terça-feira, 29 de novembro de 2011

Vinicius de Moraes e o amor total

Vinicius de Moraes (1913-1980)


Depois de Camões, talvez o poeta que mais tenha falado de amor na literatura de língua portuguesa tenha sido Vinicius de Moraes. Não se trata aqui de comparar o libertador do idioma lusitano, o artista que pôs nossa língua no mapa da existência literária, com o poeta brasileiro.

Mas não podemos nos esquecer que, além da influência de Shakespeare, Rimbaud e companhia, Vinicius também foi influenciado pela poesia de Camões. Os sonetos são parte dessa herança. O mais famoso deles é o de “Fidelidade”, “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.”

Vinicius de Moraes parece fácil. Passou da fase do sublime, das complexas golfadas de palavras, entre o místico e o hermetismo (“Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre/ Eu sinto a luz desesperadamente”), para a simpleza do verbo. Amar é o mais caro deles.

Na sua antologia de sonetos, o poeta abre um portal de diversidade temática, falando de amizade, natureza, pintura, cinema, futebol, animais e amor, claro. Mas sempre numa atmosfera de intimidade que encanta. Vinicius elegeu o soneto como a forma de manifestar seu espírito, sua alma larga e profunda de poeta, perpassando os poemas pela temporalidade.

A duração do tempo e a transcendência dele estão no centro da sua poética. E o objeto mais duro, como diamante, capaz de atravessar a massa espessa e invisível do tempo, é o amor. Mas não de maneira tão retilínea e simples. O amor em Vinicius é como uma chama que pode até se apagar, mas, contraditoriamente, não tem fim.

Para resolver a contradição, ou conceituá-la, aceita dizer que a duração, por mais relâmpago que seja, se vivida com tal intensidade, permanece na linha contínua do tempo, para sempre.

O amor, em geral, e o que ele mesmo sente, não precisa ser imortal “posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”, conclui o poeta em “Soneto de fidelidade”. Esta frase está ligada a uma tradição existencial que remonta aos gregos.

Estética existencial

Vinicius não criou nada de novo, neste caso, mas ousou formular uma estética existencialista, que mistura Kirkergaard, Pascal, Nietzsche, os romanos e os gregos. É como se dissesse “nosso momento é o que temos agora, vamos, portanto, senti-lo como se fosse para sempre”.

Todos conhecem essa ideia pela famosa frase em latim carpe diem (goze este dia, aproveite o dia), em um dos poemas de Horácio. Mas ela vem de mais longe, e consta no registro de um dos sete sábios da Grécia Antiga, Pítaco: “Aproveite o dia de hoje”. Foi a única coisa que sobrou do pensamento deste sábio, mas o eternizou.

Na literatura brasileira, antes de Vinicius, outro grande poeta que influenciou todas as gerações dos românticos, Basílio da Gama, também forjou dois versos que entraram para a história com ideia parecida: “Gozemo-nos agora, enquanto dura,/ Já que dura tão pouco a flor dos anos.”

O que Vinicius fez de diferente foi buscar o conceito de instante, que remonta a Platão e chega a Kirkergaard, para fazer dele uma espécie de portal da eternidade. Viver o amor dentro do instante é uma escolha de se entregar totalmente, mesmo sabendo que haverá a consequência do fim, uma vez que é chama, mas naquele momento o amor se torna eterno.

Igual ao “Soneto de fidelidade”, o poeta escreveu outros que compõem o quadro geral do amor, o amor como o que dá sentido à existência e que, portanto, não figura na horda mortal dos homens, apenas passeia por aqui, estando além, numa outra dimensão. Amar é mergulhar na experiência da eternidade. É claro que o tempo do amor, sim, é infinito, não o nosso próprio tempo. Este sempre acaba.

Além daqueles que não trazem a palavra ‘amor’ no título, o poeta dedicou três sonetos para configurar essa ideia de amar. “Soneto do amor maior”, “Do amor total” e “Do amor como um rio”. Para fechar esta conversa, segue o segundo poema e um rápido comentário sobre ele, em que o leitor pode sentir e entender como o poeta usa o ritmo e a musicalidade para fixar o significado do amor.

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Musicalidade

Dedicado a Lila Boscoli, a terceira mulher e uma das paixões mais arrebatadoras do poeta, “Soneto do amor total” foi escrito em 1951, quando Vinicius, aos 38 anos, conheceu Lila, que tinha 20, e se casou com ela naquele mesmo ano.

