domingo, 27 de fevereiro de 2011

Rakushisha: de dor e recomeço



Com texto sutil, atentamente preocupado com os detalhes do cotidiano, o romance Rakushisha (Rocco, 2009, 132 páginas), de Adriana Lisboa, aproxima duas culturas de horizontes opostos, Brasil e Japão, para falar de sentimentos. O fio condutor do livro é a viagem do desenhista de origem japonesa Haruki ao país do sol nascente para pesquisar mais sobre o poeta inventor do haikai, Matsu Bashô (1644-1694).

Haruki é um nisei de 40 anos que nasceu no Brasil e se vê totalmente integrado à cultura brasileira, à língua, aos costumes, ao Rio de Janeiro. É um carioca da gema. Sequer sabe falar japonês. Seu pai tentava incutir nele a memória do Japão e tinha como resposta a resistência.

Mas quando o velho morre, Haruki recebe uma proposta de ilustrar uma tradução do diário de Bashô e decide ir à terra natal de seu pai, com a intenção de captar melhor a essência daquilo que seria ilustrado. No metrô do Rio de Janeiro, de volta da visita ao consulado japonês, Haruki encontra a também carioca Celina.

Numa reação impulsiva, ele a convida para viajar e ela aceita, como quem aceita as rédeas do destino sem espernear. Chegando ao Japão, o desenhista viaja para Tokyo e ela fica em Kyoto (o anagrama dos nomes não é coincidência de escolha, são cidades-espelho, como são os dois personagens).

Em Kyoto, antiga capital japonesa e cidade onde viveu Bashô, Celina passa a escrever um diário sobre as impressões de seu olhar estrangeiro. O romance fala de dor, não só a que se tem após uma desilusão, mas também a dor do recomeço.

Sentido da vida

Na história do homem, a contemporaneidade é o maior celeiro de desajustes, desencontros, crise, caminhos que de repente se desfazem e precisam ser retomados, sob o risco de não se recuperar nunca mais o sentido da vida (loucura). A literatura, claro, tende a retratar isso.

Celina carrega na alma uma grande perda. Essa perda segue como trauma, uma amarra que não a deixa seguir a vida normalmente. Talvez por isso tenha aceitado o desafio da aventura.

“Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela.”

Como mantra, como muleta psicológica, ela repete a frase o tempo todo. “Para andar, basta colocar um pé depois do outro.” Curiosidades, drama pessoal, desencontros em função das diferenças culturais, o cotejo entre a milenar cultura japonesa e a brasileira, que ainda sustenta o olhar quase adolescente sobre o resto do mundo, são o feixe de propósitos do romance.

Leveza poética

O livro de Adriana tem uma escrita leve, leveza, no entanto, que traz a inevitável sensação de beleza e tristeza. “Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha visto nos últimos tempos”, é a impressão de Haruki quando vê Celina pela primeira vez.

Haruki também tinha tido uma perda, a de seu pai. São, portanto, duas pessoas fendidas pela vida que se encontram no metrô e decidem se unir numa viagem longa, que equivale a dizer, uma viagem em busca de um recomeço, no caso de Celina, e da recuperação de uma identidade esquecida ou perdida, no caso de Haruki. Os dois estão no mesmo barco.

O espectro da tristeza criado pela autora é tocante, como um vento leve que vai esfriando a superfície da pele aos poucos. O leitor sente a atmosfera sombria do romance, mas não o bastante para cair junto com os personagens. Porque a narrativa é coberta pela sutileza poética sugerida. Talvez este seja o valor maior do livro de Adriana. No meio do caminho, sente-se aos poucos a transformação de Haruki e Celina.

Ela procura se reestruturar, sentir o chão de novo, após perder a filha de sete anos. “Qual é o lugar que eu ocupo no mundo? Tem nome, esse lugar? Tem dimensões? Altura, largura, profundidade? Será um som, apenas, ou um gesto, ou um cheiro, ou uma possibilidade nunca explorada?”

Ele, a pensar no pai e mergulhado num Japão que cobra sua ancestralidade, se pergunta sobre si mesmo, já como consciência descoberta, a julgar pela palavra entre parênteses.

“E por que nunca conversamos sobre essas coisas? E por que eu nunca te dei atenção, velho desgraçadamente ausente agora, quando você vinha querer conversar sobre essas coisas comigo? E por que eu nunca dei a menor bola para as suas (minhas) origens japonesas, e por que nunca achei os meus olhos mais puxados do que o de qualquer brasileiro? Por que foi que eu te ignorei, e a mim também?”

