Foto: Gilberto G. Pereira
Dalton Paula, autor da ilustração da capa da nova biografia de Lima Barreto: arte e protagonismo do negro |
A arte
quer que se olhe ao redor. Quando o artista compreende a força dessa premissa,
qualquer que seja seu campo de atuação, torna-se capaz de criar narrativas
poderosas, como faz o artista visual Dalton Paula. Seu trabalho mais recente é
o retrato de Lima Barreto (1881-1922) que ilustra a capa da nova biografia do
escritor carioca, Lima Barreto – triste visionário, de Lilia Moritz
Schwarcz (veja aqui).
O
livro de Lilia já está nas livrarias. O lançamento oficial em São Paulo será feito
nesta segunda-feira. Dalton estará presente. Num texto publicado no Blog da
Companhia das Letras, editora que publicou o livro de Lilia, a biógrafa faz
rasgados elogios ao trabalho de Dalton.
“Agradeço
ao Dalton por ter criado uma capa especial, em todos os sentidos do termo, e
pelo hau e pelo axé que dele recebi”, diz a antropóloga e historiadora, autora
de livros importantes para a historiografia brasileira.
Foi lendo
o texto de Lilia que descobri a obra de Dalton, brasiliense de 35 anos, radicado
em Goiânia desde os oito. Utilizando-se de várias linguagens, Dalton desenvolve
um extraordinário trabalho de narrativa que a um só tempo resgata a história da
diáspora africana nas Américas e reconstrói a memória dos negros.
Conversei
com Dalton no apartamento dele, no Setor Oeste, em Goiânia, no dia 4 de julho. Simpático,
receptivo, rodeado de livros e catálogos de arte, o artista em ascensão falou
sobre como construiu o retrato de Lima Barreto e como constrói sua obra cujo
tema central é o corpo negro silenciado.
“A
Lilia conheceu meu trabalho por meio de Adriano Pedrosa, curador da mostra Histórias
mestiças, que ficou em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em
2014”, lembra. A exposição discutia a mestiçagem no Brasil por meio das artes
visuais. Dalton apresentou uma série intitulada Retrato silenciado, em
que pega a figura de pessoas negras do cotidiano e pinta nas capas de volumes da
Enciclopédia Barsa.
Lilia
gostou da arte de Dalton, e carregou consigo essa impressão, até que ao
preparar a edição da biografia (cuja pesquisa levou cerca de dez anos para ser
concluída), ela pensou nele para a ilustração da capa.
A
ideia era criar um retrato de Lima Barreto que não fosse a reprodução das fotos
que traziam técnicas de branqueamento da época, como as fotos existentes do
escritor carioca. Tampouco, a biógrafa queria algo caricatural. Ela buscava um
Lima Barreto real, negro, portador de grandes virtudes e vícios, um homem
atormentado pelo seu tempo, mas também o genial autor de uma obra marcante como
Triste fim de Policarpo Quaresma e Recordações do escrivão Isaías
Caminha.
Dalton
sempre pensou na própria arte como representativa do protagonismo da
subjetividade do negro, da história e da figura do negro. Sua arte contesta os
elementos do poder que colocam a figura do negro como algo sem valor, que
oprimem sua consciência e negam sua cidadania. Questiona o poder e os
estereótipos que este alimenta. Reafirma posições, reconfigura expectativas.
“Para
a ilustração da capa, busquei colocar a cor da pele mais escura, num sentido
político de combater esse embranquecimento, e os cabelos crespos. Dentro dessa
negociação, mantive o nariz bege (outra tensão), porque por mais que os corpos
negros tenham diversas formas de nariz, a coisa do nariz largo é um estereótipo
bem marcado, e por isso o evidencio com a cor bege, que é o elemento que toca
na branquitude”, diz Dalton.
O
livro de Lilia tem a vantagem de viajar fisicamente (não só virtualmente) pelo
país inteiro em exemplares vendidos nas livrarias, disponíveis em bibliotecas. O
sucesso foi imediato, pois já está na lista dos mais vendidos de não-ficção do PublishNews. A circulação aumentará por ocasião da Festa Literária Internacional
de Paraty (FLIP), de 26 a 30 de julho, que homenageará Lima Barreto.
O
trabalho de Dalton, portanto, ganha nova dimensão. Embora, só os leitores mais
atentos se preocuparão em vincular a obra da capa com o autor que a criou,
tendo, para isso, de buscar a informação na página de expediente do livro, a
estampa circulará por lugares mais democráticos do que galerias, museus e
exposições como tendem ser as artes visuais.
Diversidade na linguagem
A
ilustração da capa de Lima Barreto – triste visionário foi a primeira do
gênero que Dalton fez. Como ele mesmo diz, uma das coisas que preza em seu
trabalho é a diversidade. A cultura negra é uma pauta imensa. Para explorá-la,
ele faz uso de inúmeras linguagens.
A
pintura é uma das bases dessa arte. Mas para concebê-la, Dalton usa vários
suportes, não só a tela. “Minha pesquisa atual circula por vários suportes. Tem
sido uma marca, algo que entra no meu trabalho sempre significando alguma coisa
ligada ao negro. Já usei livros, cerâmicas (que me aproprio como suporte), e
estou pesquisando outros suportes.”
Além
disso, Dalton cria performances em vídeo e fotografia. Cria trabalhos com
objetos, como o paratudo, por exemplo (uma espécie de mini-instalação). Este é composto
por uma corda com um nó de forca, onde estão amarradas garrafas dentro de
redes, trançadas com fios para costurar couro. “Uso a cor marrom e dialogo com
a pele negra. A ideia da rede parte da rede de pescar que representa a armadilha.”
