domingo, 2 de março de 2008

KENZABURO OE: Entrevistado pela Paris Review

Oe (esq.) e seu filho, Hikari

Kenzaburo Oe é o tipo de prosista que nos pega pelos olhos e nos faz correr por cada frase sua. Nascido em 1935, no Japão, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1994, ele tem uma vasta publicação no original, mas poucas traduções. Pai de três filhos, Hikari (que tem problemas mentais), O-chan e Natsumiko, ele aparenta ser um senhor simpático, educado, que aprecia o bom tom da civilidade.

Até onde sei, Oe tem apenas três livros publicados no Brasil: O grito silencioso, que narra o conflito existencial de um homem que encontrou o corpo de seu amigo suicida em situação humilhante, nu no banheiro, dependurado por uma corda e com um pepino no ânus; Uma questão pessoal, em que fala da relação do pai com o filho deficiente mental, cuja história é baseada na própria experiência de Oe (bem antes de Cristóvão Tezza escrever seu Filho eterno); e Jovens de um novo tempo, despertai!, livro de contos que trata da mesma temática da obra anterior. Oe é admirável pelo estilo delicioso e a fluência com que junta uma idéia com outra.

No final do ano passado, Oe concedeu uma entrevista à Paris Review, na seção The Art of Fiction, em que fala da relação de sua obra com o leitor e com o mundo ocidental, dizendo que gostaria de ser mais traduzido para línguas como inglês, francês e alemão. “Não tento escrever para um público de massa, mas gostaria, sim, de alcançar as pessoas. Gostaria de dizer a elas sobre a literatura e o tipo de pensamento que me influenciaram profundamente.”

Segundo Oe, no rito de criação, o ambiente natural de sua casa é essencial. Ao contrário de outros escritores, não gosta da solidão, prefere o barulho do lar. “Não preciso da solidão para trabalhar. Quando estou escrevendo romances e lendo, não preciso me separar da minha família ou ficar longe dela. Geralmente trabalho numa sala de estar, enquanto Hikari ouve música.”

Além da arte da ficção e de seu modo de trabalhar a literatura, Oe também fala de como repercutiu em sua casa a notícia de que tinha ganhado o Prêmio Nobel. “Venci, disse eu. E minha mulher replicou: ‘É mesmo?’. Meus filhos não disseram nada. Apenas foram para o quarto silenciosamente.”

Oe foi o segundo escritor japonês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. O primeiro, em 1968, foi Yasunari Kawabata (que se suicidou em 1972, aos 73 anos), autor de Kyoto, Beleza e tristeza e A casa das belas adormecidas. Yukio Mishima, o polêmico e genial escritor nipônico que se suicidou aos 45 anos cometendo harakiri em 1970, foi sondado para o Nobel duas vezes, mas não chegou a ganhar. Isso, no entanto, só demonstra a força da literatura do Japão, que ainda oferece autores do nível de Junichiro Tanizaki (1886-1965).

O site da Paris Review oferece um trecho gratuito da entrevista de Kenzaburo Oe, o que atiça a vontade de acessar o resto do texto. Mas aí é preciso pagar. Como retribuição ao gesto generoso da revista, traduzi o trecho oferecido, que segue abaixo.

Entrevistador: O senhor se sente competitivo com escritores como Haruki Murakami e Banana Yoshimoto?

Oe: Murakami escreve num estilo límpido, simples. É traduzido para as línguas estrangeiras e amplamente lido, principalmente nos Estados Unidos, Inglaterra e China. Ele conquistou um espaço no cenário da literatura internacional de um modo que nem Yukio Mishima ou eu mesmo conseguimos. É a primeira vez que isso acontece com a literatura japonesa. Agora, minha obra vem sendo lida, mas, olhando para trás, não tenho certeza se consegui conquistar um grupo firme de leitores, mesmo no Japão.

Não se trata de competição, mas eu realmente gostaria que minha obra fosse mais traduzida para o inglês, francês e alemão, para conquistar um grupo maior de leitores nos países dessas línguas. Não tento escrever para um público de massa, mas gostaria, sim, de alcançar as pessoas. Gostaria de dizer a elas sobre a literatura e o tipo de pensamento que me influenciaram profundamente.

