“O caminho do samurai é a morte” (Hagakure)
Foto: Elliott Erwitt/Magnum Photos
Yukio Mishima (1925-1970): uma morte ímpar, cometida por razões ímpares, dizem os fãs, condenando o gesto, mas aplaudindo a bravura |
O suicídio é tabu em todos as culturas, inclusive na japonesa que, bem antes dos homens-bomba muçulmanos, expressou sua vontade de morrer num ritual de guerra espetacular, na figura dos kamikaze, na Segunda Guerra Mundial.
Kami, em japonês, é deus, e kaze, vento. Logo, a morte dos homens que se encapsulavam num avião de guerra – carregado de bomba, voando direto ao alvo até tudo explodir – era o resultado de um “sopro divino”.
Não era a morte em si que interessava a esses bravos homens. A morte em si era apenas uma consequência da beleza do gesto, do sopro de deus que os empurrava até seu destino inexorável.
Encarar a morte como elemento estético não é para qualquer um. Mas a cultura antiga dos japoneses já estava acostumada com esse espírito, acima de tudo, corajoso, esse espírito invencível, ao mesmo tempo elástico e inquebrável, porque nem a morte os vencia. A morte era só uma passagem, só mais uma etapa do truque da vida.
No caso dos samurais, a morte, segundo o próprio Hagakure, o segundo código ético dos guerreiros que mais valorizaram a beleza como elemento essencial da existência (o primeiro é o Bushido), era apenas o caminho por meio do qual realizavam a própria vida.
Um dia, esse caminho chegava ao fim, que poderia ser uma planície (metáforas minhas) – morte na velhice, talvez, uma trajetória longa e enfadonha –, uma montanha, luta malograda, o ápice, ou um precipício, que seria o famigerado seppuku, que no Ocidente ficou conhecido por meio de outra palavra japonesa, haraquiri, ritual sublime, espantoso, que há muito tempo é condenado pelos códigos morais do Japão moderno.
Os samurais eram homens cultos, sensíveis. Um dos grandes samurais da história japonesa, Matsuo Bashô criou a forma poética por excelência do Japão, o hai-kai. Mas não se arredavam da morte. Não se curvavam, não se acovardavam.
Sinceridade nas vísceras
Na cultura dos samurais, o haraquiri é cometido para reparar uma falta grave diante do seu senhor, seu mestre, o xogum, ou da própria sociedade. Todo samurai vivia como defensor das terras do xogum (donos de terra, que mantinham servos para cultivá-la e samurais para defendê-la).
Se houvesse algum desentendimento, e o samurai, em vez de se matar, resolvesse sair fora, ele se tornava um ronin. Mas a maioria preferia a morte.
O escritor japonês Yukio Mishima costumava contar a história de que o maior valor do samurai era a sinceridade, que estava nas vísceras. Quando cometia algo vergonhoso diante do seu senhor, o samurai pedia perdão. Para demonstrar que seu pedido de perdão era sincero, rasgava o ventre no ritual de haraquiri.
Para quem quer entender melhor esse jogo espiritual, há um filme japonês chamado justamente Haraquiri (Seppuku, em japonês), de 1962, que teve um remake homônimo em português, em 2011, mas que em japonês se chama Ichimei. O filme retrata a contradição entre a velha cultura japonesa e a nova, tendo a prática do haraquiri como fulcro.
Mishima se gabava de ter uma alma clássica japonesa, embora amasse também a arte ocidental, mas não a política. Ele nasceu em 1925, em Tokyo, e, portanto, testemunhou a ascensão e a derrocada do Japão imperial do século XX.
Ele viu o belicoso Estado japonês, que chegou a dominar a China e a Coreia, ser trucidado pelas forças armadas americanas, no final da segunda Guerra Mundial, com o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Ele cresceu com essa espécie de angústia lhe cravando a alma. Mishima tem romances belíssimos. Era um criador de metáforas sublimes, como no Templo do pavilhão dourado, que narra a história de um jovem desajustado que quando garotinho presenciou a mãe transando com o amante ao lado do leito de morte do pai.
