Foto: Jesús Ciscar
A palavra como arte é subversiva, e é por isso que ela nos tira do curso monótono da vida. É preciso ter cuidado, porque ela pode nos guiar para mares inavegáveis. Esse desvio de rota é visto em personagens como Dom Quixote, Policarpo Quaresma, Emma Bovary e até o real Domenico Scandella, do livro de Carlo Guinzburg, O queijo e os vermes, que sofreram a influência da leitura.
Mas é aí que está a delícia da arte literária. A aventura dentro da qual o leitor se encontra compartilha elementos de quem escreve e de quem lê. A leitura literária é uma espécie de espelho que nos revela os caminhos mais secretos de nossa própria alma. Ler um bom livro equivale a explorar nossos sentimentos. Porque somos todos humanos.
Quem escreve pode ter uma visão mais larga, mais ampla daquilo que sentimos e vemos, daquilo sobre o qual também pensamos, e pode nos mostrar uma maneira mais plena de olhar o mundo.
Quem escreve pode inclusive nos dar a oportunidade de conhecer algo novo ou sobre nova perspectiva. Mas isso não significa que esse algo novo esteja fora de nossa própria existência. Na verdade isso pouco importa.
O importante é saber que a leitura da arte literária vai além da articulação da informação. Tem como fator principal a formação estética e o prazer. Com ela, aprendemos a olhar as coisas de modo diverso sem perder o princípio do prazer. E por isso mesmo, a leitura nos dá a capacidade de olhar para dentro de nós mesmos por intermédio da palavra do outro.
A literatura como arte lida com emoções, forja um conhecimento sensível que tem na emoção sua mola propulsora, por meio da qual se alcança o estético. Daí a palavra ‘estético’ vir de ‘estesia’, ou seja, sensibilidade. Outras palavras também têm sua raiz no vocábulo ‘estesia’, como anestesia e sinestesia, respectivamente, ‘sem os sentidos’ e ‘mistura das sensações’.
Desse modo, a literatura é sensual. E quanto mais concentrada em significado, quanto mais suas palavras forem polissêmicas, mais ela corresponde ao valor literário.
Ler é colher as palavras, abrir brechas na espessura misteriosa do texto e da vida. Conhecimento também é texto (tecido). Literatura também é conhecimento. Mas é um tipo de conhecimento, um tipo de saber que não se faz pela objetividade do mundo, de fora para dentro, mas pela articulação subjetiva das verdades.
Um exemplo desse conhecimento interior e do conflito que vem dele é o poema de Ferreira Gullar, Traduzir-se:
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?
A leitura do texto literário pode ser feita de várias maneiras. E não é porque queremos, é porque a própria literatura possibilita diversos modos de ver aquilo que está sendo dito. Citei a poesia, mas a prosa também se enquadra no elemento do espanto, do estranhamento.
2 comentários:
Belíssimo trabalho... parabéns..
Obrigado, Daiene!
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