O livro Sobre a tradução (UFMG, 2011, 71 páginas, tradução de Patrícia Lavelle, R$ 24), do francês Paul Ricoeur, é um pequeno amanhecer de compreensão do outro. Morto em 2005, aos 92 anos, ele dedicou sua vida aos estudos que convergiam para a interpretação de linguagens, e foi assim que também se embrenhou nessa zona de brumas que é a relação entre nós e o estrangeiro.
A tradução, o entendimento da palavra estrangeira da melhor maneira possível, buscando a verdade do sentimento encerrado em cada vocábulo transportado, foi um dos interesses de Ricoeur, mas apenas nos últimos anos de sua longa vida é que ele veio a escrever sobre o assunto, publicando este pequeno tratado, em 2004, que agora sai no Brasil.
Professor de filosofia da Sorbonne, doutor em Letras, entre seus livros mais importantes estão A metáfora viva, Tempo e narrativa (em três volumes), e A simbologia do mal. Em Sobre a tradução, Ricoeur aponta para um caminho menos dolorido, mas não menos complexo, da profissão de traduzir. Ele começa analisando a tradução pelo viés da psicanálise, colocando-a como uma espécie de pulsão, um desejo.
Resistências
Segundo Ricoeur, traduzir um texto é um ato de mediação que se faz entre o estrangeiro, no caso, o autor, e o leitor. O tradutor está no meio desses dois extremos e precisa contentar a ambos, que resistem, tal como resiste também o próprio realizador da tradução. Tudo fica num impasse de luta, cada um no seu campo.
O autor oferece resistência por meio da língua em que escreve, com suas multiplicidades de sentido, um mundo inteiro que teria de ser transportado, conforme atesta Ricoeur neste parágrafo exemplar:
Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequências curtas ou longas. É a esse complexo de heterogeneidade que o texto estrangeiro deve sua resistência à tradução e, nesse sentido, sua intraduzibilidade esporádica.
O leitor consciente, por sua vez, no bojo de sua identidade cultural e nos meandros de sua própria língua que agora recebe a mensagem estrangeira, também vê com desconfiança a tradução.
“Essa resistência do lado do leitor não deve ser subestimada”, lembra Ricoeur. “A pretensão à autossuficiência e a recusa da mediação do estrangeiro nutriram em segredo muitos etnocentrismos linguísticos e, o que é mais grave, muitas pretensões à hegemonia cultural”, avalia. Mas, neste caso, ele se refere mais às culturas europeias, às línguas de lá do que ao leitor brasileiro, por exemplo, muito mais aberto à pluralidade.
Já a resistência do próprio tradutor se refere ao receio de não conseguir realizar sua tarefa. Ele “encontra essa resistência em vários estágios de seu empreendimento. Ele a encontra mesmo antes de começar sob a forma da presunção de não tradutibilidade, que o inibe antes mesmo de atacar a obra.”
As dificuldades não são poucas. Dentro da absoluta consciência do que é uma língua e do que são linguagens, o tradutor procura lidar com as múltiplas barreiras da tradução.
Aceitação
A primeira parte do livro é intitulada “Desafio e felicidade da tradução”. Mas, afinal, onde está a felicidade? Está na renúncia ao ideal da tradução perfeita. Fazer disso um luto e superá-lo pela aceitação de um traduzir possível, abrir-se às novas iluminações que puderam ser trazidas do universo estrangeiro.
Neste caso, com tal aceitação, o tradutor daria ao leitor um ganho sem perda, porque esta já estaria computada na conta do impossível.
“É justamente desse ganho sem perda”, diz Ricoeur, “que é preciso fazer o luto até a aceitação da diferença incontornável do próprio e do estrangeiro.” (...) “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação.”
A felicidade, portanto, pode ser encontrada pelo tradutor no que Ricoeur chamou de hospitalidade linguística. E isso não é pouco. Segundo o filósofo, a tradução de outras línguas nos ensina, no mínimo, que “é sempre possível dizer a mesma coisa de outro modo”.
Sobre a tradução nos diz muito em poucas palavras. E ainda nos joga perguntas que podem ser úteis na hora de tentar compreender o outro: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? Sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros?”
