domingo, 1 de junho de 2008

A SOLIDÃO DOS OUTROS I: Uma tangente na alma do próximo


“É impossível penetrar a solidão de alguém”, diz o escritor norte-americano Paul Auster, no começo de seu livro A invenção da solidão (ou O inventor da solidão, conforme a editora). O que não se consegue, ou não se pode fazer na vida real, faz-se na arte. E sendo arte a literatura, Auster a utiliza para escarafunchar a solidão que lhe é mais cara, a de seu pai.

O escritor fala desse deslocamento de alma de uma forma bem característica em suas obras. Ele escreve tudo transformando realidade em ficção e ficção em realidade. Nesse livro em particular, o autor entrelaça histórias de sua família com narrações da bíblia e fatos inventados.

Auster atrela a idéia de solidão ao sentimento judaico; fala de Jonas, personagem bíblico que foi engolido por uma baleia, ficando muitos dias no ventre do cetáceo (a solidão mor), fala de Anne Frank, menina judia que escreveu um diário enquanto se escondia dos nazistas e depois morreu, aos quinze anos, no campo de concentração.

Contudo, o que ele quer mesmo é penetrar a solidão vista no pai muito nitidamente, mas que Paul não podia alcançá-la para compreendê-la. Escreve também para exorcizar essa imagem angustiante que tinha do velho. Mas, será mesmo seu pai? Enfim.

O livro se divide em três partes. A primeira descreve o pai pelo que não disse, pelo que não fez, por sua ausência, mudez e solitude. Não dá para saber até que ponto é verdadeiro o que escreve, nem isso interessa, uma vez que o que importa aqui é a arquitetura da solidão.

De acordo com o escritor, seu pai – filho de imigrantes judeus na América do começo do século XX – era um homem marcado pelo estigma de solitário. Tudo que fazia era voltado para seus próprios interesses. Não dava atenção para a família, não dava atenção para ninguém.

Para o filho, era raro um momento de distração junto com o senhor Auster; Por outro lado, Paul revela a humanidade escondida de seu pai, e tenta explicar o motivo pelo qual o velho Auster fazia de tudo para ser invisível.

Todo mundo tem um motivo para ser alegre, ou triste, ou desencanado, ou louco, ou cheio de amigos, ou completamente só. E neste caso, mesmo que haja gente ao redor, ainda que trabalhe na 25 de Março, em São Paulo, o sujeito solitário é o mesmo.

O pai de Paul tinha um motivo muito especial, segundo o escritor, para se afundar na solidão. Já adulto, ele descobriu que o velho Auster, quando criança, ficara órfão paterno. Sua mãe matara seu pai – o avô do escritor – dando-lhe um tiro no peito. O moleque crescera com a morbidez na alma.

Se não se pode penetrar a solidão do outro, pode-se fazer ao menos um esforço para tangenciar esse círculo. Pode-se, tal como uma reta, riscar a linha do diâmetro dessa solitude.

Ao escrever, Paul quis fazer isso. Revelou o passado de seu genitor por meio de cartas, documentos e entrevistas com familiares. Tentou refazer a imagem que ele mesmo tinha do próprio pai, um homem distante e negligente, para torná-lo mais compreensível, nos limites de sua humanidade.

2 comentários:

Anônimo disse...

Paul Auster deve mesmo ter uma relação muito íntima, mas também muito obssessiva com a solidão. Na Trilogia de Nova Yorque (em que há o ótimo City of glass), este bonde chamado solidão conduz o leitor a um desprendimento da convivência social para acompanhar um detetive em seu isolamento voluntário em busca de uma verdade. Eis a solidão da personagem, do leitor e do autor, não formando um triângulo, nem amoroso nem odioso, mas um círculo igualmente solitário que se vicia no jogo observo, me isolo para observar/ atuo, me isolo para atuar/escrevo, me isolo para escrever. Paradoxal, pois o círculo se fecha unindo todos os pontos que, julgavam-se, a sós.
Desconsidere. Estou surtada. Flávia.

Mariana Maffei disse...

fantástico comentário. ah se todos os surtos fossem assim...
atualmente estudo com uma cia de dança que já fez um espetáculo baseado neste livro: KeyZetta.
...estou aqui de passagem.