sábado, 5 de março de 2011

Virando a página



O cinema deve estar se sentindo em paz. Desde que a indústria da informática começou a lançar novas ferramentas de armazenagem de conteúdo, acopladas à internet e a todo o universo digital, não se fala mais no fim da sétima arte, a propósito de qualquer bugiganga que aparece.

O interesse agora é discutir se o livro se manterá de pé com a chuva de tablets e e-readers de toda natureza. O mundo letrado inteiro vai migrar para essas novas mídias. O papel vai virar fumaça. Bibliotecas valiosas serão uma espécie de museu da inteligência. Tudo será acessado na virtualidade, dizem.

Este também é o assunto de Não contem com o fim do livro (Record, 2010, 272 páginas, tradução de André Telles), em que o italiano Umberto Eco (79 anos) e o francês Jean-Claude Carrière (80) travam um delicioso bate papo com mediação do jornalista Jean-Philippe de Tonnac, que também é francês.

Mas ao contrário das variadas previsões sobre o fim do livro, os dois respeitados anciãos, dois grandes leitores e homens profundamente marcados pela erudição literária, argumentam no contrapé dessas profecias:

“Os cassetes magnéticos, como sabemos perdem as cores (...). Os CD-ROMs chegaram ao fim da linha. Os DVDs não terão vida longa. (...) Ainda poderemos ler livros, durante o dia, ou à noite à luz de uma vela, quando toda a herança audiovisual tiver desaparecido”, diz Carrière.

O martelo e o livro

Embora esteja mais próximo do cinema, roteirista de renome que é (com roteiros para Buñuel e Godard), Carrière fez sua carreira a partir de uma intensa vida ligada aos livros. Além de ser bibliófilo, tendo em casa duas mil obras antigas e raras e mais de 30 mil volumes de publicações modernas, também é historiador de formação.

Entre os argumentos preferidos dos dois interlocutores está a lista de objetos que não podem mais ser modificados nem ignorados pela civilização moderna. Segundo Carrière, “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. (...) Talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é.”

Eco, sem querer aqui abusar do infame trocadilho, ecoa as palavras do colega: “Bicicleta, óculos [também estão nesta lista]. Para não falar da escrita alfabética. Uma vez alcançada a perfeição, impossível ir mais longe.”

Neste sentido, o próprio livro já vem dessa espécie de palimpsesto. A palavra tem origem na segunda acepção do radical ‘livr’, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Vem do latim ‘liber’, que quer dizer “película que se acha entre a madeira e a casca exterior, o líber sobre o qual se escrevia antes da descoberta do papiro.”

Para a palavra se tornar metonímia do próprio material e representar o objeto foi questão de uso diário. Hoje quase nada existe daquela técnica, nem mesmo da maneira como se escrevia nos rolos de papiro, sem pontuação e outros recursos gráficos que dão o tom da escrita moderna.

Mesmo com tantas mudanças, com a invenção da imprensa de Gutemberg, por exemplo, a ideia de livro não morreu, pelo contrário, se fortaleceu e ganhou linha de montagem cada vez mais sofisticada. Ou seja, os argumentos se sustentam, embora paire sobre mim a pesada desconfiança de que daqui a cem, duzentos anos, o livro de papel esteja para os homens futuros como o papiro está para nós.

Já leu tudo isso?

A graça de Não contem com o fim do livro é o diálogo plural travado entre os dois homens. O debate é alimentado por Tonnac, que lança perguntas ora provocativas, ora reflexivas. Em um desses casos, ele questiona: “Vocês citaram, durante essas conversas, inúmeros títulos, variegados e às vezes espantosos, mas uma pergunta, por favor: vocês leram esses livros?”

A pergunta parte de uma indagação comum que todo colecionador de livros, por menor que seja seu acervo, escuta de suas visitas. E assim nos deparamos com respostas interessantes. Por exemplo, Umberto Eco diz “confesso que vim a ler Guerra e paz apenas aos 40 anos de idade. Mas sabia o essencial dele antes de lê-lo.”

