Edmund White
O novelo vai se destrinchando, ao mesmo tempo tirando o fôlego do leitor e causando-lhe embriaguez. Ao darmos o primeiro passo em direção à mata, estamos mergulhando numa experiência única da literatura. Não é à toa que dois volumes têm títulos que levam a palavra caminho: No caminho de Swan e o Caminho de Guermantes.
Uma floresta densa, essa do texto de Marcel Proust, cujo caminho deve ser marcado com alguma coisa, uma picada, uma série de objetos imaginários distribuídos ao longo do caminho, como se nós leitores fôssemos João e Maria, e ainda assim, dela não se consegue sair como entrou, e se entrar, de novo haverá nova mudança de olhar, transformação ad infinito, conforme depõe o bibliófilo José Mindlin, em seu livro Uma vida entre livros: reencontros com o tempo (Edusp/Companhia das letras).
“Comecei a ler o Em busca do tempo perdido quando tinha vinte e poucos anos, achando difícil, e estando em dúvida se iria continuar ou não, quando uma noite encontrei Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) em casa de Luiz Camilo de Oliveira Neto – um de meus maiores amigos – e Proust surgiu na conversa.
Não sei se por rompante da mocidade ou por querer ser espirituoso (o que em geral não dá certo), fiz um comentário meio bobo, dizendo que ‘Proust descrevia o sono tão bem que a gente adormecia’.
‘Você está muito enganado rapaz’, disse-me o Dr. Alceu. ‘Leia com todo o esforço que seja necessário as primeiras cinquenta páginas. Se nessa altura, você não sentir que entrou no universo de Proust, leia, também, com todo o esforço, mais cinquenta, que aí você não vai largar mais.’
Segui o conselho, e fiquei devendo àquele grande crítico um serviço inestimável, pois o que ele disse aconteceu. Ao todo, li a Recherche cinco vezes, com intervalos de mais ou menos dez anos, e cada leitura foi diferente, mas todas me deram muito prazer.”
O início do labirinto
Muitos leitores apontam o início de Em busca do tempo perdido como a grande barreira da narração de Proust. O próprio Mindlin foi salvo pelo peso da opinião de Alceu Amoroso Lima.
Em compensação, muitos outros leitores não veem essa barreira. Eu, pessoalmente, não creio que seja menos penoso do que todo o resto do romance, tampouco menos brilhante. Assim começa o primeiro parágrafo:
“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Adormeço’. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à parada próxima: o caminho que ele segue vai ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.” (Globo, Tradução de Mário Quintana)
Haverá poucos parágrafos menores, e as frases não serão menos centopéicas. O leitor precisa se agarrar nas sinuosidades do texto para não sucumbir na tempestade que troa dentro da selva labiríntica do livro.
A experiência
Pela editora Globo, Em busca do tempo perdido foi publicado em sete volumes: No caminho de Swan; À sombra das raparigas em flor; O caminho de Guermantes; Sodoma e Gomorra; A Prisioneira; A Fugitiva; e O tempo redescoberto.
De vez em quando mergulho ao léu nesse mar de palavras e encontro sempre tesouros inestimáveis de linguagem, frases tão bem torneadas que queremos fixá-las na memória para repeti-las, fazer delas mantra. Mas são tantas e tão polissêmicas, ecoam tão profundamente que o melhor a fazer é calá-las no espírito e trabalhá-las em nossa alma silenciosamente.
Quem lê Em busca do tempo perdido não perde tempo. O mínimo que se ganha é uma aula bem dada de história da pintura, de história da literatura, lições de estética, de como escrever com forma e conteúdo.
Mais ainda, Proust nos envolve nos mais delicados questionamentos éticos e suscita em nós o sentimento da paixão, da amizade, do ciúme, do preconceito, verdades e mentiras com as quais construímos nossa base moral. Só depois vem o lugar da crítica social, em que o autor denuncia o vazio da burguesia e da aristocracia francesas.