Esse rapaz não assimilou bem o baque, e mais tarde desenvolveu um senso estético que beirava a loucura, apaixonando-se apenas pelas coisas estranhas, feias, fora do padrão, mas tomou gosto pela beleza do Pavilhão Dourado (construído em 1397), em Kyoto, que existe até hoje, mas que de fato fora queimado várias vezes, e a última delas por um monge que inspirou Mishima.
Contra o artigo 9º da Constituição
O presente texto tem como objetivo apenas descrever a cena da morte de Mishima, e não exatamente falar de sua obra que tem uma riqueza digna de um texto separado. Ele era um suicida esteta, que levava a sério a ideia dos samurais sobre rasgar o ventre para demonstrar sua sinceridade.
Quando o Japão criou sua nova Constituição em 1946, entrando em vigor em 1947, Mishima tinha 22 anos de idade. Desde aquela época, ele não se conformava com o fato de o artigo 9º ser um ato de submissão japonesa ao império americano, dizendo que abdicava de forças armadas ofensivas.
É por aí que a biografia de Mishima vai se embrenhando até sua morte. Era um nacionalista exaltado, um orador inflamado. Inteligente, e dono de uma verve literária ímpar, foi algumas vezes candidato bem cotado para o Nobel de Literatura.
Em 1968, Yasunari Kawabata (1899-1972), a quem Mishima admirava, ganhou o Nobel, e Mishima entendeu que dificilmente seria laureado. A partir daí, aumentou sua onda de protesto contra a Constituição Japonesa.
O fascínio dos autores japoneses pela morte é algo fora da curva. Muitos se mataram ou escreveram sobre suicídio. Kawabata, por exemplo, se mataria em 1972. Mas antes, em 1970, Mishima se matou, fazendo de seu suicídio uma ficção levada ao grau máximo.
Foi um gesto para mostrar sua sinceridade sobre o artigo 9º da Constituição japonesa, que submetia a nação nipônica aos EUA. A história é contada na biografia A vida e a morte de Mishima, do jornalista britânico Henry Scott Stokes.
Mishima tinha uma milícia de estudantes (permitida no Japão da época), e escolheu três de seus melhores integrantes para auxiliá-lo no espetáculo macabro que se desenrolaria no gabinete do chefe do Estado-Maior do Japão (que fora rendido), com toda a imprensa convocada, lá fora.
Há documentários, filmes e vídeo com cenas reais do caso no Youtube, para quem possa se interessar. Após cometer haraquiri, Mishima teria de ter a cabeça decepada, conforme pedia o protocolo do ritual, para que não ficasse em agonia até morrer.
Segue o que se narra
“O escritor (Mishima) desceu o pequeno lance de degraus, coberto por tapete vermelho, que dava acesso à sala do general.
- Eles não conseguiram escutar direito o que eu disse – comentou com os estudantes.
Morita entrou na sala atrás dele.
Mishima começou a abrir os botões da túnica. Estava num canto da sala, perto da porta do gabinete do chefe do Estado Maior, de onde não podia ser visto, através dos vidros quebrados, pelos homens no corredor.
Já tinham tirado a mordaça da boca do general. Ficou olhando enquanto Mishima despia a túnica, mostrando o torso nu – não usava nem camiseta.
- Pare! – exclamou Mashita. – Não vai adiantar nada.
- Me comprometi a fazer isso – retrucou Mishima. – O senhor não deve seguir meu exemplo. A responsabilidade não é sua.
- Pare!
Mishima não atendeu o pedido. Desamarrou os coturnos, jogando-os longe. Morita se aproximou e pegou o sabre.
- Pare!
Mishima tirou o relógio do pulso e entregou-o ao estudante. Ajoelhou-se no tapete vermelho, a uns dois metros da cadeira de Mashita. Abriu a braguilha e afrouxou a calça. A fundoshi (tanga) branca que usava por baixo ficou visível. Já estava quase nu. O peito pequeno, possante, ofegava.
