Gostaria de retomar a leitura de um livro do goiano Wesley Peres, Palimpsestos (UFG, 2007), sobre o qual já falei na Tribuna do Planalto, cujo texto repliquei no Leituras (Leia). O que disse lá, reitero aqui. O livro de Peres traz poemas que tratam da busca de sentido do ser. E faz isso por modos não convencionais. Faz isso pelo avesso das coisas, se debatendo em grades metafísicas, enquanto a concretude do mundo emerge em águas, chuva, vento e outros fenômenos naturais.
É um belo livro justamente porque oferece, nos versos, ancestralidades e presenças. Fala muito do eu, que é uma construção da linguagem, dentro da qual se debate para encontrar a luz da compreensão da existência. Nesse sentido, é metafísico.
“Me respira a menina remando, com os olhos, o tempo.
Em torno disso, a unidade mosaica da chuva.”
Esse olhar do sujeito poético para a chuva lá fora, ampulheta do tempo, enquanto se sente enclausurado na própria casa, numa construção intencionalmente cheia de vírgulas, é um exemplo da força metafórica de sua poesia.
“O que quer que seja a vida, a morte não é o seu contrário,
Mas as vírgulas desse mistério
Que, por impronunciável, metaforizo: eu.”
Em Palimpsestos (a rigor, “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”), a clara releitura de Rimbaud, Manoel de Barros, Cruz e Sousa e Georg Trakl se joga e se prende às teias de Lacan e Heidegger. Pelos parâmetros do filósofo alemão, podemos dizer que o eu, na poesia de Peres, não remete à pessoa como fenômeno, como aquilo que aparece, mas como o próprio ser.
O interessante é que neste caso, nesta proposta poética, abre-se a cortina da filosofia. O ser do eu é também o ser do outro, ou quase. Há muito pouco do indivíduo na essência do ser. A herança ancestral que o ser carrega nas costas como fardo, como memória, sua única riqueza, é a mesma para todos, no escopo da condição humana. Neste sentido, Peres é universal.
O que é então o ser, nessa concepção? Se levarmos a sério a filosofia heideggeriana para ler Peres, a resposta está pronta. “O ser é mais longínquo que qualquer ente e está mais próximo do homem que qualquer ente”, diz Heidegger. Mas essa explicação não chega lá.
Segundo Heidegger, em Carta sobre o humanismo, que é uma espécie de texto introdutório ao seu pensamento, a filosofia ocidental ainda não tinha sido capaz de atingir a essência do agir, que, segundo ele, é o consumar. O consumar, por sua vez, é o desdobrar de alguma coisa até a plenitude de sua essência.
Heidegger, portanto, oferece ferramentas que, em sua opinião, seriam capazes de desdobrar os significados da palavra até a plenitude de sua essência, ou seja, capazes de penetrar o âmago da linguagem, escarafunchar o mínimo grão e descobrir a verdade do ser. A verdade do ser está na linguagem, está dentro da linguagem.
A linguagem é a casa do ser, mas não é propriamente ele quem mora ali. É o homem. Mas não qualquer homem, apenas pensadores e poetas. A linguagem é a casa do ser. Eis a máxima da poesia de Peres em Palimpsestos.
No poema Origami, esse conceito pode ser aplicado com propriedade, justamente porque é uma ideia do desdobrar-se. Peres sabe, e sente, que em algum lugar absconso no coração do ser a melodia reflui (alhures toca a música da vida). Neste caso, o poeta fala de amor. É a mulher amada se desdobrando, mas não sem dificuldade, como no amor mesmo. No poema, vê-se claramente um confronto entre o eu e o ela.
“eu,
de frente para um livro,
de frente para ela,
ou mesmo de frente para mim,
eu,
esse rumo,
muro,
onipresente e oniausente em cada agora
- entre eu e a coisa que me existe, esse fora
que, ao dizê-lo, me devolve: o outro,”
Peres é psicanalista, conhece bem as leituras da psicanálise desde a origem até chegar a Jacques Lacan, que inclusive foi seu objeto de dissertação de Mestrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), quando o poeta comparou as teorias do psicanalista, que trouxe Heidegger e Nietzsche para o campo da psicanálise, com a poesia de Manoel de Barros.