Já na primeira estrofe, o sujeito poético, que neste caso é mesmo Vinicius, faz uma afirmação categórica. O amor que sente não tem nada de ideal, é verdadeiro e real, e é maior do que uma pessoa pode suportar. A verdade que há nesse amor está acima do humano, ultrapassa o coração humano e vai além.

Já na segunda estrofe, levanta todo o peso do amor que sente e tenta fazê-lo se tornar mais leve, colocando-o no espaço do etéreo, do sublime, mergulhando na eternidade para talvez tentar suportar essa fixação absoluta. Mas na terceira estrofe, o poeta volta à experiência carnal do amor.

Lido todo o soneto, o leitor pode ver as palavras dançando dentro da musicalidade construída. Cria-se ao longo dos versos um jogo de contradição (antíteses) e música: eternidade, instante, amigo, amante, afim, enfim (sugerindo fim e infinito), além, presente.

É um amor intenso e total. Ninguém pode amar assim. As duas pontas do poema dizem isso claramente. No entanto, ele ama. Eis o espanto.

Em função do sentimento avassalador, o poeta tenta captar a totalidade desse amor. Para tanto, armou uma estrutura circular, simples no vocabulário, mas complexo no jogo de palavras. O poema só tem seis verbos: amar, cantar, haver (locução), morrer, ser e poder. E ele os conjuga com absoluta intensidade junto a substantivos, advérbios e adjetivos, criando a melopeia dos sentidos.

Se levarmos em conta algumas escolas teóricas, como a de Ezra Pound, vemos que as palavras usadas no poema têm uma tonalidade nasal que sugere interioridade. Essa jornada interior, que vai do primeiro verso ao último, repetindo a palavra ‘amor’ em combinações de substantivo e verbo, coloca esse sentimento no cerne da existência do poema e do poeta.

O poeta ama demais, e seu amor é totalizante, a ponto de ele não saber se suporta amar assim. É uma agonia, a agonia do gozo e da morte. A última estrofe funde essas duas concepções, uma carnal demais e outra que flerta com a finitude do corpo e a elevação da alma.

“E de te amar assim, muito e amiúde”, dize o poeta, “É que um dia em teu corpo, de repente/ Hei de morrer de amar mais do que pude.” Morre, mas renasce. Ressurge na circularidade das coisas, o eterno retorno.

Filosofia poética

O poema afirma que a totalidade do amor está além do que nos é possível. Nossa capacidade de amar não suporta o amor total. Essa concepção também é existencialista e está no centro das discussões da filosofia moral do século XX. Quem não ama não vive. Mas amar demais é ir de encontro à morte.

O filósofo francês Vladimir Jankélévitch escreveu um livro inteiro para falar do paradoxo da existência e colocou o amor no cerne dessa discussão. “Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simples fantasma”, diz em O paradoxo da moral.

Tal como Vinicius, Jankélévitch via no amor uma condição essencial da vida, e ao mesmo tempo, transcendente a ela. “Podemos amar até morrer – é essa contradição intestina que é demente, em verdade absurda, e, em certo caso, sublime.” O amor trespassa o corpo da vida no indivíduo, que morre, e por ser mortal, não consegue sustentar ad infinito o amor.

“O amor infinito, com sua abnegação infinita”, diz Jankélévitch, “tem necessariamente como sujeito um ser finito”. Eis o mesmo drama do poeta, que sabe de tudo isso também. O filósofo francês, ligado ao pensamento clássico e a ideias contemporâneas suas como as de Henri Bergson, tacitamente se comunica com essa poesia de Vinicius.

Todas as palavras caras ao existencialismo cristão estão no “Soneto do amor total”, como verdade, realidade, liberdade, eternidade, instante, mistério e virtude. Elas se juntam ao bojo do poema e criam uma polifonia própria, a música do amor total, cujo estribilho é a frase “amo-te”, ecoando todo o poema.

Desse modo, o amor pulsa no corpo do poema, que começa com o verbo amar no presente e termina com o verbo poder no passado, mas prevendo um futuro, dentro de uma circularidade que evoca a morte, mas de forma ambígua, pois morrer no corpo da mulher amada é o orgasmo, a morte ideal, que só o amor (ou o sexo) é capaz de proporcionar.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 27/11/2011)

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