terça-feira, 15 de novembro de 2011

A sonoridade da guerra



Os romances de guerra são inúmeros. Sobre a Segunda Guerra Mundial, então, há uma infinidade deles, de ex-soldados, de ex-prisioneiros de campo de concentração, de escritores que pesquisaram o período, de autores que criam em cima daquela atmosfera sem estudar profundamente o ambiente.

Há romances best-sellers, como O buraco da agulha, de Ken Follet, há os trágicos, como É isto um homem?, de Primo Levi, os diários, como o de Anne Frank. E há Guerra em surdina, do ucraniano Boris Schnaiderman, escrito em português, 20 anos depois de a Segunda Guerra acabar, guerra da qual ele participou junto às tropas brasileiras.

Schnaiderman, que nasceu na Ucrânia, em 1917, e veio para o Brasil aos oito anos de idade, participou da campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como sargento de artilharia, e presenciou de perto o horror da guerra. Seu romance é costurado numa mescla de focos narrativos que captam todas as vozes, cercando os fatos e o ambiente de vários ângulos possíveis.

Desse modo, ele mostra como a guerra desumaniza o homem, degrada-o, colocando a condição humana numa situação de absurdo. Aliás, o absurdo é uma presença constante nesse livro, e em diversos níveis, o que lembra um pouco os personagens de Albert Camus, como o que acontece no banheiro do navio, a caminho da guerra, em que os praças se encaram, sentados no vaso, um de frente para o outro, na hora da necessidade.

Outro exemplo camusiano se dá na repetição do ato de um segundo-sargento, responsável pela cozinha de uma unidade da FEB. Ele começa a contar uma pilha de latas de comida em conserva, mas quando está próximo dos cem, pensa na namorada. Desconcentra-se, perde a conta e tem de começar tudo de novo.

O absurdo da cena aproxima o cozinheiro ao personagem de Sísifo, o herói mitológico preferido de Camus. Sísifo driblou a morte duas vezes, e por isso fora condenado por Zeus a rolar uma pedra até o topo da montanha, mas antes de chegar, a pedra despencava de novo, e o anti-herói refazia seu trabalho, condenado a uma eterna repetição.

O que Schnaiderman deixa transparecer em seu romance é justamente esse contrassenso da guerra. Sua narrativa metralha palavras de forma precisa, concatenando um discurso límpido e fluente, cuja leitura não se deixa pela metade. O primeiro capítulo é um dos mais vertiginosos rumo à sangria do conflito, que culminou na vitória da FEB no Monte Castelo.

A meio tom

Mas o conflito maior era interior. Esta é a mensagem do autor, que demorou tanto tempo para escrever sua história porque não achava um tom adequado. Havia muitas perspectivas, muito drama dentro dele mesmo.

A palavra ‘surdina’ diz bastante de sua intenção. Significa, entre outras coisas, uma voz a meio tom, quase um sussurro, e também é o nome de um aparelho que serve para abafar a sonoridade de certos instrumentos musicais. Imagine o zunido da bala, as explosões, os gritos de dor, a revolta de não querer estar no front. Agora ponha tudo isso na alma dos indivíduos.

A força do romance de Schnaiderman está nessa capacidade de expor o drama de uma guerra pelo ponto de vista de quem mata e morre, não pelo de quem manda matar, que também está presente na trama, mas na revolta dos comandados. Uma cena no começo do livro, quando tudo vem na velocidade do tiro, mostra bem a resistência e o conflito em surdina.

Os homens foram mandados para exame de saúde. Ficaram descalços e de busto nu, andando de sala em sala da Policlínica Militar. De vez em quando, entravam numa sala, onde eram submetidos a exame sumário.


O médico militar encarregado do Exame Neuropsíquico nem erguia os olhos do papel em que vinham impressas as perguntas que devia fazer:

— Gosta da vida militar?
— Não, senhor.
— Pretende fazer carreira no Exército?
— Não, senhor.
— Houve algum louco em sua família?
— Não, senhor.
O médico rabiscava “normal” na ficha e gritava:
— O seguinte!


Imprescindível

Crítico literário, ensaísta e tradutor do russo, Boris Schnaiderman é professor aposentado pela Universidade de São Paulo (USP), e um dos fundadores do curso de estudos russos dessa instituição.

Na lista de suas traduções figuram os clássicos mais sublimes da literatura mundial, como Memórias do subsolo, Um jogador, O eterno marido, Nietotchka Niezvanova, todos de Dostoievski, além de autores como Tolstoi e Tchekhov.

Em 2010, ele lançou suas memórias, em que narra sua rica aventura de vida, contando passagens que marcaram sua infância, como quando assistiu aos bastidores da filmagem das cenas da escadaria do filme Encouraçado Pontemkin, obra prima de Sergei Eisenstein.

Este ano, ele lançou Tradução, ato desmedido, em que analisa a relação de fidelidade e liberdade de recriar na arte de traduzir. Guerra em surdina é seu único romance. Em 2004, a editora Cosac & Naify lançou a quarta edição do livro, que não é exatamente autobiográfico.


Entre dados que são de seu testemunho, o autor também cria, e o resultado é este romance imprescindível ao leitor da literatura brasileira, não só aos que gostam de narrativas de guerra, mas também aos que buscam a crítica humanista no crivo da arte.

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