sábado, 18 de janeiro de 2014

A distopia de Haruki Murakami

Haruki Murakami sabia que estava escrevendo um best-seller

O escritor japonês Haruki Murakami, de 64 anos, tinha uma pegada low profile, com romances de linguagem experimental, até lançar Norwegian Wood em 1987, de cunho aparentemente realista. Ganhou notoriedade internacional a partir de 2000, com a tradução para o inglês deste mesmo romance, que já vendeu dezenas de milhões de exemplares. De lá para cá, o culto em torno de sua obra e de sua vida só aumentou.

Em entrevista à Paris Review, em 2004, o autor disse que se quisesse se tornaria um escritor cult, escrevendo livros de tramas surrealistas, como seus primeiros trabalhos. Disse ainda que tinha feito Norwegian Wood com bastante clareza do que queria, e que sabia do potencial de agradar ao público.

Resumindo. Murakami, que tem deus no nome (kami), sabia que estava escrevendo um best-seller. E deve ter tomado muito gosto pela capacidade de empregar seu gênio na manipulação dos infalíveis ingredientes do mercado sem perder a sintonia com a arte. Sua trilogia 1Q84, disponível em português, é mais um sucesso de público e de crítica.

A força de Murakami advém de uma rara habilidade em mesclar elementos do real numa trama surreal, em que as conspirações, a violência e as banalidades do dia a dia às claras, com sexo, morte e psiquiatria, passando bem ali sob nossas fuças, se enchem de mistérios. 1Q84 trouxe essa mistura com grande explosão de realismo. A narrativa se alterna entre duas histórias paralelas no ano de 1984.

De um lado está Aomame, assassina profissional de 30 anos, que mata homens poderosos e sem escrúpulos, furando-lhes a nuca com uma agulha fina, executando o crime perfeito, porque eles morrem como se fossem vítimas de um infarto fulminante. Inteligente, cautelosa e fria, Aomame é formada em educação física, especialista em acupuntura e perita em chute nos testículos.

De outro lado, a trama traz Tengo, professor de matemática de 29 anos, escritor fracassado e amante de uma mulher casada. Ele se envolve numa fraude editorial com outras duas criaturas sinistras: Komatsu, um editor consagrado que quer ganhar o Prêmio Akutagawa usando o romance de uma estreante de 17 anos chamada Fukaeri, uma menina bonita, inteligente e misteriosa, que ama literatura clássica japonesa e música clássica ocidental, e que sofre de dislexia. Tengo fica encarregado de reescrever o livro de Fukaeri, Crisálida de ar, poderoso no conteúdo, mas deficiente na forma.

As histórias vão andando numa contradança de afastamento e aproximação, enquanto a aparente clareza das coisas vai enegrecendo, se fundindo em elementos fantásticos, como o aparecimento do Povo Pequenino, que durante a noite sai da boca de Fukaeri e aparentemente é quem comanda a realidade que a cerca.

Já o título do livro de Murakami é forjado por Aomame em crise. Dotada de uma memória límpida, dentro da qual organiza seu mundo muito metodicamente, percebendo cada movimento externo com absoluta precisão, de repente se vê em uma situação inusitada, em que nada no mundo é como antes. Acha que a polícia modificou o uniforme e as armas uma semana atrás, mas descobre que a mudança fora feita já havia dois anos, sem que ela percebesse.

De repente, olha para o céu e vê duas luas. Para não pensar que enlouqueceu, raciocina que o mundo onde vive agora é outro, e que ela precisa se posicionar de modo diferente nesse novo universo sobre o qual caíra, passando a marcar seu calendário com o ano de 1Q84, cujo Q é de “question mark” (ponto de interrogação), embora também haja ali um trocadilho com o número nove em japonês, que, tal como a letra Q em inglês, se pronuncia “kyu”.

1Q84 é uma distopia japonesa, uma sinfonia marcial regida sob o som sinistro da desconstrução, da ruína do mundo conhecido. É o palco se abrindo enquanto os personagens caem no abismo da existência. E levam o leitor junto. Traz uma releitura dos romances 1984, do britânico George Orwell, e Invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares, além do redomoinho referencial da cultura pop americana e da sociedade de consumo.

Tudo é feito com muito esmero, numa pseudoclareza que encanta a todos. Murakami consegue criar uma espécie de imã identitário que puxa o leitor para perto dos personagens, e dali os espreita, olhando-os com misto de compreensão de suas dores e uma expectativa do que ocorrerá nas cenas seguintes.

Sua prosa tem ótimos pulmões. Ele é de fato um mestre dos detalhes, que ora aparecem na narrativa como casualidade, como se não tivessem sido pensados antes, respirando serenamente, ora surgem com a força nauseante do realismo. A saturação do real é uma marca do autor. Em sua vigorosa narrativa, a realidade se equilibra muito bem na complexa mistura entre acontecimento exterior e manifestações interiores, com as inquietações e as crises existenciais de seus personagens.

Murakami parece ter descoberto um segredo da natureza humana que se formula assim: Você vê uma pessoa pela primeira vez. Ela faz um movimento diferente com a boca que cativa você, e no momento em que você percebe isso, essa pessoa diz uma frase com no máximo dez palavras que parecem resumir tudo. E aí você se encanta. E aí você quer saber quem é essa pessoa, de onde ela vem, o que ela come, como ela vive, e tudo que se conta dela, todos os detalhes de sua vida, lhe interessam. Você escuta tudo, absorve tudo, porque você está amarrado a esse laço magnético do primeiro impacto.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 05/01/2014)

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