Morita tomou posição atrás dele, de sabre em punho.
Mishima segurava um yoroidoshi, punhal pontiagudo, de lâmina reta e uns trinta centímetros de comprimento, na mão direita.
Ogawa se adiantou com um mohitsu (pincel) e uma folha de papel. Mishima tinha planejado escrever uma última mensagem com seu próprio sangue.
- Não. Eu não preciso disso – disse o escritor.
Com a mão canhota, esfregou a parte inferior esquerda do ventre. Naquele ponto, fincou o punhal que tinha na mão direita.
Morita levantou o sabre bem alto, de olhos fixos na nuca de Mishima. A testa do estudante estava coberta de suor. A ponta do sabre tremia, as mãos haviam perdido a firmeza.
Mishima gritou uma última saudação ao imperador.
- Tenno Heika Banzai! Tenno Heika Banzai! Tenno Heika Banzai!
Encolheu os ombros e expeliu o ar contido no peito. Os músculos das costas se distenderam. Aí, então, tornou a encher os pulmões, ao máximo.
- Haa... au!
Mishima soltou todo o ar que tinha no corpo, dando um último grito selvagem.
Fincou o punhal com toda a força na boca do estômago. Depois desse golpe violento, o rosto empalideceu e a mão direita começou a tremer. Mishima arqueou as costas, iniciando o corte horizontal, de um lado a outro. À medida que cravava o punhal, o corpo tentava rejeitar a lâmina; a mão que executava o trabalho sacudia de maneira impressionante. Procurou ajudar com a canhota, fazendo o máximo de pressão possível sobre o lado direito. O punhal permaneceu no talho e ele continuou a cortar em forma de cruz. O sangue jorrava da ferida, escorrendo ventre abaixo, caindo no colo, manchando a fundoshi de vermelho vivo.
Com derradeiro esforço, Mishima completou o corte transversal, de cabeça baixa e nuca exposta.
Morita se aprontou para atacar com o sabre e degolar a cabeça do líder.
- Não me deixe ficar muito tempo em agonia – tinha pedido Mishima.
O estudante cerrou os pulsos no cabo do sabre. Enquanto olhava, Mishima caiu de bruços no tapete vermelho.
Morita aplicou a lâmina com toda a força. Tarde demais. O impacto do golpe foi grande, mas o sabre estalou contra o tapete vermelho no lado oposto de Mishima, que recebeu um corte profundo nas costas e nos ombros.
- De novo! – gritaram os outros dois estudantes.
Mishima, caído no tapete, gemia, asfixiado pelo próprio sangue e se retorcendo de ambos os lados. Os intestinos lhe escorriam da barriga aberta.
Morita tornou a aplicar o sabre. Errou, mais uma vez, a pontaria. Acertou no corpo, e não no pescoço de Mishima. O ferimento foi terrível.
- Tentou de novo!
O estudante quase não tinha mais força nas mãos. Ergueu pela terceira vez o sabre cintilante e golpeou com violência total a cabeça e a nuca de Mishima. Quase lhe decepou o pescoço. A Nuca pendeu, enviesada, contra o corpo; o sangue jorrava sem parar.
Fuku-Koga se aproximou. Tinha experiência de kendô, a esgrima japonesa.
- Me dá esse sabre! – pediu.
Com uma única cutilada, separou a cabeça do corpo.
Os estudantes se ajoelharam.
- Rezem por ele – disse Mashita, curvando a cabeça da melhor maneira que lhe era possível.
Em silêncio, os três rapazes rezaram uma oração budista.
O único ruído que se ouvia na sala provinha dos soluços dos estudantes. Lágrimas lhes escorriam pelo rosto. O cadáver começou a borbulhar: o sangue, que afluía pelo pescoço, se espalhava pelo tapete vermelho.
A sala se encheu de fedor de carne viva. As vísceras de Mishima tinham se esparramado pelo chão.”
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