domingo, 29 de maio de 2011

Contos gauchescos, a rica herança dos pampas



O gaúcho, aquele de fala tradicional, que arrasta no sotaque, segura a palavra com tanto amor que parece até querer guardá-la no cativeiro afetivo do verbo. Para ler Contos gauchescos, de João Simões Lopes Neto (1865-1916), é imprescindível não se esquecer disso. E aí, é só se entregar ao mundo mágico de entreveros e labutas dos pampas do século XIX.

A literatura brasileira tem uma larga dívida com este livrinho que encerra 18 contos, e vem pagando bem a parte que lhe cabe. Obra-prima publicada originalmente em 1912, ainda se mantém presente no prelo de grandes editoras. A Ática, por exemplo, lançou sua décima edição, em 2010 (128 páginas, R$ 21,90, com ótimo prefácio de Moacyr Scliar).

Os contos dão grande ideia de movimentação. Narrado por Blau Nunes, especialista em rastrear animais e pessoas, o livro traz a atmosfera dos pampas, não só do Rio Grande do Sul, mas da região dos gauchos (sem acento), banhada pelo rio da Prata, que pega parte do Brasil, Uruguai e Argentina, com vocabulário que também vem da língua espanhola.

Neste sentido, Contos gauchescos se integra a uma espécie de cânone da literatura fronteiriça, e acaba sendo mais que uma obra regional. Basta lembrar de Cavalos do amanhecer, de Mario Arregui, e Contos de amor, de loucura e de morte, de Horacio Quiroga, ambos autores uruguaios.

Amor e morte também são a tônica do livro de Lopes Neto. Os acontecimentos dos pampas são marcados pelos sentimentos de coragem e bravura, pela força de grandes paixões e aventuras em sangue, hombridade, nobreza e baixeza.

No conto Os cabelos da china, é possível ver essa dinâmica com bastante clareza, dialogando inclusive com os elementos de outra tradição literária, a do sertão, como em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Aliás, não é por acaso que o tecido da prosa roseana é confeccionado tão próximo da fala cotidiana. Há forte influência do autor gaúcho.

Matizes

O amadurecimento da obra regionalista brasileira, até desaguar na expressão máxima de Rosa, passou pela leitura de Lopes Neto, sem dúvida. Outro escritor talentoso que tentou inscrever sua marca nessa mesma linha foi o paranaense Wilson Bueno, que morreu em 2010, mas deixou um fruto admirável desse esforço.

Pelo menos dois importantes livros de Bueno foram criados entre o sotaque gaúcho, ou sulista, e o formidável trabalho poético da linguagem em prosa: as novelas Mar Paraguayo e Meu tio Roseno, a cavalo.

No caso de Contos gauchescos, os matizes do verbo também mudam conforme o conto. Em alguns, o riso fica mais à vista. Em outros, o drama. E às vezes, a narrativa abre passagem para a tragédia rasgada, como em vários contos.

Um exemplo dessa veia aberta do trágico é No manantial, em que um rapaz se apaixona por uma bela moça, e quando ela fica noiva de outro, o primeiro não se conforma e a persegue, causando a morte de muita gente.

Os personagens de Lopes Neto são peões, tropeiros a serviço de chefes e caudilhos. O próprio narrador, Blau, já bastante velho no momento de suas narrações, foi um desses homens que lutaram em todas as guerras do século XIX, período de formação da cultura gaúcha por excelência.

Nascido no começo daquele século, Blau testemunhou a Guerra Cisplatina, em 1827, e lutou na Guerra dos Farrapos (1835-45), sob o comando do general Bento Gonçalves. Também participou da Guerra do Paraguai (1864-70), como sargento, às rédeas de Duque de Caxias.

Precursor

Blau é um personagem fictício, e sua inserção nos fatos históricos confere a ele uma credibilidade que ajuda o leitor a fincar interesse nas histórias narradas. Todas as informações sobre sua vida, entre uma conversa e outra, é ele mesmo que vai contando.

