terça-feira, 3 de junho de 2008

A CRÔNICA E SUA POETICIDADE: um mini-estudo

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!
Vinicius de Moraes, A um passarinho

A crônica tal como se conhece hoje é um fenômeno literário moderno, isto é, começou a ser praticada após o surgimento da imprensa, publicada em jornais e destinada ao um público específico de seu respectivo veículo. (SÁ, 2001, p. 7).

Por ser publicada em jornal, seu texto é trabalhado num espaço limitado, o que leva o autor a buscar uma economia nas palavras e a exercitar uma condensação semelhante ao que se faz no conto, algo muito próximo da poesia.

Essa poeticidade que aproxima a crônica da poesia não se explica apenas pela condensação, mas principalmente pela nova concepção do criar poético que os poetas adotaram na modernidade, utilizando como material a banalidade da vida, as coisas corriqueiras, os elementos retirados do cotidiano.

Na conduta clássica, por exemplo, era impossível um poeta fazer versos como os da epígrafe, A um passarinho, de Vinicius de Moraes, e ser levado a sério. O que seria considerado de mau gosto, a lírica moderna transformou em conteúdo primoroso para se elaborar uma poesia carregada de ironia, humor e dramaticidade. De igual modo, a crônica apresenta esses elementos com muita competência.

Segundo Afrânio Coutinho, a palavra ‘crônica’ apareceu no meio literário como registro de fatos em ordem cronológica, daí sua origem etimológica (‘khronos’ = tempo).

“Foi o feitio que assumiu a historiografia particularmente na Idade Média e no Renascimento, em todas as partes da Europa, a princípio em latim e depois nas diversas línguas vulgares, inclusive o português, em que deu verdadeiras obras-primas.” (COUTINHO, 1978, p. 80)

É nesse sentido que Pero Vaz de Caminha é considerado o primeiro cronista em língua portuguesa, ao escrever uma carta ao rei D. Manuel, relatando o que Cabral e seus homens encontraram nas terras que haviam descoberto, a saber, o Brasil.

A Bagagem do Viajante

A crônica de hoje é um gênero literário de grande complexidade, cuja proximidade com a linguagem jornalística é apenas aparente, por usar um vocabulário entre o coloquial e o erudito. O que não é demérito. Como já foi dito, a poesia moderna também faz isso.

Segundo Coutinho, não importa à crônica o assunto – embora ela prefira os fatos corriqueiros –, mas sim o jeito de falar desse assunto, o estilo do autor. O que interessa ao cronista é “a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância” (1978, p. 81).


É com essa graça e com a argúcia de um fino observador, por exemplo, que o escritor português José Saramago escreve suas crônicas. Para demonstrar a poeticidade da crônica, vamos usar o texto de Saramago, Elogio da couve portuguesa, retirado de A Bagagem do Viajante.

O livro traz uma série de crônicas que apresentam o universo de condensador do autor, em que o lirismo está presente de forma acentuada, porque reduzido no espaço, na economia de palavras que é a característica das narrativas curtas, ou breves.

Em Elogio da couve portuguesa, Saramago fala de uma couve portuguesa que fora plantada na Austrália e chegava a uma altura de 2,4 metros quando foi anunciada. Ele então pega essa imagem e a costura numa série de comparações patrióticas, como as conquistas ultramares dos séculos XV e XVI. A crônica começa assim: “A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas” (2006, p. 47).

Após dizer do que se trata, o cronista observa que a couve cresceu em condições adversas, em meio a cangurus e ameaçada por tribos primitivas. E assim ele cria uma situação de humor e ironia, ao lembrar as adversidades com que seus antepassados viajaram e colonizaram a América, a África e a Ásia.

A ironia fica por conta de os portugueses de hoje não serem mais potência, e ainda assim o autor comparar a couve com as grandes conquistas.

O humor também vai por esse caminho, ou seja, as conquistas que antes eram feitas por homens corajosos, destemidos, que enfrentavam o mar bravio, guerreiros perigosíssimos, chuvas torrenciais, agora é feita por um único homem e sua couve, que enfrentou cangurus, clima adverso e tribos perigosas.

Mais do que isso, a couve foi além, conquistou o solo da Austrália, lugar aonde os bravos portugueses nem sonharam em chegar.

Saramago é mais corrosivo ainda, ao lembrar de Camões, o poeta que cantou os feitos heróicos de seus antepassados. Ele coloca num paralelo a situação de Camões e a sua própria, sugerindo – mais uma vez o humor e a ironia – que coube a ele, Saramago, cantar o heroísmo do homem (já um senhor, de poucas forças) e a planta.

