaldo Moraes e Marcelo Rubens Paiva elogiaram o novo livro.”

Mas é Marcelino Freire quem rouba a cena nesse quesito de elogios. Ele diz que “morre de rir com tudo isso.”

“‘Mirisola já falou mal de mim em blog, em livro, direta e indiretamente, já condenou o meu Jaburu, o meu Jabuti, já me chamou de Pavão Cabeçudo. Ele não me atinge. A sua literatura, sim, me atinge. Quero saber o que o Mirisola aprontou, como está avançando a sua literatura’”, diz Freire.

Na ocasião que encontrei Mirisola, por acaso, no Sebo do Bac, não me parecia um homem angustiado. Ele foi capaz de me incluir na sua roda de conversas sem nenhum tipo de arrogância. Acho mesmo que aquele cara que vi lá, naquele dia, é o próprio Mirisola, tranquilo, bebendo sua cerveja. O resto é literatura.

A tempo. Comprei o livro dele e pedi que assinasse. Ele escreveu um autógrafo, em letras garranchais, que até hoje na consegui ler. Na leitura de O azul do filho morto não me senti ofendido. Será que sou ofendido nesse autógrafo?

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia D

“O amor é primo da morte
E da morte vencedor
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor” (C. Drummond. A.)

sábado, 22 de outubro de 2011

Os desbravadores de mundos



No mundo da leitura, muitas são as maneiras de se buscar um novo livro ou um novo autor. As listas são um exemplo de como as coisas podem ser facilitadas, principalmente quando o organizador é gente da melhor qualidade para indicar alguma coisa.

Não é à toa que Umberto Eco, recentemente, lançou um livro chamado A vertigem das listas, para dizer que esse tipo de exercício vem de época muito remota e sofre mudanças séculos afora. Mas o que nos interessa aqui, neste momento, é um quadro mais variado e recente, de um fenômeno novo no mercado editorial, a lista de pessoas ou acontecimentos ao longo dos tempos.

No Brasil, quem lidera esse tipo de publicação é a Difel, selo editorial da Bertrand Brasil, que por sua vez faz parte do grupo Record. Em 2001, a Difel traduziu As 100 maiores personalidades da história. No ano seguinte, publicou Os 100 livros que mais influenciaram a humanidade, do admirável Martin Seymour-Smith (1928-1998), que havia lançado seu livro na Inglaterra no ano que viera a falecer.

Depois disso, uma série de outros livros com a mesma intenção veio a público pela mesma editora, mas quase todos de edições estrangeiras diferentes, como Os 100 maiores cientistas da história, Os 100 maiores mistérios do mundo, Os 100 maiores líderes militares da história.

Recentemente saiu Os 100 maiores visionários do século XX (Difel, 2011, 452 páginas, tradução de Milton Chaves de Almeida, R$ 49), organizado por Satish Kumar e Freddie Whitefield. Neste caso, cada um dos visionários ganhou um verbete, na maioria, escrito por outros autores que têm um conhecimento profundo sobra a obra do verbetizado. Raros são as autorreferências.

O livro foi publicado originalmente pela editora da revista britânica Ressurgence, que circula há 45 anos debatendo questões sobre o meio ambiente e suas conexões com a sociedade e o modo de vida sustentável. As pessoas que aparecem na lista estão ligadas de alguma forma à publicação, ou por terem escrito artigos para ela, ou por terem sido assunto recorrente em seus editoriais.

Nomes

De Jacques Cousteau e Gandhi a Bob Dylan, o livro se divide em visionários ecológicos, espirituais e sociais. As histórias contadas ali conseguem despertar o interesse do leitor, mas muitos verbetes não dão conta de retratar a luz presente em cada um desses visionários, e mesmo o conceito de visionário fica à deriva, à espera de uma interpretação de quem lê.

Segundo os organizadores, visionários são aqueles que entenderam bem o mecanismo de opressão e das guerras que solaparam o século XX, viram com profundidade a estupidez por trás disso e quiseram denunciar, muitas vezes pagando caro pela iniciativa do protesto. Um dos casos mais conhecidos, que está na lista, é o do líder da consciência negra Martin Luther King, assassinado em 1968.

