Nos últimos dez anos tem chegado ao mercado editorial brasileiro uma saraivada de livros japoneses, entre contos, romances, ensaios e poesia. Esse interesse cada vez maior do público leitor tupiniquim pela literatura fascinante que vem da seara nipônica reflete a qualidade das traduções diretas da fonte.
Nesse sentido, o leitor brasileiro tem acesso a um dos autores mais intrigantes e geniais do Japão, considerado o pai do conto japonês moderno, Ryunosuke Akutagawa. O fio delicado da loucura, a dor da miséria humana e a decadência moral, tudo isso se torna um poderoso signo poético em sua literatura. E tudo isso pode ser visto em Kappa e o levante imaginário (Estação Liberdade, 2010, 346 páginas, tradução de Shintaro Hayashi).
Nessa coletânea, o autor explora o lado sombrio e fantástico da existência. Seus personagens são todos cheios de vícios, possuidores de almas perdidas, são seres que se entregaram à miséria ou foram tragados por ela, seres que foram entregues à decadência por desencanto, muitas vezes, ou por falta de forças para lutar.
São almas desencantadas, mas descritas ou criadas de forma tão elegantemente bela, tão competentemente singular que o leitor logo penetra a surrealidade do autor e se encanta com sua magistral habilidade de fazer arte a partir da desgraça humana.
Ele mesmo teve um destino trágico. Ele mesmo nasceu e cresceu sob um desígnio fatídico de alta sensibilidade e desencanto. Sua escrita é dolorosa porque seu entendimento de mundo também o era. Akutagawa nasceu em 1892, em Kyōbashi, distrito da capital Tokyo, numa família supersticiosa ao extremo, a ponto de descartar o filho ainda bebê, porque acreditavam ter a criança nascido numa época imprópria.
Essa inadequação era traduzida pela idade dos genitores. O pai tinha 42 anos e a mãe, 33. Idades que revelavam azar, atraso de vida, e que não traziam nenhuma fortuna aos filhos gerados nessa ocasião, segundo a cultura japonesa, talvez pelo fato de haver a palavra “shi”, que quer dizer ‘quatro’, mas também ‘morte’, no primeiro caso, e a soma de três e quatro, que dá sete, mais uma vez trazendo o prefixo ‘shi’ para ‘shichi’ (sete).
Pode ser que a explicação seja outra. Os dados dos textos biográficos do autor (a que tive acesso) não fazem nenhum esclarecimento sobre essa superstição. Mas os japoneses sempre tiveram um temor em pronunciar as palavras com esse prefixo. Tanto é que ‘quatro’ (shi) na contagem cotidiana é dito ‘yon’, e sete se torna ‘nanna’. O mais intrigante disso é que a palavra ‘poesia’ em japonês também é ‘shi’.
Loucura
Em todo caso, em função desse medo em torno dos números reveladores, os pais decidiram abandonar o bebê na rua, mas de modo que os parentes soubessem e fossem buscá-lo para criar. Akutagawa foi adotado por um dos tios. Logo depois sua mãe foi internada num manicômio com transtornos mentais. Dois anos mais tarde, ela morreria como uma louca.
O garoto Ryunosuke Akutagawa cresce sabendo dessas histórias. Sua inteligência e grande habilidade com as palavras o levaram para a Universidade de Tokyo, em 1910. Em 1915 publica “Rashomon”, hoje um de seus contos mais conhecidos porque deu origem ao filme homônimo de Akira Kurosawa, embora haja também elementos de outro conto do autor, “No matagal” (ou Dentro do Bosque), ambos presentes na coletânea Kappa.
Com profundo domínio da língua e das técnicas de narrar, mestre do conto, Akutagawa plasma natureza e paisagem, vida e morte, como nenhum outro contista japonês. Sua prosa é de uma sobriedade e de uma nobreza admiráveis.
Ele soube como poucos atingir a essência da insanidade humana. Ainda tão jovem, conseguiu reproduzir alguns momentos de maldade, aquele tipo de mal que se sabe vir de algum lugar entre a obstinação e a loucura, mas também da negação do humano.
Em seus contos, cada som de palavra é trespassado pelos neutrinos da ironia, do silencioso riso de escárnio. Em “Kappa e o Levante Imaginário”, primeiro conto da coletânea e que traz o título do livro, o primeiro narrador se remete a um homem internado num hospício, o paciente 23, que, por sua vez, relata a experiência de ter vivido entre os kappas.
Morte
Os kappas são animais lendários do Japão, semelhantes a sapos bípedes, que vivem secretamente no fundo dos rios e que arrastam pessoas para lá. Ali, naquele estranho mundo, o homem diz ter vivido tempo suficiente para aprender a língua e todos os costumes deles. A rigor, são sátiras invertidas ou leituras sarcásticas da própria sociedade humana.
A certa altura, o paciente 23 se depara com a estrutura industrial do país dos kappas funcionando muito bem sempre, sem exército de reserva entre a classe operária, sem greves, tudo muito organizado. A explicação era simples. “É porque nós devoramos a todos”, diz Guel, “o capitalista dos capitalistas”.