Trechos:
“O carro da sra. de Villeparisis ia depressa. Mal me dava tempo para ver a menina que vinha em nossa direção; e, contudo, como a beleza das criaturas humanas não é igual à das coisas, e sentimos muito bem que pertence a uma criatura única, consciente e de livre vontade, enquanto a sua individualidade, alma vaga, vontade desconhecida, se pintava em imagem prodigiosamente reduzida, mas completa, no fundo de seu distraído olhar, imediatamente – misteriosa réplica do pólen preparado para o pistilo – sentia em mim o embrião vago, minúsculo também, do desejo de não deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tivesse consciência da minha pessoa, sem impedir que seus desejos se dirigissem a outro homem, sem que eu entrasse nessas ilusões e me assenhoreasse de seu coração. Enquanto isto, o carro afastava-se, a rapariga ficava para trás, e como carecia a meu respeito de quaisquer das noções que constituem uma pessoa, os seus olhos, que mal me tinham visto, já me haviam esquecido.” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)
“Se e pudesse descer do carro e falar com a moça que passava, talvez me houvesse desiludido qualquer imperfeição de sua pele, que não se poderia ver do carro. (E então, de súbito, todo esforço para penetrar na sua vida me pareceria impossível. Pois a beleza não é senão uma série de hipóteses, e a fealdade a reduz, postando-se naquele caminho que já vimos entreabrir-se para o desconhecido.) Talvez uma só palavra sua, um sorriso, me tivessem dado uma chave ou código inesperado para compreender a expressão de seu rosto ou de seu porte, que imediatamente já me pareceriam banais.” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)
“Em Paris, alguns anos depois da minha primeira viagem a Balbec, ia eu de carro com um amigo de meu pai quando vi uma mulher andando muito depressa na escuridão da noite; ocorreu-me que seria tolice perder por uma questão de cortesia a minha parte de felicidade na única vida que sem dúvida existe; desci sem desculpa alguma e lancei-me em busca da desconhecida; perdi-a num cruzamento de ruas, dei com ela no seguinte, e afinal, sem fôlego, me vi cara a cara com a velha sra. Verdurin, da qual eu sempre fugia, e que me disse, muito contente e admirada: ‘Que amabilidade a sua, correr para vir cumprimentar-me!’” (À sombra das raparigas em flor; Globo; Tradução de Mário Quintana)
“É espantoso como o ciúme, que passa o tempo engendrando pequenas suposições falsas, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
“Para figurar numa situação desconhecida, a imaginação pede elementos conhecidos, e por isso não a figura, mas a sensibilidade, ainda a mais física, recebe, como o traço do raio, a assinatura original, e por muito tempo indelével, do acontecimento novo.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
“Deixemos as mulheres bonitas aos homens sem imaginação.” (A Fugitiva; Globo; Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
10 comentários:
parbéns pelo blog>Certamente ele merece um prêmio.
Vou seguir com atenção.um abraço do James(Minha literatura agora)
Muito obrigado, James!
Abraço!
Ótimo. Estimulante! Eu que já estava com muita vontade de ler essa obra...agora mais ainda. Tomei conhecimento de Proust no filme "Pequena Miss Sunshine". Agora estou mais louco do que antes para lê-lo! O problema é que vou ter que esperar! Esperar que essa obra venha até mim...Por seus caminhos certos ou não!
Gostei do seu texto, e da imagem do João e Maria ao lermos Proust. Sou estudante de Letras e me apaixonei por ele nesses últimos meses. Estou lendo a tradução do Quintana para os 4 primeiros volumes, mas os 3 últimos comprei a tradução portuguesa do Pedro Tamen, pela Relágio D'Água. É belíssima, tanto que pretendo comprar os 4 primeiros volumes da tradução dele e ler tudo novamente.
Maravilha! Proust forma leitores. É uma grande aula, além de um enorme prazer, lê-lo, né.
Um abraço!
Não conheço muita coisa... quero dizer, na verdade não conheço nada de Proust, mas me interessei pela obra desde de que percebi que ele indiretamente me influência, pelo menos como leitor, na medida em que fez a cabeça de muitos escritores que mantenho estima e interesse. Então decidi procurar alguns ensaios a respeito do autor, pela rede, mas nada encontrei de consistente por durante um tempo, até que encontrei o seu blog, com esse texto simples e bem rico, pois efetiva sua finalidade: disperta o interesse! Muito obrigado pela fonte. Em breve voltarei a te visitar.
Ah! Como blogueiro eu ñ poderia deixar de me oferecer, rsrs:
maxxhonorato.blogspot.com.
abraço.
Obrigado, Max! Linkei seu blog ao meu também, acho mais fácil de acompanhá-lo assim. Obrigado também por seguir meu blog! Abraço e boa leitura de Proust!
Hebe aevedo Salgado Serpeloni:
Parabéns pelo Blog. Adorei!
Parabéns pelo blog! Esta obra de Proust marcou para sempre a minha vida. Para mim, é o melhor livro que li (ou melhor, livros). Descreve com grande sensibilidade a alma humana. Um abraço
Obrigado, Maria Regina! Também pra mim, junto com Grande sertão: veredas. Um abraço!
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