Neste sentido, o personagem de Lopes Neto é um precursor de Riobaldo, o narrador de Grande sertão: veredas. Isso porque todos os relatos de Blau são contados em rodas de conversas e mate, narrados a terceiros que o escutam com grande atenção, inclusive interrompendo-o para garimpar detalhes da história ou expressar espanto.

A linguagem às vezes soa como um monólogo teatral. O que não revela surpresa. O autor de Contos gauchesco fez mais sucesso em sua época com as peças de teatro que escrevia do que com sua prosa. No total, foram oito textos, todos de comédia.

O cômico que perpassa alguns de seus contos está mais acentuado em Chasque do imperador. Ali também pode se ver a fala cotidiana estilizada que encantou Rosa. "Sou um gaúcho mui cru", diz Blau. "Mas para cumprir ordens e dar o pelego, tão bom haverá, melhor que eu, não."

Ou, ao descrever o imperador Dom Pedro II:

Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos de pedras finas...

Mas, não senhor, era um homem de carne e osso, igual aos outros... mas como quera... uma cara tão séria... e um jeito ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de rédea no chão!...

O riso

Chasque do imperador seria a ilha de risos no mar de sangue de Contos gauchescos. Retrata a simplicidade de d. Pedro II, ao visitar uma cidade gaúcha, Uruguaiana, cenário da Guerra do Paraguai, quando soldados brasileiros e aliados (argentinos e uruguaios) a retomaram das forças inimigas.

Dom Pedro foi viajando em comitiva, cercado de homens de confiança, e Blau foi escolhido por Duque de Caxias para ser o ordenança do imperador. Blau já contou como a imagem de d. Pedro atrapalhava nas tarefas cotidianas para servi-lo.

Achavam, por exemplo, que o imperador, não só por ser a autoridade máxima do país, mas por representar uma classe muito superior aos súditos e ser mui fino, só se alimentava de iguarias finas e manjares, como doces. Para eles, d. Pedro era "meio maricas."

No meio do caminho rumo a Uruguaiana, tiveram de pousar em certa cidade. Foi quando se deram conta da condição de pessoa comum de sua majestade:

O imperador foi hospedado em casa dum fulano, sujeito pesado, porém mui gauchão.

Quando foi hora do almoço, na mesa só havia doces e doces... e nada mais. O imperador, por cerimônia provou alguns; a comitiva arriou aqueles cerros açucarados. Quando foi o jantar, a mesma cousa: doces e mais doces!... Para não desgostar o homem, o imperador ainda serviu-se, mas pouco; e de noite, outra vez, chá e doces!

O imperador, com toda a sua imperadorice, gurniu fome!

No outro dia, de manhã, o fulano foi saber como o hóspede havia passado a noite e ao mesmo tempo acompanhava um rica bandeja com chá e... doces...

Aí o imperador não pôde mais... estava enfarado!...

— Meu amigo, os doces são magníficos... mas eu agradecia-lhe muito se me arranjasse antes um feijãozinho... uma lasca de carne...

O homem ficou sério... e depois largou uma risada.

— Quê! Pois vossa majestade come carne?! Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos de rouxinóis e doces e pasteizinhos!... Por que não disse antes, senhor? Com trezentos diabos!... Ora esta!... Vamos já a um churrasco... que eu, também, não aguento estas porquerias!...

Dicção

Esta história provavelmente não foi inventada por Lopes Neto, mas a maneira de contá-la é forjada num estilo literário que trouxe o autor aos dias de hoje. Em Contos gauchescos temos a oportunidade ler um país profundo.

Podemos ver hoje que os termos de um velho Rio Grande ainda cintilam no céu cada vez mais tumultuado de urbanidade. Na época da ambientação desses contos, Porto Alegre ainda era considerada uma vila, e a grande cidade era Pelotas, rica e influente, terra natal do autor.

Ao ler Contos gauchescos, o leitor não pode se esquecer do sotaque, da dicção própria do povo daquelas bandas, gaucheando sempre, alegre na hora de churrasquear, matear, sestear, que não perde a chance de pôr no substantivo um verbo mais carregado de sentido.

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto, 15/05/2011)

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