Paul Ricoeur é um mestre da hermenêutica e dos estudos fenomenológicos. Seu livro, além de nos dar um ensinamento, acaba sendo uma espécie de consolo para quem traduz, pelo conflito de linguagens, pela sensação de inépcia por não conseguir arrastar toda a carga emotiva e toda a riqueza de símbolos que o tradutor sabe haver ali.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
A tradução, o entendimento da palavra estrangeira da melhor maneira possível, buscando a verdade do sentimento encerrado em cada vocábulo transportado, foi um dos interesses de Ricoeur, mas apenas nos últimos anos de sua longa vida é que ele veio a escrever sobre o assunto, publicando este pequeno tratado, em 2004, que agora sai no Brasil.
Professor de filosofia da Sorbonne, doutor em Letras, entre seus livros mais importantes estão A metáfora viva, Tempo e narrativa (em três volumes), e A simbologia do mal. Em Sobre a tradução, Ricoeur aponta para um caminho menos dolorido, mas não menos complexo, da profissão de traduzir. Ele começa analisando a tradução pelo viés da psicanálise, colocando-a como uma espécie de pulsão, um desejo.
Resistências
Segundo Ricoeur, traduzir um texto é um ato de mediação que se faz entre o estrangeiro, no caso, o autor, e o leitor. O tradutor está no meio desses dois extremos e precisa contentar a ambos, que resistem, tal como resiste também o próprio realizador da tradução. Tudo fica num impasse de luta, cada um no seu campo.
O autor oferece resistência por meio da língua em que escreve, com suas multiplicidades de sentido, um mundo inteiro que teria de ser transportado, conforme atesta Ricoeur neste parágrafo exemplar:
Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequências curtas ou longas. É a esse complexo de heterogeneidade que o texto estrangeiro deve sua resistência à tradução e, nesse sentido, sua intraduzibilidade esporádica.
O leitor consciente, por sua vez, no bojo de sua identidade cultural e nos meandros de sua própria língua que agora recebe a mensagem estrangeira, também vê com desconfiança a tradução.
“Essa resistência do lado do leitor não deve ser subestimada”, lembra Ricoeur. “A pretensão à autossuficiência e a recusa da mediação do estrangeiro nutriram em segredo muitos etnocentrismos linguísticos e, o que é mais grave, muitas pretensões à hegemonia cultural”, avalia. Mas, neste caso, ele se refere mais às culturas europeias, às línguas de lá do que ao leitor brasileiro, por exemplo, muito mais aberto à pluralidade.
Já a resistência do próprio tradutor se refere ao receio de não conseguir realizar sua tarefa. Ele “encontra essa resistência em vários estágios de seu empreendimento. Ele a encontra mesmo antes de começar sob a forma da presunção de não tradutibilidade, que o inibe antes mesmo de atacar a obra.”
As dificuldades não são poucas. Dentro da absoluta consciência do que é uma língua e do que são linguagens, o tradutor procura lidar com as múltiplas barreiras da tradução.
Aceitação
A primeira parte do livro é intitulada “Desafio e felicidade da tradução”. Mas, afinal, onde está a felicidade? Está na renúncia ao ideal da tradução perfeita. Fazer disso um luto e superá-lo pela aceitação de um traduzir possível, abrir-se às novas iluminações que puderam ser trazidas do universo estrangeiro.
Neste caso, com tal aceitação, o tradutor daria ao leitor um ganho sem perda, porque esta já estaria computada na conta do impossível.
“É justamente desse ganho sem perda”, diz Ricoeur, “que é preciso fazer o luto até a aceitação da diferença incontornável do próprio e do estrangeiro.” (...) “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação.”
A felicidade, portanto, pode ser encontrada pelo tradutor no que Ricoeur chamou de hospitalidade linguística. E isso não é pouco. Segundo o filósofo, a tradução de outras línguas nos ensina, no mínimo, que “é sempre possível dizer a mesma coisa de outro modo”.
Sobre a tradução nos diz muito em poucas palavras. E ainda nos joga perguntas que podem ser úteis na hora de tentar compreender o outro: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? Sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros?”
Paul Ricoeur é um mestre da hermenêutica e dos estudos fenomenológicos. Seu livro, além de nos dar um ensinamento, acaba sendo uma espécie de consolo para quem traduz, pelo conflito de linguagens, pela sensação de inépcia por não conseguir arrastar toda a carga emotiva e toda a riqueza de símbolos que o tradutor sabe haver ali.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
4 comentários:
Muito interessante essa obra, obrigado pela dica! Saludos, pc
Eu é que te agradeço por visitar de novo meu blog, PC. Abraço!
Olá,Gilberto!
Grata pela visita em meu blog.
Gostei deveras daqui.
Um abraço.
De nada, Patrícia! Eu é que agradeço. Um abraço!
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