Guel continua a explanação: “Os empregados despedidos são todos mortos e sua carne transformadas em alimentos. Veja este jornal. Este mês o desemprego atingiu exatamente 64.769 trabalhadores. Por isso, o preço da carne sofreu queda no mercado.”
Em outro momento, fica patente a dor e a revolta do próprio autor de ter nascido, sem ao menos ter tido o direito de dizer ‘não’. “Não há nada mais cômico para nós, seres humanos, do que o parto de um kappa”, comenta o paciente 23. “Digo isso porque fui assistir ao serviço de parto da esposa de Bag [um pescador] em sua cabana.”
“Antes do parto”, continua o paciente 23, “o que eles fazem é em tudo semelhante ao que fazemos, isto é, recorrem ao auxílio de médicos e parteiras. Mas, no instante do nascimento, o pai encosta a boca no órgão sexual da esposa e fala em voz alta, como se estivesse ao telefone: ‘Você quer mesmo nascer? Pense bem e responda!’”
“Sem fugir à regra, Bag também se ajoelhou e repetiu a pergunta diversas vezes para depois gargarejar com um líquido desinfetante que estava sobre a mesa. Então a criança no ventre materno respondeu timidamente em voz baixa:
“— Eu não quero nascer. Mesmo porque a herança genética de insanidade mental que há no sangue de papai por si só já é preocupante. Além disso, não me parece boa a existência ‘kappal’.”
Consciência
Mais do que qualquer outro escritor japonês, pelo menos dos que são publicados no Brasil, Akutagawa faz o leitor se deparar com a existência humana acima das diferenças culturais, sem deixar que estas fiquem ausentes, forçando-nos a lê-lo com olhos e espírito de leitor ocidental, claro, mas fixando em nós a essência da cultura nipônica.
Apesar da dor, da ironia e do cinismo que forjam esta escrita dolorida, sua literatura é cheia de vida. Há ali a presença mágica e intensa de um jovem espírito que se transpôs para as letras e deixou de viver fora das capas dos livros. A presença da morte e do sentimento suicida, como existe em toda inteligência, a reflexão sobre a morte, está tudo ali.
Mas há também a marca daquilo que se pode chamar de destino humano e a vontade de lutar contra o seu próprio destino macabro. A maioria de seus contos, incluindo quase todos os 11 presentes nesta coletânea, se refere ao passado japonês. Akutagawa era mestre em pescar um caso curioso da história de seu povo e fazer disso literatura.
Segundo Martin Seymour-Smith, um dos maiores leitores que o mundo ocidental já teve, crítico literário e poeta, Akutagawa foi essencialmente brilhante, “escritor extremamente sensível, que não pôde encarar a dolorosa experiência de lidar consigo mesmo na extensão de seu ser.”
Em vez disso, diz Seymour-Smith, “ele projetou sua psique, sempre mais ou menos criticamente equilibrada, aos elementos oferecidos pelos episódios fantásticos que ocorreram na história.” Akutagawa tinha mesmo um grande apreço pelo realismo mágico. Estava entre Dostoievski e Edgar Allan Poe, revelando uma curiosa mescla estética.
Distorção
Outro aspecto relevante de sua estética é o apreço pelo feio, horrendo, medonho, desarmônico, o interesse pela pobreza, pelos esquecidos, numa época em que a estética japonesa ainda corria pelos veios do clássico. Nesse sentido, parece ter despertado o interessante de outro grande escritor japonês, Yukio Mishima (1925 - 1970).
O templo do pavilhão dourado, de Mishima, recria uma história real, trazendo um jovem gago, feio, do pé torto, que fica fascinado com a beleza do templo que existe em Kyoto, em que ele acaba pondo fogo. A réplica do templo queimado ainda existe e é uma das maiores atrações turísticas da cidade.
As histórias de Akutagawa são quase todas também ambientadas em Kyoto, numa época em que a cidade ainda era a capital japonesa, que perderia o posto para Edo, que se tornaria Tokyo, cidade natal do autor e também anagrama da antiga capital.
Ao ler os contos de Akutagawa, o leitor realmente sente sua dor, o desespero cerrado na alma, como quem pede socorro. A literatura já salvou muita gente, é verdade. A literatura, em particular, e a arte, de modo geral, já suspenderam o sofrimento existencial de muitos espíritos. Akutagawa conseguiu essa façanha. Ele pôde ser salvo pelo pendor literário, mas só até os 35 anos.
Nesta idade, em 1927, o genial escritor japonês sucumbiu à fúria dos “deuses da vingança” e se matou, tomando uma overdose de remédio para dormir, num momento de profunda depressão, deixando para trás uma mulher e três filhos.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 6/02/2010)
Serviço
Título: Kappa e o levante imaginário
Autor: Ryunosuke Akutagawa
Editora: Estação Liberdade, 2010, 346 páginas
Gênero: Contos
Preço: R$ 47,00
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