Como alguém que leu literatura a vida toda, espero comunicar os escritores que considero importantes. Minha primeira escolha seria Edward Said, especialmente seus últimos livros. Suas idéias são parte importante de meu trabalho. Elas me ajudaram a criar novas expressões na língua japonesa, novas formas de pensar em japonês. E pessoalmente também gostava dele.

Entrevistador: Muitos escritores são obsessivos em trabalhar na solidão, mas os narradores de seus livros – que são escritores – escrevem e lêem deitados no sofá numa sala de estar. O senhor trabalha junto da família?

Oe: Não preciso da solidão para trabalhar. Quando estou escrevendo romances e lendo, não preciso me separar da minha família ou ficar longe dela. Geralmente trabalho numa sala de estar, enquanto Hikari (meu filho) ouve música. Posso trabalhar na presença de Hikari e de minha mulher porque reviso muitas vezes. O romance está sempre incompleto, e sei que vou revisá-lo completamente.

Quando estou escrevendo a primeira versão não tenho de escrevê-la sozinho. E quando estou revisando, já tenho uma boa relação com o texto, de modo que não preciso estar só. Tenho um estúdio no segundo piso, mas é raro trabalhar lá. O único momento em que vou para lá é quando estou finalizando o romance e preciso me concentrar – o que é uma chateação para os outros.

Entrevistador: Todos os seus romances refletem sua experiência pessoal?

Oe: Não começo a escrever um romance com a idéia predeterminada de para onde vou levar ou como vou criar um personagem. Para mim, o que importa é o ato da elaboração. Por meio do processo de revisão e elaboração é que surgem novos personagens e situações. É uma plano bem diferente da vida real. Nesse plano, os personagens se desenvolvem e a história flui sozinha. Embora todas as minhas novelas sejam de alguma forma sobre mim mesmo, sobre o que estou pensando como um jovem, como homem de meia idade com uma criança deficiente, como um velho.

Cultivei o estilo em primeira pessoa em detrimento da terceira. Foi um erro. Um bom romancista sabe escrever com habilidade em terceira pessoa, mas nunca consegui escrever bem nesse foco narrativo. Por esse prisma, não passo de um romancista amador. Embora eu já tenha escrito na terceira pessoa, o personagem de alguma forma sempre se parece comigo. O fato é que apenas pela primeira pessoa eu consigo determinar com precisão minha realidade interior.

Em Aghwee the Sky Monster (Aghwee, o monstro do céu, em tradução livre – inédito no Brasil), por exemplo, escrevi sobre alguém numa situação igual a que eu passava quando Hikari nascera, mas alguém que toma uma decisão diferente da que tomei. O pai de Aghwee escolhe não ajudar a criança deficiente a viver. Em Uma questão pessoal, escrevi sobre outro protagonista – Bird – que escolhe viver com a criança.

Esses dois livros foram escritos ao mesmo tempo. Mas no segundo caso, é de fato mais autobiográfico. Tendo escrito sobre as ações de Bird e do pai de Aghwee, emprestei minha experiência de vida para criar a vida de Bird. Não pretendia fazer isso, mas depois percebi que era o que havia feito.

Entrevistador: Hikari geralmente aparece como personagem em seus romances.

Oe: Convivo com ele há 44 anos. Escrever sobre ele é um dos pilares de minha expressão literária. Escrevo sobre ele para mostrar como uma pessoa deficiente é capaz de se realizar e o quanto essa realização é difícil. Quando ele era muito jovem, começou a se expressar – a expressar sua humanidade – por meio da música. Até certo ponto, era capaz de expressar conceitos complexos como a tristeza por meio da música. Ele entrou num processo de auto-realização. E continuou nesse caminho.

Entrevistador: Uma vez o senhor disse que escreve o que ele realmente diz, mas põe isso numa ordem diferente.

Oe: Copio as palavras que Hikari diz na mesma ordem que ele as diz. O que acrescento é o contexto, a situação, e como os outros lhe respondem. Por meio desse processo, as palavras de Hikari se tornam mais compreensíveis. Mas jamais reordenaria essas palavras para fazê-las inteligíveis.

Entrevistador: O que seus outros filhos pensam do fato de o senhor escrever tanto sobre Hikari em seus romances?

Oe: Também já escrevi sobre meu filho O-chan e minha filha Natsumiko. Em todo caso, apenas Natsumiko gosta de ler o que escrevo sobre Hikari. De modo que sou cuidadoso, caso contrário, ela vai me dizer “Hikari não diria isso”.