Se por um lado, alguns perfis não funcionam, como o que buscou retratar Carl Gustav Jung, por outro, quando o autor do texto consegue dar seu recado, as pessoas surgem com a força e o carisma que elas devem ter de verdade, a força que as levou para lista, e aí, é um prazer descobrir a grande aventura humana.

Há nomes que já estão na cabeça do grande público leitor. O que vale, no entanto, é enxergar os que estão distantes do nosso conhecimento, como a ecologista Terry Tempest Williams. O texto sobre ela nos convida a entrar em seu universo, e de quebra já aponta o caminho, sabendo das limitações do espaço que tem para dizer tudo sobre uma mulher fantástica.

“Se quer saber por que precisamos tanto de Terry Tempest Williams e de sua voz no mundo, leia Labor. Leia qualquer texto que ela tenha escrito, mas sobretudo esse ensaio lírico, redigido aos 44 anos, na virada do milênio, pela autora amante da natureza nascida em Utah [Estados Unidos].”

Terry é uma escritora ambientalista. Seus livros chamam a atenção para as diversas maneiras de nos conectarmos com o planeta, coisa que não conseguimos fazer mais. Sua família trabalha com instalação de tubulações no deserto, terra que ela conhece como ninguém. “Seu trabalho é tão político quanto poético”, diz Mark Tredinnick, autor do perfil de duas páginas.

“Ela tem uma eloqüência profética que permite que seus leitores – e os alunos e filhos desses leitores – imaginem que outro mundo é possível e vejam como podem, desde já, ajudá-lo a se tornar realidade”, comenta Tredinnick.

Bravura

Talvez os textos que cobrem os visionários ecológicos sejam os mais instigantes, porque retratam as pessoas menos conhecidas pela grande massa, embora muito respeitadas em seu meio e no ambiente do poder. É o caso da norte-americana Rachel Carson, que enfrentou a poderosa indústria química de defensivos agrícolas e pesticidas, como a Monsanto.

No final dos anos de 1940, havia uma política agressiva de pulverização aérea sobre cidades, fazendas e florestas com o pesticida DDT, nos Estados Unidos. Rachel era contra, e travou uma colossal batalha para impedir essa espécie de limpeza química.

Em 1962, ela publicou o livro Primavera silenciosa, chamando a atenção do mundo inteiro e principalmente da sociedade americana para os problemas que poderiam decorrer daquela política. O então presidente John F. Kennedy passou a dar mais importância ao caso.

Kennedy pediu um estudo detalhado sobre a questão do DDT. Para tanto foi criado “um comitê de investigação do uso de pesticidas, o qual produziu rapidamente um relatório criticando as indústrias químicas e endossando os pontos de vista de [Rachel] Carson.” A batalha vencida pela visionária foi de suma importância para o meio ambiente, mas a guerra continua até hoje.

No campo dos visionários espirituais há nomes como o do libanês Kahlil Gibran (1883-1931), que pedia retoricamente: “mantenham-me longe da sabedoria que não chora, da filosofia que não ri e da grandeza que não se curva diante das crianças.” Pregava a humildade, que para ele era “a interligação entre todas as coisas”.

Vivia modestamente, se dedicando apenas à vida espiritual, escrevendo livros que de alguma forma pudessem levar mensagem de conforto e sabedoria a quem precisasse. Sua frugalidade também era bastante conhecida. Recusava todos os assédios da vida confortável que lhe chegaram após a fama.

“Mesmo na década de 1920, quando a fama – e até a adulação – e alguma riqueza vieram ao seu encontro, ele continuou a morar num estúdio de cômodo único em Greenwich Village, Nova York”, diz o autor de seu perfil, Robin Waterfield.

Bom vinho

Nesse desfile de nomes, outras figuras interessantes aparecem com o crédito de visionárias e ativistas importantes, que ainda dão as cartas em nossos dias. É o caso do italiano Carlo Petrini, criador do conceito de alimentação chamado Slow Food (contrário do Fast Food) e do movimento Terra Madre, mundialmente conhecido, que valoriza a produção de alimentos orgânicos.

