quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As prostitutas de Gabriel

                                                                                                                                                        Ilustração: Blog Diario Sur-Espanha


A realidade da América Latina é mais fantástica do que sua própria literatura, disse o colombiano Gabriel García Márquez, em 1982, ao ser laureado com o Prêmio Nobel daquele ano. E não afirmou isso para efeito de retórica.

Sua obra, toda ela, vem carregada dos traços peculiares, excêntricos e exageradamente poéticos que se encontram nesse mar latino, desde sempre. A começar pelas prostitutas. Elas estão presentes na maioria de seus livros, povoam a paisagem feito pássaras noturnas, mulheres livres que ensinaram a Gabriel o caminho do humano.

Depois de serem lembradas, por tantas vezes, num viés secundário, as prostitutas de Gabriel ganharam uma homenagem definitiva em Memória de minhas putas tristes (2005). A homenagem está mais explícita no título, que traz um plural que não está na trama. A não ser em estatística.

O plural do título aparece quando o protagonista, um nonagenário viciado em sexo pago, que não consegue – e nunca o fez – transar sem pagar pelo serviço, diz: “até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez”.

Levando em conta o que o autor diz em Cheiro de goiaba (1982) (“eu começo todos os meus livros a partir de uma imagem real e não de uma idéia”), essas prostitutas estão em algum lugar de suas lembranças.

E estão mesmo. Aparecem anônimas, na maioria das vezes, na primeira parte de sua autobiografia, de título sugestivo, Viver para contar. A partir dali, pode-se decodificar a solidão e a tristeza de suas meninas. É a chave para compreender que se elas não se apresentam de forma precisa em Memória de minhas putas tristes é porque vivem implicitamente em cada esquina dobrada e em cada rua percorrida nesta novela.

Todo o cenário composto pelo autor é retirado do ambiente vivido por ele mesmo nas cidades de Cartagena, Bogotá e Barranquilla, no final da década de 1940 e começo da de 50. Nessa época, estava com seus vinte e poucos anos. Era estudante de direito (que não chegou a concluir) e aprendiz de jornalista e escritor.

Com pouco dinheiro no bolso, a melhor alternativa que encontrou para sobreviver com o salário miserável que ganhava foi, em certa ocasião, morar num hotel de alta rotatividade. Lá, intensificou seu estágio com as prostitutas. Aulas que começara a ter em sua cidade natal, Aracataca, quando era garoto.

Sua iniciação sexual foi com uma dessas pássaras da noite, que lhe prestou serviços sem exigir em troca nenhuma paga, apenas por ser filho do boticário da cidade.

Memória de minhas putas tristes parece ser um título bem pessoal, do próprio Gabriel. Mas a história é fictícia, narrada em primeira pessoa, por um homem que se identifica apenas como sábio, alcunha merecedora, pelos anos vividos e tempo gasto no que há de mais profano e, por isso mesmo, o que demanda a maior fatia do conhecimento mundano: o sexo e suas mil faces.

Ao fazer noventa anos, o sábio decide comemorá-los num estilo peculiar, contratando uma cafetina para lhe arranjar uma virgem. Passando por cima da problemática moral e legal de aliciar uma menor, o protesto maior da senhora da noite é contra a dificuldade de obter tal donzela àquela altura do século XX. Com muito esforço ela consegue o intento, encontrando uma garota de 14 anos, que precisava do dinheiro para cuidar da mãe doente.

Mas o sábio não consegue efetivar suas vontades e fica apenas na parte teórica da filosofia de alcova, rememorando seus dias fugazmente felizes de apreciador de meretrizes, enquanto passa a noite com a donzela, sem fazer nada, apenas olhando-a dormir e contando-lhe historinhas, cantando cançõezinhas em seu ouvido, ninando a bela adormecida, como se quisesse plantar em seu coração a derradeira esperança de alguém que já está no crepúsculo. Fez isso por várias noites. Uma vida em seu final admirando a exuberância de outra no desabrochar.

Essa imagem de garota prostituída, ou amante de um homem bem mais velho, aparece em vários livros de García Márquez. E em suas memórias, ele deixa claro de que realidade ela surgiu, e até mesmo como foi fundida com outras similares para produzir sua ficção.

Segundo ele, em seus tempos de Cartagena, junto com os colegas de faculdade, virava a noite nos bordéis a céu aberto, à beira do mar caribenho. “De vez em quando alguma pássara nostálgica nos chamava para dormir com o pouco amor que lhe sobrava ao amanhecer. Uma delas, cujo nome e cujo tamanho recordo muito bem, se deixou seduzir pelas fantasias que eu contava enquanto dormia”.

Junto a essa imagem, uma outra compõe a essência de sua personagem mais recorrente. Agora em Bogotá, em 1954, Márquez ainda paupérrimo, morava num pensionato, onde testemunhou de ouvido, várias vezes, a sofreguidão amorosa de um casal de amantes. A surpresa era pela diferença de idade entre os dois. “Uma menina esquálida com um vestido de orfanato público, e um senhor de muita idade, com cabelos platinados e de dois metros de altura, que podia muito bem ser seu avô”.

As prostitutas ofereceram a García Márquez, em seu tempo de formação, um aspecto triste e fértil, e ele não se cansou de pintá-las em sua obra. Principalmente a jovem que ele conheceu em Cartagena, certamente. Em A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada (1972), Eréndira tem 14 anos, é órfã de pai e mãe, e mora com a avó paterna. Certo dia, num descuido, ela deixa a casa pegar fogo, e para puni-la, a avó passa a vender o corpo da menina. Andam pelo país inteiro, como caixeiras viajantes, cujo produto vendido e consumido na hora é o sexo de Eréndira.

Essa mesma história já havia sido contada, rapidamente, em Cem anos de solidão (1967), em que uma “mulata adolescente, com suas tetazinhas de cadela” se deitava – por vinte centavos cada vez – com todos os homens para pagar a dívida com a avó. Em O amor nos tempos do cólera (1985), outra adolescente aparece, com o nome de América Vicuña. Mas dessa vez, apenas como amante de Florentino Ariza, que a essa altura da trama já era um senhor de 75 anos de idade.

De todas as obras de García Márquez, Memória de minhas putas tristes é a que mais se assemelha às suas memórias próprias, não exatamente pelo que ele viveu de fato, mas pelo que presenciou e aprendeu. Passagens inteiras descritas em sua autobiografia estão presentes nessa novela.

Muito mais do que uma inspiração de A casa das belas adormecidas, de Kawabata (1899-1972), que aliás é citada na epígrafe, é um livro feito com o intuito de celebrar a velhice, que olha para si mesma, e resgatar a humanidade das tristes meretrizes que ele, o autor, deixou para trás.

Gabriel García Márquez, o homem que inventou a solidão, realmente explorou bem de perto o universo de suas prostitutas, e por isso mesmo soube retirar delas todo o sentimento de tristeza e abandono. Talvez por ter sido feliz nessa empreitada, ele goste de citar William Faulkner (1897-1962), seu mestre na arte de narrar: “um bordel é o melhor domicílio para um escritor, porque as manhãs são tranqüilas, tem festa toda noite e todos têm boas relações com a polícia”.

(Gilberto G. Pereira. Com ajustes ao tempo, publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 2005. Texto escrito e publicado antes do de John Updike, em The New Yorker, intitulado Dying for Love, que fala do mesmo assunto)