É um belo livro justamente porque oferece, nos versos, ancestralidades e presenças. Fala muito do eu, que é uma construção da linguagem, dentro da qual se debate para encontrar a luz da compreensão da existência. Nesse sentido, é metafísico.
“Me respira a menina remando, com os olhos, o tempo.
Em torno disso, a unidade mosaica da chuva.”
Esse olhar do sujeito poético para a chuva lá fora, ampulheta do tempo, enquanto se sente enclausurado na própria casa, numa construção intencionalmente cheia de vírgulas, é um exemplo da força metafórica de sua poesia.
“O que quer que seja a vida, a morte não é o seu contrário,
Mas as vírgulas desse mistério
Que, por impronunciável, metaforizo: eu.”
Em Palimpsestos (a rigor, “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”), a clara releitura de Rimbaud, Manoel de Barros, Cruz e Sousa e Georg Trakl se joga e se prende às teias de Lacan e Heidegger. Pelos parâmetros do filósofo alemão, podemos dizer que o eu, na poesia de Peres, não remete à pessoa como fenômeno, como aquilo que aparece, mas como o próprio ser.
O interessante é que neste caso, nesta proposta poética, abre-se a cortina da filosofia. O ser do eu é também o ser do outro, ou quase. Há muito pouco do indivíduo na essência do ser. A herança ancestral que o ser carrega nas costas como fardo, como memória, sua única riqueza, é a mesma para todos, no escopo da condição humana. Neste sentido, Peres é universal.
O que é então o ser, nessa concepção? Se levarmos a sério a filosofia heideggeriana para ler Peres, a resposta está pronta. “O ser é mais longínquo que qualquer ente e está mais próximo do homem que qualquer ente”, diz Heidegger. Mas essa explicação não chega lá.
Segundo Heidegger, em Carta sobre o humanismo, que é uma espécie de texto introdutório ao seu pensamento, a filosofia ocidental ainda não tinha sido capaz de atingir a essência do agir, que, segundo ele, é o consumar. O consumar, por sua vez, é o desdobrar de alguma coisa até a plenitude de sua essência.
Heidegger, portanto, oferece ferramentas que, em sua opinião, seriam capazes de desdobrar os significados da palavra até a plenitude de sua essência, ou seja, capazes de penetrar o âmago da linguagem, escarafunchar o mínimo grão e descobrir a verdade do ser. A verdade do ser está na linguagem, está dentro da linguagem.
A linguagem é a casa do ser, mas não é propriamente ele quem mora ali. É o homem. Mas não qualquer homem, apenas pensadores e poetas. A linguagem é a casa do ser. Eis a máxima da poesia de Peres em Palimpsestos.
No poema Origami, esse conceito pode ser aplicado com propriedade, justamente porque é uma ideia do desdobrar-se. Peres sabe, e sente, que em algum lugar absconso no coração do ser a melodia reflui (alhures toca a música da vida). Neste caso, o poeta fala de amor. É a mulher amada se desdobrando, mas não sem dificuldade, como no amor mesmo. No poema, vê-se claramente um confronto entre o eu e o ela.
“eu,
de frente para um livro,
de frente para ela,
ou mesmo de frente para mim,
eu,
esse rumo,
muro,
onipresente e oniausente em cada agora
- entre eu e a coisa que me existe, esse fora
que, ao dizê-lo, me devolve: o outro,”
Peres é psicanalista, conhece bem as leituras da psicanálise desde a origem até chegar a Jacques Lacan, que inclusive foi seu objeto de dissertação de Mestrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), quando o poeta comparou as teorias do psicanalista, que trouxe Heidegger e Nietzsche para o campo da psicanálise, com a poesia de Manoel de Barros.
(Este texto já foi publicado na seção Gibateca, da Tribuna do Planalto, em 22/07/2010)
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