Esse trecho revela uma consciência em plena luz. Um nisei que não acha que seus olhos sejam mais puxados do que os de qualquer brasileiro está na mesma situação do negro que não aceita sua origem africana e se vê apenas moreno, como quem se queima de sol todos os dias.

Geografia poética

Rakushisha não é o melhor romance de Adriana. Mas vale pelo experimentalismo, mesclando tradução de haikais, tankas, e trechos do diário de Bashô, em meio à narrativa em terceira pessoa que, por sua vez, completa as notas de diário da própria Celina, formando um mosaico de vozes antigas e modernas.

Tudo isso mostra como se movem, no espaço e no tempo, as sociedades, como Kyoto e Rio de Janeiro, oposições temporais e espaciais. Sobre o Rio, Haruki – que preferia andar de ônibus e metrô – diz:

“Os carros, além de custarem dinheiro, custavam seguro, custavam garagem, custavam pneus furados, custavam um dia o vidro espatifado pelo cara que levou o som, custavam vagas e custavam procura de vagas, custavam lanternas quebradas numa porradinha sem importância, custavam para-choques arranhados e laterais arranhadas por alguém que passou com um prego ou uma chave e custavam medo dos sequetros-relâmpago.”

Já Kyoto, observada por Celina, merece um plano harmônico, como se passado e presente, tradição e modernidade, o humano e o tecnológico andassem sempre lado a lado:

“Carros, pessoas e bicicletas, guarda-chuvas e saltos altos se entendiam”, diz Celina. Em todo caso, seja no Rio ou em Kyoto, “é preciso ter pequenas metas. Um pé depois do outro. Até que o peso das pernas se anule e caminhar seja quase fácil, quase corriqueiro”, como escreve Celina, repetindo seu mantra.

Na palavra “rakushisha”, cujo som é delicioso de se pronunciar e lembra qualquer jogo fonético infantil, se esconde outro sinal da fragilidade da vida e da necessidade de se reerguer para continuar vivendo. Trata-se do local onde Bashô se hospedou, a casa de um discípulo seu chamado Mukai Kyorai.

“Diz a lenda que Kyorai tinha cerca de quarenta pés de caqui crescendo no jardim de sua cabana em Saga, subúrbio de Kyoto. Tinha acertado a venda dos frutos, certo outono em que as árvores estavam carregadas, mas na véspera do dia em que deveria entregá-las uma forte tempestade caiu, à noite. Não sobrou um único caqui. Desse dia em diante Kyorai passou a chamar sua casa de Rakushisha, a Cabana dos Caquis Caídos.”

Perfil

Adriana Lisboa, que atualmente mora nos Estados Unidos, tem a idade de seus dois personagens centrais nesse livro, e também é carioca. É um dos mais prolíferos autores de sua geração. Isso não significa ser ela o melhor romancista de sua geração, mas escreve muito bem, tem domínio, é autora premiada. Não dá para dizer que a crise de Celina tenha a ver com a própria autora, embora a dedicatória do romance sugira tal relação (que quase sempre existe).

Rakushisha é uma espécie de recompensa pela viagem que fez ao Japão e aos estudos sobre a língua e a cultura japonesas pagos por uma bolsa da Fundação Japão. Escritora premiada, entre seus livros estão Os fios da memória, Sinfonia em branco e Um beijo de Colombina. Como tradutora, já traduziu Cormac McCarthy, Amy Bloom e Robert Louis Stevenson.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)


Serviço

Título: Rakushisha
Autor: Adriana Lisboa
Editora: Rocco, 2009, 132 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 24,00

2 comentários:

Unknown disse...

Adorei sua resenha, mas discordo que Tokyo e Kyoto sejam "cidades-espelho". Apesar de parecer que são escritas da mesma forma, somente invertidas, em japonês não são os mesmos ideogramas (um deles coincide, o outro não - 東京 [Toukyou], são duas sílabas longas; 京都 [Kyouto], uma sílaba longa e uma curta). Abraços!

Gilberto G. Pereira disse...

Nossa! Obrigado, cara (não aparece seu nome, mas cara serve pra menino, menina, menine)! Veja você que confusão eu fiz, né, por causa da transliteração. Eu realmente achava que To-kyo era um anagrama de Kyo-to, na língua japonesa, e é poético, né, mas, enfim, eu estava errado, e agradeço você pela generosidade em vir aqui e fazer essa observação. Aprendi com você. Valeu!