“À pessoa que entra na sua casa pela primeira vez”, diz Eco, “descobre sua imponente biblioteca e não acha nada melhor para lhe perguntar a não ser: ‘você leu todos?’. Conheço várias maneiras de responder. Um amigo respondia: ‘mais, cavalheiro, mais.’”

“Quanto a mim”, continua o autor de Seis passeios pelo bosque da ficção, “tenho duas respostas. A primeira é: ‘Não. Esses livros são apenas os que devo ler semana que vem. Os que já li estão na universidade.’ A segunda resposta é: ‘Não li nenhum desses livros. Senão, por que os guardaria?’”

Na continuidade do assunto, Carrière costura uma sábia observação: “A finalidade não é ver a todo custo ou ler a todo custo, mas saber o que fazer com essa atividade e como extrair dela alimento substancial e duradouro.”

“Uma biblioteca”, segue o roteirista, “não é obrigatoriamente formada por livros que lemos ou livros que um dia leremos, é fundamental esclarecer isso. São livros que podemos ler. Ou que poderíamos ler. Ainda que jamais venhamos a lê-los.”

Homenagem

Não há dúvida de que a conversa entre os dois é uma homenagem ao livro para mostrar “que as tecnologias contemporâneas estão longe de havê-lo desqualificado”, para citar Tonnac, que se insere nesse quadro de amantes da leitura.

Mas Tonnac demonstra ser mais comedido no respeito às novas tecnologias, mesmo porque nenhuma delas descaracteriza a ideia de livro. “O filme matou o quadro? A televisão, o cinema? Boas-vindas então às pranchetas e periféricos de leitura que nos dão acesso, através de uma única tela, à biblioteca universal doravante digitalizada”, diz o mediador, na introdução.

Não contem com o fim é um debate emaranhado de assuntos. Fala de linguagem, de suas formas de armazenamento e da ameaça das novas tecnologias. Seus autores também exercitam previsão, lançam olhares para todos os lados e alinhavam passado e futuro, diluindo o presente numa conversa flutuante e deliciosa.

Em uma dos capítulos, eles tratam da noção de cultura que poderia ser preservada caso houvesse uma catástrofe natural e tivéssemos tempo de salvar apenas mínimas partes de nosso acervo. Em outro falam de suas coleções de incunábulos (livros pré-Gutemberg).

Ainda em outro capítulo, falam da demasiada pureza do cânone, muitas vezes em prejuízo à própria ideia de pluralidade cultural. “Talvez tenhamos saboreado na escola uma literatura demasiadamente filtrada e, por esse motivo, carente de sabores impuros”, analisa Carrière.

Um assunto, em particular, rende bastante interesse de colecionadores. O valor dos livros raros, entre eles os incunábulos. “Há incunábulos que agora custam milhões de euros e outros que você consegue adquirir por algumas centenas”, diz Eco.

Ele relata a história sobre um incunábulo de Ptolomeu, pelo qual o livreiro pedia 100 mil euros. Mas Eco não tinha esse dinheiro e, embora com muita vontade, acabou não comprando, imaginando que teria dificuldade de revendê-lo se fosse preciso. Três semanas depois, outro raro exemplar do mesmo Ptolomeu foi vendido num leilão por 700 mil euros.

Valores

O sonho de todo colecionador, comenta Umberto Eco, é adquirir uma Bíblia de Gutemberg [ou do Fólio de 1623, de Shakespeare]. Mas não existem exemplares da Bíblia de Gutemberg no mercado, segundo ele. “Estão todas agora nas grandes bibliotecas.”

O escritor comenta que viu duas dessas Bíblias na Pierpont Morgan Library, de Nova York. “Toquei numa na Biblioteca do Vaticano. A última cópia conhecida no mundo foi vendida, há uns vinte anos, para um banco japonês por, se bem me lembro, 3 ou 4 milhões de dólares da época.”

