quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O divã perfeito


Há um bom tempo, a escritora portuguesa Inês Pedrosa vem emplacando seus livros na predileção do leitor brasileiro. Nos últimos anos, ela estreitou seus laços com o Brasil, a ponto de desembarcar na Bahia para ver de perto o cenário de vida e morte do Padre Antônio Vieira, visita que resultou no romance A eternidade e o desejo (2007).

Mas muito antes deste livro com o pé nos calçadões de Salvador, a autora publicara outro que pode ser a gênese dessa aproximação, um livro em que se vê a forma esplêndida de sua técnica para falar de amor e das relações humanas, para destrinchar as leis do afeto em meio à selva do desejo.

Nas tuas mãos (Alfaguara Brasil, 2011, 204 páginas, R$ 37,90) é um dos primeiros romances da autora, de 1997. O que ele traz de especial é a maneira de olhar os sentimentos de três personagens femininos, um ligado ao outro de modo completamente incomum, por meio dos quais o leitor vai sondando o universo das mulheres portuguesas.

A escrita de Inês tem esse poder, quase psicanalítico, de nos transportar para as experiências que só existem na leitura. “Eu sou do tempo da palavra. Aprendi a fazer com que as palavras deslizassem sobre o meu corpo, lentamente, como pétalas caindo no Outono”, diz Jennifer, a mais velha das três mulheres, a primeira a aparecer na trama.

Jennifer está em seu diário, e quem o lê não é aquele a quem as palavras foram destinadas. Quem o lê são os olhos perplexos dos personagens seguintes, Camila e Natália. A primeira tece comentários sobre um álbum de família que vê, é assim que ela aparece na trama, e a segunda, escreve cartas para Jennifer, que jamais receberá, cujo diário é destinado a seu grande amor, que já morreu.

As três estão nessa dança de labirinto. As três querem resolver a questão humana do afeto, querem buscar a razão do amor ou do distanciamento afetivo que a vida muitas vezes nos impõe. Ao sondar a intimidade dessas mulheres, a autora cria uma paisagem nítida do significado possível das relações humanas, que nem sempre é aquilo que aparece.

Entrelaces

Ao apaixonar-se por António, que era apaixonado por Pedro, Jennifer aceitou um casamento de fachada com o primeiro, mas experimentou a solidão do desejo enquanto acompanhava o ardente caso de amor entre os dois homens no quarto contíguo. Por ser o mais voluptuoso, numa briga de casal, Pedro saiu com uma francesa, cujo resultado foi uma filha.

A francesa era militante do Partido Comunista e não pôde ficar com a criança (Camila), doando-a oportunamente para Jennifer criar como se fosse fruto de seu casamento com António. Quando cresceu, Camila se tornou fotógrafa, e, numa viagem à África, se apaixonou por um moçambicano guerrilheiro que morreu logo em seguida à concepção de Natália. Eis o trio solidão.

Sob os entrelaces de um triângulo amoroso, por um lado, e do triângulo afetivo por outro, a autora explora a essência das relações. E faz isso num texto primoroso, que explora a musicalidade das palavras e planta na seara do verbo todo o encantamento dos personagens e suas leituras de mundo.

Cada uma delas quer dizer o que sente. Cada uma delas tem uma visão particular do amor e dos laços afetivos. Ao mesmo tempo, esse olhar lançado sobre o mundo tem o que compartilhar com a sociedade inteira, a portuguesa, claro, mas também a universal. Nenhuma delas, no entanto, fala diretamente a quem interessa ouvi-las.

Jennifer escreve o diário na velhice, Camila organiza seu álbum na meia idade, e Natália, no fulgor de seus vinte e poucos anos, escreve as cartas. Nenhuma delas tem aquela conversa face a face que lava a alma, e só lhes resta transferir o desejo, o imenso amor e o incômodo da solidão, por meio da escrita, o divã perfeito.

“As pessoas passam metade da vida a maltratar-se uma às outras, por medo e necessidade de afirmação”, diz Jennifer em seu diário. Esta verdade bem dita só pode sair de um personagem que já reconheceu seus equívocos e que, no fim das contas, já viveu o bastante para entender o razoável funcionamento da vida.

Neste caso, Inês Pedrosa, que ainda é jovem (49 anos), empresta sua fina capacidade de olhar para a velhice os atributos do personagem mais intenso do romance, o mais apaixonado, o mais lírico e o mais rancoroso. “Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo.”

Centro e periferia

O livro de Inês também resplandece o brilho das observações sobre a sociedade portuguesa contemporânea, jogando luz sobre o passado recente. Além disso, Nas tuas mãos constrói um jogo de centro e periferia, não só em relação a própria intimidade e o outro, mas também em relação a Portugal e sua ex-colônia Moçambique, Europa e África, razão do velho mundo e o espírito africano.

Como em todo romance epistolar, o leitor aqui é um depositário de expectativas, é aquele que fica esgueirando-se para saber o que passa ao lado. E o que vemos de Portugal pela voz de Natália é um retrato cálido de uma vida aburguesada, bem diferente do que ela mesma tem a nos oferecer sobre a velha África.

Enquanto a noite avançava, os silêncios cresciam em novelos cada vez mais espessos. Lembrei-me das tardes de sábado na casa do Quicas. A porta estava sempre entreaberta, a música – invariavelmente blues – ouvia-se desde o fundo da escada. Cada um contribuía com uma bebida ou umas bolachas. Chegávamos, procurávamos uma almofada ou um canto de sofá, abastecíamo-nos de livros e revistas – o Quicas usava semanas a fio as mesmas calças de ganga preta e a mesma camisa cinzenta, mas tinha uma portentosa biblioteca de arte e banda desenhada – e ficávamos ali, lendo e ouvindo música, em silêncio, horas seguidas. E o silêncio era então um líquido quente que nos envolvia.

Tudo isso, Natália diz à Jennifer. Mas diz, talvez, mais a si mesma. Como fala consigo mesma quando tenta digerir as memórias da África paterna, que ela foi conhecer, menos por força do trabalho de arquiteta do que pelo amor ao pai que jamais conheceu, mas que estava presente sempre em suas palavras.

A África que Natália narra aqui não é mítica, é a pura realidade de uma ex-colônia, e a parte mais dura do realismo presente no livro de Inês.

À primeira vista julguei que o que ali estava, debaixo do néon da loja, em frente ao Ministério, era um monte de trapos empilhados, mas isso seria estranho numa cidade onde o lixo não chega nunca a amontoar-se, porque tudo o que uns deitam fora tem sempre, para outros, um préstimo qualquer. Um pedaço de lã esgarçada com um buraco para o pescoço pode voltar ainda a fazer as vezes de camisola, uma cadeira sem pernas transforma-se em para-vento ou lenha para a fogueira, os sapatos que sobraram de uns pés apagados por uma mina servirão ao próximo que passar no terreno de novo inocente. Na noite de Maputo, todos os montes de trapo têm gente dentro, muitas vezes ex-soldados de dez ou doze anos, que iniciaram a recruta aos cinco anos de idade, nos exércitos da Frelimo como da Renamo, pouco importa, para atirarem a matar a partir dos oito.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

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