Foto: Substantivo Plural
Mirisola: “Não sou convidado nem para quermesse de igreja. Fico em casa, isolado, trabalhando honestamente, enquanto as raposas se refestelam no galinheiro chamado literatura brasileira” (In: FSP) |
Não sou versado na literatura de Marcelo Mirisola (1966). A primeira vez que ouvi falar dele, eu morava em Curitiba, em 2002, e li uma entrevista sua na Gazeta do Povo, quando ele voltava de um tempo ancorado em Florianópolis (para escrever O azul do filho morto [editora 34]).
Depois acompanhei suas polêmicas pela imprensa. Uma delas foi quando alguém reuniu disposição para convidá-lo a escrever um texto sobre a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2006.
Não deu outra. Mirisola isolou os bons fluidos e desceu a lenha em tudo, cunhando inclusive um novo termo às namoradinhas das letras, Marias Rodapé.
Como não era comigo (e quando não é com a gente, a tendência é que as coisas se tornem engraçadas, a menos que a gente seja um xiita), morria de rir com tudo isso.
Em 2007, já morando em São Paulo (voltei para Goiânia só em 2009), eu estava no Sebo do Bac, na Praça Roosevelt (nem sei se ainda está lá), perto do Satyros, procurando um livro de Georges Perec, quando olhei para a cadeira ao lado e vi Mirisola.
Puxei conversa. “Você é o Mirisola, né?”. “Sim, sou eu mesmo”. Conversou comigo como um lorde, numa educação e civilidade de qualquer homem urbano que sabe conversar. Eu disse que sempre ouvia falar dele, e estava querendo ler um livro seu. Qual ele me indicaria?
Homem do subsolo
Mirisola me indicou justamente O azul do filho morto. Mas um colega seu, que participava da conversa, bem humorado, disse que talvez eu não fosse gostar do livro. Puro preconceito (mas, num sentido bem light).
Na verdade, O azul é polêmico (Márcio Scheel, no blog Revista Cidade Sol, do Lúcio, disse que Mirisola fez um romance de deformação, em relação a esse livro, que também me fez rolar de rir) e seu personagem, Marcelo Mirisola, é um escroto de marca maior, na linhagem de Memórias do subsolo.
É um livro fantástico, arrebatado de uma poesia intensa e uma tristeza velada pelos palavrões, um drama interior suspenso pela violência verbal, pela descarga de ódio em tudo quanto é tipo e coisa, com raras concessões. “Alguma coisa, imagino, devia estar errada pro Kid Abelha (Paulinha Toller fica fora desta bandalha) se dar bem, em 1984.
Ofensas a quem?
O azul reconstrói, e de alguma forma destrói, a vida inteira das décadas de 1980 e 1990. Mas é bom que se saiba que o escritor Marcelo Mirisola definitivamente não é exatamente o personagem que aparece no livro, é um duplo (dúbio), esse troço comum da literatura contemporânea.
Entre as passagens mais raivosas, o leitor pode ler coisas do tipo:
“Uma vez enfiei o garfo no braço da faxineira. A negrinha servia pras minhas cavalgadas. Tenho fotos.”
“Adorei ver o Senna espatifado na Tamburello. Um dia vou festejar a morte do Ed Motta.”
“Para mim, os editores – com exceção do meu que está pagando uma merreca pr’eu escrever este livro – são todos uns chupadores de pica, analfabetos, cegos por opção, degenerados, mercenários e débeis mentais. Vale a mesma coisa pros jurados de concursos literários e pros poetas em geral. Odeio poetas.”
“Pior que poeta, só livro psicografado. Esse tal de Emmanuel é um espírito de porco, apenas não é mais covarde, tarado e mau caráter do que escritor de livro infantil (incluo aí os autores de autoajuda e policiais, enredo é coisa de criança). Os irmãos Gasparetto o recebem (ou gerenciam, o tal do Emmanuel) via anal – de quatro – bundinha virada pros céus. A mãe deles, dona Zíbia, é a cópia fiel da minha madrinha, vai na mesma cabeleireira. Fui batizado na Igreja do Calvário. Os exus e orixás, todavia, são mais honestos porque são deliberadamente analfabetos, não escrevem livros bem-intencionados. Sincretismo dá nisso.”
Talvez por isso, o amigo de Mirisola me achasse inadequado para a leitura, porque sou negro. Para ele, me sentiria ofendido, como se a literatura não fosse feita para transgredir. É claro que a transgressão tem algo que vai além dos insultos gratuitos.
Há ali uma concepção estética, que passa pela técnica de narrar e pela capacidade do autor de rearranjar o mundo de modo que um novo sentido apareça, uma verdade escondida pela estampa da ética, pelos lençóis estendidos no varal das convenções, que tapam os outros sóis.
Os outros
Hoje, na Folha de São Paulo (Ilustrada), saiu um apanhado sobre Mirisola, a propósito do lançamento de seu livro mais recente, Charque (Companhia das Letras), com texto assinado por Josélia Aguiar.
“Charque, novo livro de Marcelo Mirisola, é uma continuação de ‘Azul do Filho Morto’ (2002), apontado por escritores e resenhistas como a melhor entre suas 12 obras.”, diz Josélia.