Petrini está na categoria de visionário social, mas poderia estar também na de ecologistas. Segundo ele, “o agrônomo que não é ambientalista é idiota, e o ambientalista que não é agrônomo é um caso triste de pessoa.”

Os 100 maiores visionários do século XX é um livro para se ler como quem garimpa em páginas, de preferência tomando um bom vinho, com a calma da degustação. É uma espécie de amostra de grandes espíritos. Quem quiser se aprofundar, que corra atrás dos que lhe chamarem mais atenção. No final, há dicas de páginas na internet de cada um.

(Gilberto G. Pereira. Íntegra do texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pequeno amanhecer de compreensão



O livro Sobre a tradução (UFMG, 2011, 71 páginas, tradução de Patrícia Lavelle, R$ 24), do francês Paul Ricoeur, é um pequeno amanhecer de compreensão do outro. Morto em 2005, aos 92 anos, ele dedicou sua vida aos estudos que convergiam para a interpretação de linguagens, e foi assim que também se embrenhou nessa zona de brumas que é a relação entre nós e o estrangeiro.

A tradução, o entendimento da palavra estrangeira da melhor maneira possível, buscando a verdade do sentimento encerrado em cada vocábulo transportado, foi um dos interesses de Ricoeur, mas apenas nos últimos anos de sua longa vida é que ele veio a escrever sobre o assunto, publicando este pequeno tratado, em 2004, que agora sai no Brasil.

Professor de filosofia da Sorbonne, doutor em Letras, entre seus livros mais importantes estão A metáfora viva, Tempo e narrativa (em três volumes), e A simbologia do mal. Em Sobre a tradução, Ricoeur aponta para um caminho menos dolorido, mas não menos complexo, da profissão de traduzir. Ele começa analisando a tradução pelo viés da psicanálise, colocando-a como uma espécie de pulsão, um desejo.

Resistências

Segundo Ricoeur, traduzir um texto é um ato de mediação que se faz entre o estrangeiro, no caso, o autor, e o leitor. O tradutor está no meio desses dois extremos e precisa contentar a ambos, que resistem, tal como resiste também o próprio realizador da tradução. Tudo fica num impasse de luta, cada um no seu campo.

O autor oferece resistência por meio da língua em que escreve, com suas multiplicidades de sentido, um mundo inteiro que teria de ser transportado, conforme atesta Ricoeur neste parágrafo exemplar:

Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequências curtas ou longas. É a esse complexo de heterogeneidade que o texto estrangeiro deve sua resistência à tradução e, nesse sentido, sua intraduzibilidade esporádica.

O leitor consciente, por sua vez, no bojo de sua identidade cultural e nos meandros de sua própria língua que agora recebe a mensagem estrangeira, também vê com desconfiança a tradução.

“Essa resistência do lado do leitor não deve ser subestimada”, lembra Ricoeur. “A pretensão à autossuficiência e a recusa da mediação do estrangeiro nutriram em segredo muitos etnocentrismos linguísticos e, o que é mais grave, muitas pretensões à hegemonia cultural”, avalia. Mas, neste caso, ele se refere mais às culturas europeias, às línguas de lá do que ao leitor brasileiro, por exemplo, muito mais aberto à pluralidade.

Já a resistência do próprio tradutor se refere ao receio de não conseguir realizar sua tarefa. Ele “encontra essa resistência em vários estágios de seu empreendimento. Ele a encontra mesmo antes de começar sob a forma da presunção de não tradutibilidade, que o inibe antes mesmo de atacar a obra.”

As dificuldades não são poucas. Dentro da absoluta consciência do que é uma língua e do que são linguagens, o tradutor procura lidar com as múltiplas barreiras da tradução.

Aceitação

A primeira parte do livro é intitulada “Desafio e felicidade da tradução”. Mas, afinal, onde está a felicidade? Está na renúncia ao ideal da tradução perfeita. Fazer disso um luto e superá-lo pela aceitação de um traduzir possível, abrir-se às novas iluminações que puderam ser trazidas do universo estrangeiro.

Neste caso, com tal aceitação, o tradutor daria ao leitor um ganho sem perda, porque esta já estaria computada na conta do impossível.