Se por um lado, ele pega um fato banal, do cotidiano mais rasteiro, a notícia longínqua de uma couve portuguesa que cresceu demais em solo estrangeiro, por outro ele eleva essa planta a patamares incomensuráveis, comparando-a com as conquistas dos maiores portugueses da história. A couve, ao subir tanto, ultrapassa as aspirações de um Portugal já murcho, que não tem muita significância na Comunidade Européia.

Mas a altura da couve também atinge o cronista. É irônico o fato de uma couve crescer tanto a ponto de ter mais estatura do que o autor. Quem está mais alto vê melhor. A couve, portanto, venceu o romancista português, porque, além de ser mais alta que ele, vê mais longe, conquistou terras longínquas, até mesmo mais distantes do que aquelas colonizadas pelos heróis do passado.

Resta apenas a Saramago ser poeta e registrar os feitos do vegetal e seu dono. Mas, como ele não se sente melhor do que Camões, se encolhe e admite a derrota, numa bela finalização:

“Propunha-me eu fazer o elogio da couve portuguesa e vai-se a ver saiu isto: uma dor no coração, uma sensação de ser folha migada, uma dura e pesada tristeza” (idem, p. 48).

A prosa também mergulha no poético

A poeticidade desse texto está na junção de três imagens fundamentais, que surgem como metáforas e comparações: a da couve, a dos navegadores e a de Camões. As duas últimas são grandiosas na história; a primeira é de um cotidiano que beira ao ínfimo, mas que aqui se faz grande.

Os fios das imagens trabalhadas no texto são ligados à imagem do próprio cronista, numa comparação que o vence, no propósito da crônica, mas não na análise, na leitura. Neste caso, o autor demonstra sua grande qualidade.

Para Coutinho, “a crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo” (1978, p. 83). Esse lirismo está presente no texto analisado, revelando a poeticidade da forma.

Do mesmo modo, a poesia moderna também trabalha o cotidiano, se deixando ficar mais próxima do leitor, sem, no entanto, perder sua capacidade de condensação e sugestão.

Embora poesia e crônica tenham se aproximado, principalmente levando em conta os cronistas competentes, isso não significa dizer que foi a poesia moderna que deu subsídios para as narrativas curtas apresentarem um conteúdo poético, condensado.

Segundo Walter Benjamin, pensador alemão das primeiras décadas do século XX, essa característica de condensar o fato narrado, elaborando movimentos e cortes de modo a ser contado com beleza e precisão, sempre existiu nos textos curtos, é uma propriedade dele, como narrativa.

Os caminhos cruzados entre prosa e poesia

Uma das fontes da narrativa breve é o acúmulo de saber, segundo Benjamin. Mas ao narrar, e sabendo muito, o narrador evita explicações. Ele apenas sugere. “Metade da arte narrativa está em evitar explicações”, ensina o pensador alemão (BENJAMIN, 1996, p. 203). É desse modo que o narrador alcança a precisão da crônica ou do conto e expande a capacidade do texto de fazer alusões, sugerir significados.

É assim que, sugerindo nas entrelinhas, “o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação” (Idem, p. 203). E é aí também que aprendemos que, embora seja publicada em jornais e esteja, portanto, ligada, pelo menos aparentemente, à linguagem jornalística, a crônica não é jornalismo e sim literatura, é arte, e de um gênero próximo à poesia.

Se em seus romances, já é possível ver as voltas de sua sabedoria, nas crônicas, Saramago demonstra o quão aguçada ela é. É como em alguns momentos da poesia de Carlos Drummond de Andrade, que também era cronista, e cuja obra é apreciada por Saramago.

Drummond era um “poeta com olhos de cronista e um cronista com traços de poeta”, segundo Flora Süssekind (2002, p. 282). O mesmo pode-se falar de Saramago, um romancista e cronista que traz o olhar perscrutador do poeta, que, aliás, ele também é.


BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo; Brasiliense, 1996

COUTINHO, Afrânio. Gêneros ensaísticos. In: Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2ª ed., 1978

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo; Duas Cidades, 1978

MORAES, Vinicius de. A um passarinho. In: Poesia Completa e Prosa – Volume Único, p. 201. Rio de Janeiro; Nova Aguilar, 1986

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo; Companhia das Letras, 2004

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo; Ática, 6ª ed., 2001

SARAMAGO, José. Elogio da couve Portuguesa. In: A Bagagem do Viajante. São Paulo; Companhia das Letras, 2006
SÜSSEKIND, Flora. Um poeta invade a crônica. In: Papéis Colados. Rio de Janeiro; UFRJ, 2ª ed., 2002

Nenhum comentário: