como a barra da própria morte - com seu diáfano peso de nada."
Em entrevista ao jornalista da Globo News, Ediney Silvestre, Cony disse que decidiu, ainda garoto, ir para o seminário para subornar o amor e o respeito da família, que imaginava não ter. “Levei a sério a vida monástica até o início dos estudos superiores, quando comecei a estudar filosofia, e aí então perdi a fé. Pensei em continuar, porque gostava muito do seminário, mas não deu”, diz ele.
Segundo ele, às vezes se arrepende de ter ido para o seminário. Diz que só não teria sido mais feliz porque não está em seus projetos ser feliz, mas seria mais tranquilo, teria menos pesadelos.
A entrevista completa nos mostra um Cony culto, cético e um pouco amargo, mas sempre irônico. Um Cony humano, cheio de histórias para contar, que conta, em seus textos na Folha de S. Paulo, como o que segue abaixo, na íntegra, publicado hoje na Folha (24/07).
Sei que não é de bom tom copiar um texto total de um meio para o outro, mas é de Cony, e a Folha há de me perdoar.
Esse poderia ser uma espécie de testamento intelectual de Cony, a la Machado. Um Cony cuja inteligência ainda admiro. Ainda é delicioso ler seus textos no jornal. Mas a tristeza impressa neles, ou será em mim?, corta cada vez mais fundo.
“Da necessidade dos truques
De uns tempos para cá, tornou-se comum o camarada morrer e não saber. Evidente, os outros ‘sabem’, menos o próprio, que em tese e na prática devia ser o principal interessado no assunto. Vai daí, de repente descobri que um dos meus truques é fazer justamente ao contrário do que ficou estabelecido pelos atos, posturas, leis, decretos e regulamentos em vigor.
Por isso, decidi que morri no dia 1º de dezembro de 1981. Pode ser que muita gente acredite que morri antes desta feliz data para a humanidade, mas, para efeito pessoal, eu mesmo me decretei morto a partir daquele radioso dia de final de ano, lembro que fazia um sol que o Nelson Rodrigues classificaria como digno de rachar catedrais.
Em linhas gerais, e para fins particulares, estou morto e alguns ainda não sabem: amigos, parentes, credores e candidatos à Academia Brasileira de Letras, que são muitos e têm faro especial para essas coisas.
Pode parecer truque macabro, de péssimo gosto, mas tem lá suas vantagens. Não recebi qualquer tipo de homenagem, dessas que comumente se prestam aos defuntos. Não provoquei nenhuma lágrima pela minha ausência, nenhuma prece pela minha alma (e de nada adiantarão as rezas pela minha salvação), não mereci a módica linha impressa no obituário das folhas.
Aparentemente, tudo continuou como antes, mas eu sei que estou morto. Não tenho mais nada a ver com o que aí está, a vida, o mundo, as mulheres, o inverno, onde enterraram Michael Jackson, a crise no Senado, a faina humana e inglória. Bem verdade que os estabelecimentos bancários não aceitam essa morte de moto próprio, embora aceitem a hipótese de eu me espatifar por aí dirigindo minha própria moto. Moto que por sinal não tenho, justamente para não morrer de moto próprio.
Qual a vantagem de ter um truque? ‘Quid prodest?’ -perguntariam os latinos. Respondo: é uma sensação tranquila essa da gente se saber morto, clandestino morto, insuspeitado morto na tripulação do mundo. Não me sinto mais comprometido com nada - mas continuo como testemunha do espetáculo, não mais cúmplice nem vítima.
Enquanto vivi, evidente que vi eventos extraordinários que se transformaram em ordinários. Um deles foi me tornar cronista de jornal sendo obrigado a dizer coisas quase todos os dias e sem ter nada a dizer em meu interesse ou no interesse dos outros. Isso sem falar no remoto ano em que levei originais mal datilografados a um editor e ele me disse: ‘Eu topo!’.
Bem verdade que então era ainda vivo mas suspeitava que a minha vida entrava na fase vegetativa.
Lembro um episódio da vida de Napoleão. Quando foi coroado na Notre Dame, tendo obrigado o papa a se deslocar para Paris a fim de presidir a solenidade, sua mãe Letícia ocupava um camarote ao lado do altar-mor.
Ela viu aquela pompa toda, aquele absurdo, seu obscuro rebento nascido na distante Ajácio sendo sagrado imperador do mundo.Virou-se para sua filha Paulina e comentou: ‘Se o pai de vocês visse isso!’
Carlo Buonaparte já havia morrido de fato, não teve vida bastante para assistir às estripulias do filho. Mas se visse?
Taí a chave do truque. Ao contrário do pai de Napoleão, continuo pagando imposto de renda e demais posturas federais, estaduais e municipais, vendo muita coisa interessante sem a obrigação de tomar partido, de gostar ou de desgostar, de sofrer ou de encontrar prazer com a desdita ou a glória dos outros.
Dessa forma, me aproximarei, concretamente, daquele personagem de Gorki que muito gosto de citar. Era um bêbado que falava demais ou ficava calado demais. Um dia explicou: ‘Eu me aborreço em voz alta e me distraio em silêncio’.
Aliás, essa necessidade de ter um truque vem também de Gorki: um personagem que, ao se suicidar, deixou um bilhete para o colega de quarto, um vagabundo tão miserável quanto ele, explicando por que se matava: ‘Faltou-me um truque’.
