sábado, 19 de novembro de 2011

Solano Trindade e a poesia negra

                                                                                                                                                                 Foto: Revista Raiz


“Lincharam um homem/ entre os arranha-céus/ (li num jornal)/ procurei o crime do homem/ o crime não estava no homem/ estava na cor de sua epiderme...”. Este poema de Solano Trindade (1908-1974), intitulado “Civilização branca” demonstra bem que tipo de poeta ele é, um poeta negro, claro.

Sua poesia não trata de militância, trata-se, isso, sim, de uma realidade ainda hoje complicada para quem é negro no Brasil. Depois de Cruz e Sousa, passadas várias décadas de silêncio em torno da temática do negro, ele apareceu como um bálsamo.

Inteligente e conhecedor das técnicas da poética moderna, não quis se fazer passar por Mallarmé tupiniquim. Embrenhou na densa mata, olhou para os guetos, para a história e para a marginalização sistemática dos negros e focou sua poesia no próprio universo de sua consciência.

Criou uma poesia ao som dos atabaques, do aguê, e toda a musicalidade encontrada nos cerimoniais afros, o culto aos deuses, sempre falando de amor, evocando cidades, pessoas, expondo a violência contra o negro, mas também a festa desse mesmo negro.

Em um de seus livros mais significativos na questão da consciência negra, Cantares ao meu povo, de 1961, Solano Trindade escancara a força de sua poética e de sua revolta. Mas há sempre um acalanto. Seus brados trazem sempre uma carga poderosa e ao mesmo tempo suave.

Diáspora

Seus versos meio que flutuam sobre a face do país como vento, que pode ser breve e leve, e também mensageiro de tempestade e dor. No poema “Canto da América”, o poeta dá o tom de sua verve, indicando na abertura os ritmos cantados na escansão dos versos: blues, swings, sambas, frevos, macumbas, jongos.

“Ritmos de angústia e de protestos”, diz o poema, “estão ferindo os meus ouvidos !...” E em seguida desfecha a diversidade de sons pelos quais canta a América, buscando a união junto ao sentimento da diáspora:

São gemidos seculares da humanidade ferida
que se impregnaram nas emoções estéticas
da alma americana...
É a América que canta...

Esta rumba é um manifesto
contra os preconceitos raciais
Esta conga é um grito de revolta
contra as injustiças sociais
Este frevo é um exemplo de aproximação
e de igualdade...


O sentimento de diáspora está presente no coração de todo negro de consciência despertada. Está presente na literatura, na música e nas artes de modo geral, nos ensaios sociológicos escritos por negros, na dança, nos ritos e nos cultos aos deuses afros em toda a América.

Local e global

Só para fazer aqui uma comparação e mostrar tanto a riqueza dessa poesia que canta aos negros da América quanto a pujança da outra, feita por um negro que canta ao mundo todo, enquanto Solano Trindade faz versos na simpleza das formas, Cruz e Sousa sobe às alturas, mas também fala do negro, de si mesmo, cantando à alma universal.

Solano Trindade canta a seu povo em todos os cantos da América, no sentimento de diáspora, de rearranjamento no espaço e no tempo, na tentativa de entender a nova identidade, que já não é mais africana, mas sem deixar os símbolos da velha cultura para trás, uma vez que ela é seu sustentáculo, a sua arca.

Se a poesia de Cruz e Sousa nos ensina que o negro de gênio educado nos moldes da cultura ocidental, aprendendo a dominar as técnicas no veio da linguagem utilizada pelos grandes mestres dessa cultura, consegue feitos à altura de qualquer homem branco, a de Solano Trindade nos dá o presente dos ritmos simples, com os instrumentos da própria cultura negra.

Em Cantares ao meu povo, há uma infinidade de formas construídas para dar conta desse universo de afirmação, ao mesmo tempo de protesto, que revela o medo, a dor, a revolta. Tudo isso vem entre risos, danças, pouca mágoa, é verdade, mas está no sulco da memória que não deixa esquecer a exploração no passado e as injustiças no presente.

Entre uma verdade e outra, a música e a sensualidade dos corpos. Como no poema “Macumba”, que revela ao mesmo tempo o rito e a riqueza de sons e de instrumentos, com os negros tocando o “aguê/ o caxixi/ o agogô/ o engona/ o gã/ o ilu/ o lê/ o ronco/ o rum/ o rumpi.”

Quando se trata da realidade dos negros, no entanto, a festa sempre abre espaço para a sombra dos males que eles sofreram, e sofrem. Entre os poemas mais conhecidos de Solano Trindade está “Tem gente com fome”, que periodicamente aparece em cartilhas e livros do ensino fundamental.

Fome e versos

Em 2008, quando se celebraram os cem anos de nascimento do poeta, a editora Nova Alexandria publicou o poema separado e rotulado como literatura infanto-juvenil, mas é muito mais que isso.

O poema recria o movimento, o som de um trem e a paisagem por onde ele passa, crivando uma espécie de geografia da fome. “Trem sujo da Leopoldina/ correndo correndo/ parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome”, enquanto vai passando por bairros pobres do Rio de Janeiro.

E finaliza com um tom de ironia, denunciando uma situação que até hoje ainda se vê, ora por parte de governantes, ora por parte da elite econômica (que geralmente controla os rumos da política) e que não quer que se mostre a face faminta do país.

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 20/11/2011)

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