E aí desfia a novela em torno do autor. “Na década que separa os dois livros, o autor apareceu mais na web e na imprensa por fanfarras e polêmicas. Tantas que afastaram colegas, curadores e críticos e o tornaram difícil de tratar até em reportagens. ‘Mirisola equivale àquele tio que adora mostrar o cofrinho peludo nas festinhas de aniversário’, define Joca Terron, o único que aceitou fazer críticas às claras.”
“‘Não li o novo livro, mas ele parece ter parado em ‘Azul’. Os mais recentes, assim como as entrevistas, por sua ingenuidade e ressentimento, me causam profunda vergonha alheia’”, continua Joca Reiners Terron, que também é escritor.
Apesar de sua saga de “escritor em busca de uma resenha”, conforme diz Josélia (que, aliás, deveria ser o título da matéria dela), há quem o elogie, segundo a própria jornalista. “Reinaldo Moraes e Marcelo Rubens Paiva elogiaram o novo livro.”
Mas é Marcelino Freire quem rouba a cena nesse quesito de elogios. Ele diz que “morre de rir com tudo isso.”
“‘Mirisola já falou mal de mim em blog, em livro, direta e indiretamente, já condenou o meu Jaburu, o meu Jabuti, já me chamou de Pavão Cabeçudo. Ele não me atinge. A sua literatura, sim, me atinge. Quero saber o que o Mirisola aprontou, como está avançando a sua literatura’”, diz Freire.
Na ocasião que encontrei Mirisola, por acaso, no Sebo do Bac, não me parecia um homem angustiado. Ele foi capaz de me incluir na sua roda de conversas sem nenhum tipo de arrogância. Acho mesmo que aquele cara que vi lá, naquele dia, é o próprio Mirisola, tranquilo, bebendo sua cerveja. O resto é literatura.
A tempo. Comprei o livro dele e pedi que assinasse. Ele escreveu um autógrafo, em letras garranchais, que até hoje na consegui ler. Na leitura de O azul do filho morto não me senti ofendido. Será que sou ofendido nesse autógrafo?
6 comentários:
HAHA. Bacana.
o marcelino freire é uma pessoa muito decente pra aceitar tudo o que o mirisola já escreveu sobre ele... ótimo saber que tem gente que ainda respeita a boa literatura hoje em dia
Giba, eu sei de uma boa do Mirisola.
Ele escreveu artigo detonando o livro do neto do Hemingway e eu postei tanto o artigo quanto o conto dele Mulher de 38 para o John, onde Mirisola endeusa o Hemingway como se fosse um viagra.
John ficou puto e gritou no blog: fale com seu amigo que o nome da minha família não é poster infantil para viagra!!!"
O pai do John, Greg, foi muito sacaneado pelo velho Hemingway, que, bêbado e sarcástico, implicava até com a escrita do filho, que atribuía ao fato dele ser crossdressing e bissexual. Em contrapartida Greg dizia que o velho era um monstro bêbado e que assim ninguém o choraria quando morto.
Outro dia eu estava lendo As Ilhas da Corrente e esse texto é dominado pela relação do velho com o adolescente problemático Greg. Os problemas estão insinuados lá. Em dada altura, o personagem inspirado em Greg sonha com lobisomem (!) e fica sendo o culpado da morte de um membro da família (de fato, o velho acusava o filho disso).
Abs do Lúcio Jr
Heheheh! No filme do Woody Allen, Meia noite em Paris, Hemingway é meio sacaneado também, né. Obrigado, Lúcio! Abç
Oi, Giba. Na Meia-Noite em Paris o Hemingway é totalmente o estereótipo de machão que o John recusa. E recusa para mostrar que o velho Hemingway não era tão diferente assim de Greg.
John conta, por exemplo, que a mãe de Hemingway gostava de vesti-lo de mulher e exibi-lo em festas familiares como se fosse gêmea de uma prima. Hemingway era secretamente fascinado por androginia e e apoiou financeiramente o lesbianismo de Gertrude Stein.
Posteriormente, John conta que Greg viu Hemingway fazendo jogos sexuais e travestindo-se com uma de suas mulheres. A partir disso, Greg tb passou a roubar (e usar) sutiãs e --ao que se supõe --fazer outras cositas más...
Abs do Lúcio Jr.
Acho que tem mais que o estereótipo de machão de Hemingway, em Meia noite em Paris, Lúcio. Parece-me que por trás do machão havia a latência da homossexualidade, que ele queria esconder com aqueles arroubos de macheza, e Allen soube explorar bem isso. Tem um livro chamado Eram todos jovens - uma história de amor da geração perdida, de Amanda Vaill, em que ela conta as histórias de Gerald Murphy e Sara Murphy, os patronos milionários da maior parte das festas da turma em Nova York, Paris e riviera francesa. Nesse livro, Hemingway é descrito como um homem extremamente machão, mas ao mesmo tempo com uma tendência em querer namorar os colegas, homens e mulher, e se não me engano a autora narra algumas histórias homossexuais nesse sentido (é claro que não há aqui nenhuma depreciação da homossexualidade, ou bi, a não ser o fato de Hemingway não assumi-la e ser mais terno, rs). Li esse livro em 2001, e não o tenho em casa. Em todo caso, a maneira como Allen pinta Hemingway é dúbia. Abç!
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