Sem truque, é difícil, quase impossível aguentar a barra da vida. Com meu truque, não só aguentarei a barra da vida – pesadíssima - como a barra da própria morte - com seu diáfano peso de nada.”
Segundo ele, às vezes se arrepende de ter ido para o seminário. Diz que só não teria sido mais feliz porque não está em seus projetos ser feliz, mas seria mais tranquilo, teria menos pesadelos.
A entrevista completa nos mostra um Cony culto, cético e um pouco amargo, mas sempre irônico. Um Cony humano, cheio de histórias para contar, que conta, em seus textos na Folha de S. Paulo, como o que segue abaixo, na íntegra, publicado hoje na Folha (24/07).
Sei que não é de bom tom copiar um texto total de um meio para o outro, mas é de Cony, e a Folha há de me perdoar.
Esse poderia ser uma espécie de testamento intelectual de Cony, a la Machado. Um Cony cuja inteligência ainda admiro. Ainda é delicioso ler seus textos no jornal. Mas a tristeza impressa neles, ou será em mim?, corta cada vez mais fundo.
“Da necessidade dos truques
De uns tempos para cá, tornou-se comum o camarada morrer e não saber. Evidente, os outros ‘sabem’, menos o próprio, que em tese e na prática devia ser o principal interessado no assunto. Vai daí, de repente descobri que um dos meus truques é fazer justamente ao contrário do que ficou estabelecido pelos atos, posturas, leis, decretos e regulamentos em vigor.
Por isso, decidi que morri no dia 1º de dezembro de 1981. Pode ser que muita gente acredite que morri antes desta feliz data para a humanidade, mas, para efeito pessoal, eu mesmo me decretei morto a partir daquele radioso dia de final de ano, lembro que fazia um sol que o Nelson Rodrigues classificaria como digno de rachar catedrais.
Em linhas gerais, e para fins particulares, estou morto e alguns ainda não sabem: amigos, parentes, credores e candidatos à Academia Brasileira de Letras, que são muitos e têm faro especial para essas coisas.
Pode parecer truque macabro, de péssimo gosto, mas tem lá suas vantagens. Não recebi qualquer tipo de homenagem, dessas que comumente se prestam aos defuntos. Não provoquei nenhuma lágrima pela minha ausência, nenhuma prece pela minha alma (e de nada adiantarão as rezas pela minha salvação), não mereci a módica linha impressa no obituário das folhas.
Aparentemente, tudo continuou como antes, mas eu sei que estou morto. Não tenho mais nada a ver com o que aí está, a vida, o mundo, as mulheres, o inverno, onde enterraram Michael Jackson, a crise no Senado, a faina humana e inglória. Bem verdade que os estabelecimentos bancários não aceitam essa morte de moto próprio, embora aceitem a hipótese de eu me espatifar por aí dirigindo minha própria moto. Moto que por sinal não tenho, justamente para não morrer de moto próprio.
Qual a vantagem de ter um truque? ‘Quid prodest?’ -perguntariam os latinos. Respondo: é uma sensação tranquila essa da gente se saber morto, clandestino morto, insuspeitado morto na tripulação do mundo. Não me sinto mais comprometido com nada - mas continuo como testemunha do espetáculo, não mais cúmplice nem vítima.
Enquanto vivi, evidente que vi eventos extraordinários que se transformaram em ordinários. Um deles foi me tornar cronista de jornal sendo obrigado a dizer coisas quase todos os dias e sem ter nada a dizer em meu interesse ou no interesse dos outros. Isso sem falar no remoto ano em que levei originais mal datilografados a um editor e ele me disse: ‘Eu topo!’.
Bem verdade que então era ainda vivo mas suspeitava que a minha vida entrava na fase vegetativa.
Lembro um episódio da vida de Napoleão. Quando foi coroado na Notre Dame, tendo obrigado o papa a se deslocar para Paris a fim de presidir a solenidade, sua mãe Letícia ocupava um camarote ao lado do altar-mor.
Ela viu aquela pompa toda, aquele absurdo, seu obscuro rebento nascido na distante Ajácio sendo sagrado imperador do mundo.Virou-se para sua filha Paulina e comentou: ‘Se o pai de vocês visse isso!’
Carlo Buonaparte já havia morrido de fato, não teve vida bastante para assistir às estripulias do filho. Mas se visse?
Taí a chave do truque. Ao contrário do pai de Napoleão, continuo pagando imposto de renda e demais posturas federais, estaduais e municipais, vendo muita coisa interessante sem a obrigação de tomar partido, de gostar ou de desgostar, de sofrer ou de encontrar prazer com a desdita ou a glória dos outros.
Dessa forma, me aproximarei, concretamente, daquele personagem de Gorki que muito gosto de citar. Era um bêbado que falava demais ou ficava calado demais. Um dia explicou: ‘Eu me aborreço em voz alta e me distraio em silêncio’.
Aliás, essa necessidade de ter um truque vem também de Gorki: um personagem que, ao se suicidar, deixou um bilhete para o colega de quarto, um vagabundo tão miserável quanto ele, explicando por que se matava: ‘Faltou-me um truque’.
Sem truque, é difícil, quase impossível aguentar a barra da vida. Com meu truque, não só aguentarei a barra da vida – pesadíssima - como a barra da própria morte - com seu diáfano peso de nada.”