“É justamente desse ganho sem perda”, diz Ricoeur, “que é preciso fazer o luto até a aceitação da diferença incontornável do próprio e do estrangeiro.” (...) “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação.”

A felicidade, portanto, pode ser encontrada pelo tradutor no que Ricoeur chamou de hospitalidade linguística. E isso não é pouco. Segundo o filósofo, a tradução de outras línguas nos ensina, no mínimo, que “é sempre possível dizer a mesma coisa de outro modo”.

Sobre a tradução nos diz muito em poucas palavras. E ainda nos joga perguntas que podem ser úteis na hora de tentar compreender o outro: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? Sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros?”

Paul Ricoeur é um mestre da hermenêutica e dos estudos fenomenológicos. Seu livro, além de nos dar um ensinamento, acaba sendo uma espécie de consolo para quem traduz, pelo conflito de linguagens, pela sensação de inépcia por não conseguir arrastar toda a carga emotiva e toda a riqueza de símbolos que o tradutor sabe haver ali.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O divã perfeito


Há um bom tempo, a escritora portuguesa Inês Pedrosa vem emplacando seus livros na predileção do leitor brasileiro. Nos últimos anos, ela estreitou seus laços com o Brasil, a ponto de desembarcar na Bahia para ver de perto o cenário de vida e morte do Padre Antônio Vieira, visita que resultou no romance A eternidade e o desejo (2007).

Mas muito antes deste livro com o pé nos calçadões de Salvador, a autora publicara outro que pode ser a gênese dessa aproximação, um livro em que se vê a forma esplêndida de sua técnica para falar de amor e das relações humanas, para destrinchar as leis do afeto em meio à selva do desejo.

Nas tuas mãos (Alfaguara Brasil, 2011, 204 páginas, R$ 37,90) é um dos primeiros romances da autora, de 1997. O que ele traz de especial é a maneira de olhar os sentimentos de três personagens femininos, um ligado ao outro de modo completamente incomum, por meio dos quais o leitor vai sondando o universo das mulheres portuguesas.

A escrita de Inês tem esse poder, quase psicanalítico, de nos transportar para as experiências que só existem na leitura. “Eu sou do tempo da palavra. Aprendi a fazer com que as palavras deslizassem sobre o meu corpo, lentamente, como pétalas caindo no Outono”, diz Jennifer, a mais velha das três mulheres, a primeira a aparecer na trama.

Jennifer está em seu diário, e quem o lê não é aquele a quem as palavras foram destinadas. Quem o lê são os olhos perplexos dos personagens seguintes, Camila e Natália. A primeira tece comentários sobre um álbum de família que vê, é assim que ela aparece na trama, e a segunda, escreve cartas para Jennifer, que jamais receberá, cujo diário é destinado a seu grande amor, que já morreu.

As três estão nessa dança de labirinto. As três querem resolver a questão humana do afeto, querem buscar a razão do amor ou do distanciamento afetivo que a vida muitas vezes nos impõe. Ao sondar a intimidade dessas mulheres, a autora cria uma paisagem nítida do significado possível das relações humanas, que nem sempre é aquilo que aparece.

Entrelaces

Ao apaixonar-se por António, que era apaixonado por Pedro, Jennifer aceitou um casamento de fachada com o primeiro, mas experimentou a solidão do desejo enquanto acompanhava o ardente caso de amor entre os dois homens no quarto contíguo. Por ser o mais voluptuoso, numa briga de casal, Pedro saiu com uma francesa, cujo resultado foi uma filha.

A francesa era militante do Partido Comunista e não pôde ficar com a criança (Camila), doando-a oportunamente para Jennifer criar como se fosse fruto de seu casamento com António. Quando cresceu, Camila se tornou fotógrafa, e, numa viagem à África, se apaixonou por um moçambicano guerrilheiro que morreu logo em seguida à concepção de Natália. Eis o trio solidão.

Sob os entrelaces de um triângulo amoroso, por um lado, e do triângulo afetivo por outro, a autora explora a essência das relações. E faz isso num texto primoroso, que explora a musicalidade das palavras e planta na seara do verbo todo o encantamento dos personagens e suas leituras de mundo.