As
garrafas entramadas representam as garrafadas preparadas com guiné ou cachaça
pelos negros escravizados. O objetivo é pensar modos de subverter a ordem do
sistema, principalmente o escravocrata.
Na
época colonial, a guiné, também conhecida como amansa-senhor, era usada pelos
escravos como mecanismo de defesa contra a opressão do escravocrata. Os
escravos preparavam poções e misturavam na comida ou na bebida do seu senhor,
causando uma série de efeitos, deixando-o leso, numa espécie de demência, segundo
Dalton, e dependendo da dose, se de uso contínuo, podendo até matar.
Corpo e silêncio
Dalton
faz metáforas desses conhecimentos que vêm do quilombo, do terreiro. “Desses
lugares é que tiro minhas referências do corpo negro para pensar a
resistência”, diz.
Se por
um lado, há o uso de várias linguagens, por outro, o dominante de sua temática
é o corpo silenciado, quer pela negação do direito de existir, quer pela
negação do acesso à cidadania. “Estou pesquisando as possibilidades de cura
desse corpo, que para mim está enfermo, diante de um silenciamento. Entendo o
silenciamento como uma enfermidade”, comenta.
A
série de fotografias performáticas, que o leitor pode ver no site do artista
(acesse aqui) é visualmente a mais representativa do silenciamento do
corpo. Todas as imagens criam uma tensão na relação do objeto criado com o
mundo exterior.
Rotas
Foto: divulgação
Peça da série Rota do Tabaco, de Dalton Paula, que ganhou exposição na 32ª Bienal de SP |
Já o trabalho
mais ambicioso de Dalton até agora é, sem dúvida, a série com o sistema de
rotas de comércio nas quais se utilizou trabalho escravo. A primeira desta
natureza, ele já fez, sobre a Rota do Tabaco, que resultou em exposição na 32ª
Bienal de São Paulo, em 2016.
Para
esse tipo de abordagem, ele começa fazendo uma acurada leitura de livros de
história, buscando lugares que têm a ver com a diáspora africana. Depois, quando
está com certo volume de informação, o artista viaja até os lugares estudados
para pesquisa de campo, que é a segunda fase. “É quando converso com as
pessoas, vivencio o ambiente, exploro arquivos públicos, cenas cotidianas”, diz
Dalton.
No estudo
sobre a Rota do Tabaco, Dalton visitou um quilombo urbano em Piracanjuba,
interior de Goiás, em fevereiro, e em março viajou para Cuba, onde ficou 21
dias. Depois, ficou 30 dias no Recôncavo Baiano, principalmente em São Félix e
Cachoeira.
E aí,
finalmente, veio o trabalho de criação no ateliê, onde o artista levou dois
meses e meio (entre dez e doze horas diárias de labuta) para criar 51 peças
pintadas a óleo em alguidares (vasos de barro). “Um dos motivos de trabalhar
com a tinta óleo é pensar as camadas de significado.
Dá para fazer metáforas com as camadas sociais”, observa.
Dalton
está sempre estudando, aprendendo, buscando novas perspectivas, informações
mais acuradas. É um artista interessado na potencialidade da narrativa. Seu
objeto é o universo do negro. Seu tema, portanto, é vasto.
Seu
interesse pelas rotas de exploração comercial, que utilizaram o trabalho
escravo, é um exemplo dessa devoção ao estudo como base elementar da criação. Além
da Rota do Tabaco, ele quer criar séries de pintura sobre a rota da cana, a
rota do ouro e a rota do algodão. Vale lembrar que as rotas dos escravos é um programa
de pesquisa da Unesco. Logo, seu interesse é atual, muito importante para a
sociedade e, sobretudo, para o fortalecimento da consciência negra.
Do artista negro
Dalton
é o único artista negro brasileiro a participar da 32ª Bienal de São Paulo (2016), que contou com
um público de 900 mil pessoas, e cuja mostra itinerante continua em várias
cidades no Brasil e no exterior.
Segundo
informações no site da própria Bienal, a mostra itinerante percorreu Campinas (SP),
Belo Horizonte (MG), São José dos Campos (SP), Cuiabá (MT), São José do Rio
Preto (SP), Ribeirão Preto (SP), Garanhuns (PE), Palmas (TO), Santos (SP),
Itajaí (SC) e Fortaleza (CE). Internacionalmente, ela está em Porto (Portugal),
e posteriormente partirá para Bogotá (Colômbia).
Ele também
está em cartaz na mostra Vozes do Silêncio, em Anápolis, até o dia 25 de
julho, com trabalho em fotografias. Depois, segue para Goiânia, em espaço a
definir.
Graduado
em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás, Dalton planeja agora um
mestrado. O objeto de estudo são as rotas. “Vou estudar essas rotas que traçam
as linhas da diáspora africana”, diz.
Seus
estudos reforçam a consciência negra, compromisso do qual o artista não abre
mão. “A negritude é uma construção”, diz ele. “O artista negro é aquele que
traz as questões da cultura negra, que discute isso e toma decisões políticas
no sentido de levantar outras possibilidades e questionar o sistema vigente.”
Segundo
Dalton, a obra do artista negro deve trazer uma diversidade para abranger o rico
universo da cultura negra. Ser artista negro é ser, portanto, esse negro
político, que questiona o que está posto para trazer novas possibilidades, fazer
emergir a riqueza que é toda a carga da cultura negra. “Meu trabalho é só um
estarte. Ele tem de continuar girando e trazendo uma reflexão sobre a questão
do negro.”
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