Quem ama, quem lê, ou aquele que ainda vara ruas e noites, cidades e países inteiros à procura de um livro, pela raridade, é o principal público desse diálogo entre Eco e Carrière. O primeiro, em 2010, apareceu no Brasil no bojo de uma enxurrada de publicações, entre reedições e novos projetos, como A vertigem das listas e Arte e beleza na estética medieval.

Já Carrière, autor de mais de 80 roteiros, entre eles Cyrano de Bergerac e Esse obscuro objeto de desejo, também tem assídua presença no mercado editorial brasileiro. Seu livro mais recente é uma coletânea de contos estrangeiros, que ele apenas organizou, chamado Contos filosóficos do mundo inteiro.

Esse bate papo magnífico, dinâmico e cheio de vontade de falar de cada uma das partes vale a pena ser lido até por quem se interessa só pela contemporaneidade. Tudo é debatido. Muita ‘profecia’ é cantada. Entre elas a de que “o futuro dos ditadores é sombrio. Eles terão que agir numa escuridão profunda”, em referência a quase onisciência da internet e do celular ligado a ela.

As palavras de Carrière eram uma generalidade a respeito da vigilância estreita sobre os atos espúrios da humanidade, entre eles, os atos políticos. Bem antes da onda de protestos que vem assolando o mundo árabe há cerca de um mês. A ironia, num debate sobre livros, é que eles, em conflitos com o poder, são sempre os primeiros a serem queimados.

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto, em 5/03/2011)

Serviço

Título: Não contem com o fim do livro
Autores: Umberto Eco e Jean-Claude Carrière
Editora: Record, 2010, 272 páginas
Gênero:
Preço: R$ 39,90

4 comentários:

Webston Moura disse...

Maravilha, Gilberto! Texto ágil e saboroso esse sobre o tal livro. Eu li algo a respeito desse livro, anterirormente. Esse tema das novas tecnologias em relação ao livro é interessante. O que eu sempre percebo é que nosso pensamento (ocidental/de mercado/seja o que for) tem essa ideia fixa de que necessitamos utilizar uma coisa para substituir outra. Creio que a www não destruirá o livro, mas, por outro lado, é preciso investir na educação dos possíveis leitores, pois há toda uma "cultura de distração" em redor deles, de nós, de tudo. Valeu! Abraços!

Gilberto G. Pereira disse...

Concordo com você, Webston. A 'cultura da distração' (belo termo) é um problema. Mas também acho que a humanidade sempre marchou distraída, é uma de nossas características. Agora, volto a concordar contigo, é obrigação do Estado dar um jeito de investir mais em políticas públicas de instrução, educação, formação, enfim. Tá na hora, né. Grande abraço!

paulo césar giordano disse...

Beleza de post! Por acaso li hoje mesmo em outro blog que a Amazon afirmou recentemente que a venda de ebooks já supera a de livros em papel, sinal de que as mudanças já estão em curso. E esse texto do Umberto Eco/Carriére fica ainda mais interessante se você ler, paralelamente, os escritos do historiador francês Roger Chartier sobre a trajetória da leitura e de como a internet vem mudando (ou já mudou, vai saber)o modo como a nova geração lê. Parabéns pela resenha, fiquei mesmo com vontade de comprar o livro! Saludos, paulo

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Paulo! Essa notícia da Amazon, que acabo de saber por você, é interessante. Se eu tivesse dinheiro, compraria um iPad já. Gosto de ler. Tenho mais habilidade para ler livros físicos, mas já venho acumulando alguns títulos virtuais também, ainda naquele esquema de PDF e confesso ter pouca resistência. Quanto ao Chartier, é realmente um grande especialista no assunto, o maior que eu conheço, mais amplo do que Robert Darnton. Enfim. Vamos nós na nave, e ela vai, né. Abç!