Cada uma delas quer dizer o que sente. Cada uma delas tem uma visão particular do amor e dos laços afetivos. Ao mesmo tempo, esse olhar lançado sobre o mundo tem o que compartilhar com a sociedade inteira, a portuguesa, claro, mas também a universal. Nenhuma delas, no entanto, fala diretamente a quem interessa ouvi-las.

Jennifer escreve o diário na velhice, Camila organiza seu álbum na meia idade, e Natália, no fulgor de seus vinte e poucos anos, escreve as cartas. Nenhuma delas tem aquela conversa face a face que lava a alma, e só lhes resta transferir o desejo, o imenso amor e o incômodo da solidão, por meio da escrita, o divã perfeito.

“As pessoas passam metade da vida a maltratar-se uma às outras, por medo e necessidade de afirmação”, diz Jennifer em seu diário. Esta verdade bem dita só pode sair de um personagem que já reconheceu seus equívocos e que, no fim das contas, já viveu o bastante para entender o razoável funcionamento da vida.

Neste caso, Inês Pedrosa, que ainda é jovem (49 anos), empresta sua fina capacidade de olhar para a velhice os atributos do personagem mais intenso do romance, o mais apaixonado, o mais lírico e o mais rancoroso. “Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo.”

Centro e periferia

O livro de Inês também resplandece o brilho das observações sobre a sociedade portuguesa contemporânea, jogando luz sobre o passado recente. Além disso, Nas tuas mãos constrói um jogo de centro e periferia, não só em relação a própria intimidade e o outro, mas também em relação a Portugal e sua ex-colônia Moçambique, Europa e África, razão do velho mundo e o espírito africano.

Como em todo romance epistolar, o leitor aqui é um depositário de expectativas, é aquele que fica esgueirando-se para saber o que passa ao lado. E o que vemos de Portugal pela voz de Natália é um retrato cálido de uma vida aburguesada, bem diferente do que ela mesma tem a nos oferecer sobre a velha África.

Enquanto a noite avançava, os silêncios cresciam em novelos cada vez mais espessos. Lembrei-me das tardes de sábado na casa do Quicas. A porta estava sempre entreaberta, a música – invariavelmente blues – ouvia-se desde o fundo da escada. Cada um contribuía com uma bebida ou umas bolachas. Chegávamos, procurávamos uma almofada ou um canto de sofá, abastecíamo-nos de livros e revistas – o Quicas usava semanas a fio as mesmas calças de ganga preta e a mesma camisa cinzenta, mas tinha uma portentosa biblioteca de arte e banda desenhada – e ficávamos ali, lendo e ouvindo música, em silêncio, horas seguidas. E o silêncio era então um líquido quente que nos envolvia.

Tudo isso, Natália diz à Jennifer. Mas diz, talvez, mais a si mesma. Como fala consigo mesma quando tenta digerir as memórias da África paterna, que ela foi conhecer, menos por força do trabalho de arquiteta do que pelo amor ao pai que jamais conheceu, mas que estava presente sempre em suas palavras.

A África que Natália narra aqui não é mítica, é a pura realidade de uma ex-colônia, e a parte mais dura do realismo presente no livro de Inês.

À primeira vista julguei que o que ali estava, debaixo do néon da loja, em frente ao Ministério, era um monte de trapos empilhados, mas isso seria estranho numa cidade onde o lixo não chega nunca a amontoar-se, porque tudo o que uns deitam fora tem sempre, para outros, um préstimo qualquer. Um pedaço de lã esgarçada com um buraco para o pescoço pode voltar ainda a fazer as vezes de camisola, uma cadeira sem pernas transforma-se em para-vento ou lenha para a fogueira, os sapatos que sobraram de uns pés apagados por uma mina servirão ao próximo que passar no terreno de novo inocente. Na noite de Maputo, todos os montes de trapo têm gente dentro, muitas vezes ex-soldados de dez ou doze anos, que iniciaram a recruta aos cinco anos de idade, nos exércitos da Frelimo como da Renamo, pouco importa, para atirarem a matar a partir dos oito.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)