segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O inferno confirmado



Ler a pentalogia Inferno provisório, de Luiz Ruffato, não é fácil, não pelo que se imagina costumeiramente. É uma prosa compreensível, apesar dos sumidouros da linguagem, com personagens que aparecem e desaparecem da trama, vêm, dão seu recado e retornam ao nada de onde surgiram.

É difícil porque consegue retratar uma realidade complexa, sem perder a poesia daquilo. Para lê-lo, é preciso ter o coração na mão. Desde o primeiro volume, Mamma, son tanto felice, de 2005, passando por O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e, agora, Domingos sem Deus (Record, 2011, 112 páginas, R$ 32,90), o último da série, o que prevalece é a sensação de desamparo.

O projeto de Ruffato é mostrar a labuta diária do homem do interior, que sonha em melhorar de vida, e acha que isso só é possível nas grandes cidades, nos parques industriais. Ele mostra a diáspora incessante dos moradores de pequenas cidades do interior de Minas Gerais rumo a São Paulo e Rio de Janeiro.

Em Domingos sem Deus, é como se o inferno fosse confirmado, no sentido de haver um ciclo de vida completamente sem perspectiva dentro da diáspora. Se o mundo não está legal, se tudo isso parece infernal demais para uma boa alma, as coisas vão melhorar. Essa é a premissa das personagens. Mas não melhoram. Ou melhoram pouco.

Como volume que fecha os caminhos possíveis, Domingos sem Deus é marcante justamente pela constatação do fracasso de quase todos, para ser brando. Quando alguém parece ter se dado bem na vida, é apenas uma miragem de quem olha de fora, como no episódio de Sandra, menina do interior, ativa, inteligente, que é levada para trabalhar de doméstica no Rio de Janeiro.

Na Cidade Maravilhosa, Sandra vai se virando até que é contaminada pelo vírus da Aids. O título dessa história é “Sorte teve a Sandra”. Era o que diziam. E por quê? Porque quando se soube com Aids, “apelou ao doutor Samuel, que, demandando contra a Previdência, acertou encostá-la na Caixa, um salário-mínimo limpo, todo quinto dia útil do mês.”

Fratura

Ruffato tem fama de não criar enredo, e não cria mesmo. Desde o início de sua carreira como escritor, quando lançou Eles eram muitos cavalos e caiu nas graças da crítica nacional, seus livros passam por cima da fábula para chegar ao osso da narrativa e expor a fratura da realidade desse homem do interior que não consegue abraçar a cidade grande.

Os livros de sua pentalogia são chamados de romance por puro capricho classificatório, mas o que há são feixes de histórias que vão dando ritmo e cadência a um mundo cheio de vida, a realidade pulsante das vontades e sonhos do Brasil adentro.

As histórias desenham famílias inteiras que se dispersam, e narram rios de fracassos. E esses fracassos sempre vêm com uma desculpa ou um discurso de que não é bem assim, para depois, lá no fundo ou ao final, descobrirmos que o inferno ainda existe, que sua existência não é provisória para a maioria, que a maioria muda de endereço, mas não muda de situação.

A diáspora leva os filhos dessas famílias para longe. Muitos jamais voltam a pisar o pé novamente na terra natal. Quando fracassam, e quase todos fracassam, se tornam uma espécie de Ulisses que se esquece de Ítaca e que ainda não venceu a guerra. Quando vencem, simplesmente querem esquecer o passado rapidinho.

Malogro
O primeiro episódio de Domingos sem Deus é exemplar dessa dança de malogro em que a maioria das pessoas se vê coreografada. Narra a vida de um garoto inteligente como o diabo, o Mirim do Tatão Ribeiro, pequenino zanzando pelas ruas de Rodeiro, a pequena cidade onde todos o conheciam e apostavam no seu futuro.

Aos 18 anos, Mirim foi tentar a sorte em São Paulo. Foi parar nos campos de fábricas de Diadema, de onde já velho rememora sua trajetória de batalha. Repassa suas aventuras, imaginando as possibilidades que o mundo sugere (só as possibilidades). Imagina-se voltando à sua cidade natal. “Quem diria... É... assentou em São Paulo”, indagariam as pessoas, reconhecendo-o.

E ele passearia orgulhoso, vencedor, pela cidade natal:

É o Mirim, gente, o Mirim!, Alá ele! Ê, Mirim, apeia aí, vem tomar café com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vem comer com a gente! Ê, Mirim, apeia aí, vamos armar uma briga de galo, de canário, uma pelada, solteiros contra casados, ranca-toco e quebra-canela, Ê Mirim, alembra da Gina? Pegou corpo, inteligente como o diabo, logo-logo casa, assim ó, de pretendente, mas a preferência é procê, né, que a gente conhece desde um cotoquinho assim, Mosquito Elétrico voando pelo Rodeiro, Vamos lá, Mirim, vamos fazer uma farra, Esse Mirim é pedra-noventa!, É o Cão!, É o que há!

Mas não voltou.


Essa passagem não é o final da história, mas poderia acabar ali. Essa sentença final no texto de Ruffato é uma pá de cal nos sonhos do velho homem saudoso de um projeto que malogrou.

Inferno provisório - que, nos moldes da burocracia brasileira, pretende ser uma ponte para algo melhor, enquanto se arma toda a papelada da vida, mas acaba se instalando como que para sempre - é uma das coisas mais interessantes da literatura nacional nos primeiros anos do século XXI. E Domingos sem Deus fecha essa série com muita força poética.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 18/12/2011)

2 comentários:

Arte e Vida disse...

Feliz Natal, desejo a voce e familia com muitas bençãos em 2012 e muita paz.

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Rosana! Desejo o mesmo pra você! Que 2012 lhe seja ótimo.