Haruki Murakami sabia que estava escrevendo um best-seller
O escritor japonês Haruki Murakami, de 64 anos, tinha uma pegada low
profile, com romances de linguagem experimental, até lançar
Norwegian Wood em 1987, de cunho aparentemente realista.
Ganhou notoriedade internacional a partir de 2000, com a tradução
para o inglês deste mesmo romance, que já vendeu dezenas de milhões
de exemplares. De lá para cá, o culto em torno de sua obra e de sua
vida só aumentou.
Em entrevista à Paris Review, em 2004, o autor disse que se
quisesse se tornaria um escritor cult, escrevendo livros de tramas
surrealistas, como seus primeiros trabalhos. Disse ainda que tinha
feito Norwegian Wood com bastante clareza do que queria, e que
sabia do potencial de agradar ao público.
Resumindo. Murakami, que tem deus no nome (kami), sabia que estava
escrevendo um best-seller. E deve ter tomado muito gosto pela
capacidade de empregar seu gênio na manipulação dos infalíveis
ingredientes do mercado sem perder a sintonia com a arte. Sua
trilogia 1Q84, disponível em português, é mais um sucesso
de público e de crítica.
A força de Murakami advém de uma rara habilidade em mesclar
elementos do real numa trama surreal, em que as conspirações, a
violência e as banalidades do dia a dia às claras, com sexo, morte
e psiquiatria, passando bem ali sob nossas fuças, se enchem de
mistérios. 1Q84 trouxe essa mistura com grande explosão de
realismo. A narrativa se alterna entre duas histórias paralelas no
ano de 1984.
De um lado está Aomame, assassina profissional de 30 anos, que mata
homens poderosos e sem escrúpulos, furando-lhes a nuca com uma
agulha fina, executando o crime perfeito, porque eles morrem como se
fossem vítimas de um infarto fulminante. Inteligente, cautelosa e
fria, Aomame é formada em educação física, especialista em
acupuntura e perita em chute nos testículos.
De outro lado, a trama traz Tengo, professor de matemática de 29
anos, escritor fracassado e amante de uma mulher casada. Ele se
envolve numa fraude editorial com outras duas criaturas sinistras:
Komatsu, um editor consagrado que quer ganhar o Prêmio Akutagawa
usando o romance de uma estreante de 17 anos chamada Fukaeri, uma
menina bonita, inteligente e misteriosa, que ama literatura clássica
japonesa e música clássica ocidental, e que sofre de dislexia.
Tengo fica encarregado de reescrever o livro de Fukaeri, Crisálida
de ar, poderoso no conteúdo, mas deficiente na forma.
As histórias vão andando numa contradança de afastamento e
aproximação, enquanto a aparente clareza das coisas vai
enegrecendo, se fundindo em elementos fantásticos, como o
aparecimento do Povo Pequenino, que durante a noite sai da boca de
Fukaeri e aparentemente é quem comanda a realidade que a cerca.
Já o título do livro de Murakami é forjado por Aomame em crise.
Dotada de uma memória límpida, dentro da qual organiza seu mundo
muito metodicamente, percebendo cada movimento externo com absoluta
precisão, de repente se vê em uma situação inusitada, em que nada
no mundo é como antes. Acha que a polícia modificou o uniforme e as
armas uma semana atrás, mas descobre que a mudança fora feita já
havia dois anos, sem que ela percebesse.
De repente, olha para o céu e vê duas luas. Para não pensar que
enlouqueceu, raciocina que o mundo onde vive agora é outro, e que
ela precisa se posicionar de modo diferente nesse novo universo sobre
o qual caíra, passando a marcar seu calendário com o ano de 1Q84,
cujo Q é de “question mark” (ponto de interrogação), embora
também haja ali um trocadilho com o número nove em japonês, que,
tal como a letra Q em inglês, se pronuncia “kyu”.
1Q84 é uma distopia japonesa, uma sinfonia marcial regida sob o som
sinistro da desconstrução, da ruína do mundo conhecido. É o palco
se abrindo enquanto os personagens caem no abismo da existência. E
levam o leitor junto. Traz uma releitura dos romances 1984, do
britânico George Orwell, e Invenção de Morel, do argentino
Adolfo Bioy Casares, além do redomoinho referencial da cultura pop
americana e da sociedade de consumo.
Tudo é feito com muito esmero, numa pseudoclareza que encanta a
todos. Murakami consegue criar uma espécie de imã identitário que
puxa o leitor para perto dos personagens, e dali os espreita,
olhando-os com misto de compreensão de suas dores e uma expectativa
do que ocorrerá nas cenas seguintes.
Sua prosa tem ótimos pulmões. Ele é de fato um mestre dos
detalhes, que ora aparecem na narrativa como casualidade, como se não
tivessem sido pensados antes, respirando serenamente, ora surgem com
a força nauseante do realismo. A saturação do real é uma marca do
autor. Em sua vigorosa narrativa, a realidade se equilibra muito bem
na complexa mistura entre acontecimento exterior e manifestações
interiores, com as inquietações e as crises existenciais de seus
personagens.
Murakami parece ter descoberto um segredo da natureza humana que se
formula assim: Você vê uma pessoa pela primeira vez. Ela faz um
movimento diferente com a boca que cativa você, e no momento em que
você percebe isso, essa pessoa diz uma frase com no máximo dez
palavras que parecem resumir tudo. E aí você se encanta. E aí você
quer saber quem é essa pessoa, de onde ela vem, o que ela come, como
ela vive, e tudo que se conta dela, todos os detalhes de sua vida,
lhe interessam. Você escuta tudo, absorve tudo, porque você está
amarrado a esse laço magnético do primeiro impacto.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
05/01/2014)
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