Entrevistador: Por que o senhor decidiu usar os nomes verdadeiros de seus filhos – especialmente o nome de Hikari?

Oe: No começo não usava seu nome. Eu o chamava de Eeyore em meus romances, mas na vida real eu o chamo de Pooh.

Entrevistador: Por quê?

Oe: Ursinho Pooh é a razão pela qual me casei com minha mulher. No finalzinho da guerra (Segunda Guerra Mundial), foi publicada uma tradução do Ursinho Pooh feita por Iwanami Shoten, um editor intelectual da época. Mas foram apenas alguns milhares de cópias. Eu conhecia Juzo Itami, irmão de minha mulher, do colégio, e a mãe deles me pediu para encontrar uma cópia de The house at Pooh corner (A casa no cantinho do Pooh, em tradução literal). Ela tinha lido isso durante a guerra, mas havia perdido seu exemplar.

Eu era um expert em sebos na cidade de Tóquio e sabia que poderia encontrar o livro. E encontrei. Enviei a encomenda para a casa deles e foi aí que começou uma correspondência com a filha dela. Foi assim que tudo começou. Mas é bom deixar claro que não me identifico com o Ursinho Pooh como personagem. Sou mais o tipo Eeyore.

Entrevistador: Como sua família reagiu quando o senhor ganhou o Prêmio Nobel de Literatura?

Oe: Minha família não mudou a maneira de me ver. Eu estava sentado aqui (na sala) lendo. Hikari estava ouvindo música ali. Meu outro filho, que era estudante de Bioquímica na Universidade de Tóquio, e minha filha, que estudava na Universidade de Sofia, estavam na sala de jantar. Eles não esperavam que eu ganhasse. O telefone tocou por volta de nove da noite. Hikari foi atender – é um de seus hobbies, atender o telefone. Ele consegue dizer ‘olá, como vai!’ perfeitamente em francês, alemão, russo, chinês e coreano. Então, ele atendeu o telefone e disse em inglês, ‘No’, e mais uma vez, ‘No’. Depois me passou a ligação.

Era um membro do Comitê Nobel da Academia Sueca. Ele me perguntou “É o Kenzaburo?” E eu perguntei a ele se Hikari tinha recusado o Prêmio Nobel por mim, e então disse “me desculpe, mas aceito”. Pus o telefone no gancho, voltei para a cadeira, me sentei, e dei a notícia à minha família. “Venci”, disse eu. E minha mulher replicou: “É mesmo?”.

Entrevistador: Foi tudo que ela disse?

Oe: Sim. E meus filhos não disseram nada. Apenas foram para o quarto silenciosamente. Hikari continuou a ouvir música. Nunca conversei com ele sobre o Prêmio Nobel.

Entrevistador: O senhor ficou decepcionado com a reação deles?

Oe: Voltei a ler meu livro, mas não pude deixar de me perguntar se a maioria das famílias reage daquela maneira. Depois o telefone não parou de tocar. Durante cinco horas não parei. Pessoas que eu conhecia. Pessoas que não conhecia. Meus filhos só queriam que os repórteres fossem embora. E eu desci a cortina para nos dar um pouco de paz.

Leia outras entrevistas com Kenzaburo Oe em português:

2 comentários:

Leila Silva disse...

Ué, eu podia jurar que Tanizaki também tinha recebido um Nobel. Oe está aqui na minha lista, Mishima eu li bastante e Kawabata mais ainda, Tanizaki li tudo o que encontrei em francês e português, foi o primeiro japonês por quem me apaixonei.

Abraços

Gilberto G. Pereira disse...

Pois é. Uma vez também coloquei na cabeça que Ralph Ellison tinha ganhado o Nobel de Literatura. Passou um tempo pra cair a ficha de que não. Agora Tanizaki, é um autor que eu gostaria de ler mais, porque até agora só li Voragem. Mas queria ler As irmãs Makioka, pelo menos, e aquele ensaio Em louvor da sombra, que deve ser uma delícia, né. O romance de Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo, faz um paralelo com As irmãs, né, e foi o que me levou a querer ler mais Tanizaki. Mishima e Kawabata são os dois que mais li, graças à editora Estação Liberdade, que vem traduzindo quase tudo desse pessoal.
Grande abraço, Leila!