segunda-feira, 27 de abril de 2009

A FERIDA ABERTA DA ESCRAVIDÃO: Toni Morrison lança mais um romance

“Nossa gente não conversava, cantava. Cantava sobre si mesma, cantava canções espirituais carregadas de códigos que traziam suas experiências.”
Toni Morrison

“No final de meus livros, os personagens têm uma sabedoria que não tinham no começo. Há um raio de lucidez que os ilumina. Mas, digamos que o paraíso não existiria se o mundo inteiro fosse admitido nele.”

Toni Morrison
Toni Morrison (1931 - )

Em 2008, enquanto Barack Obama era cada vez mais enfático – e ficava mais próximo da vitória – ao dizer “Yes, we can” (sim, podemos), na luta verbal para ganhar as eleições dos Estados Unidos – e ganhou –, a escritora negra norte-americana Toni Morrison dava os retoques finais de seu romance A Mercy (em tradução livre, Uma clemência, ou, Uma sorte), livro que trata das feridas abertas pelo sofrimento dos negros numa terra que era governada por homens brancos para homens brancos.

No Brasil, Morrison é conhecida por títulos como A canção de Solomon e Amada (Beloved), livro que virou filme em 1998, com Oprah Winfrey e Danny Glover, intitulado Bem-amada.

Inédito no Brasil, A Mercy já foi traduzido na Espanha (com o título Una bendición, leia o texto na íntegra aqui), onde o jornal El País acaba de publicar uma reportagem sobre a autora e seu novo romance.

Quem assina o texto é o jornalista Andrea Aguilar, segundo o qual, Una bendición retoma, sob nova perspectiva, “a dilacerante ferida da escravidão e segregação que sofreram os negros norte-americanos.”

“A escrita é sempre urgente”, é o título do texto de Aguilar, retirado da entrevista de Morrison. A escrita é urgente quando exige do autor um engajamento para falar daquilo que lhe aflige. Como todo grande escritor escreve basicamente sobre aquilo que lhe aflige ...

Vamos ao texto (trechos) de Aguilar:

A lápis e de madrugada. Foi assim que Toni Morrison (Ohio, 1931) começou a escrever no final dos anos sessenta, quando era uma recém-divorciada mãe de dois filhos pequenos. O resto do dia trabalhava numa editora. Passaram-se 30 anos desde então, mas a escritora, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993, mantém-se fiel aos seus costumes.

No começo pensava que escrevia pelos filhos, mas com o tempo compreendi que gostava. Escrevo a lápis, e depois passo para o computador e vou corrigindo, explica.

Morrison conserva não só seus hábitos práticos de escritora, mas também seu estilo pessoal e sua temática. Ela retoma tudo isso em Una bendición (...) e reconstrói neste novo e ambicioso romance, que tem apenas 160 páginas, a origem da perversa relação entre raça e escravidão no Novo Mundo.

Ela passou dois anos pesquisando, conversando com antropólogos para criar a ambientação de Una bendición, cuja história, que vem dividindo a crítica, traz um tom experimental, confluindo vários pontos de vistas narrativos.

Situada no século XVII, esta história de amor, amizade e luta fala de uma adolescente negra, chamada Florens, que foi entregue pela própria mãe a um fazendeiro.


(...)

O trauma de 300 anos de escravidão e segregação tem sido um terreno fértil para a prosa de Morrison.

Nossa gente não conversava, cantava. Cantava sobre si mesma, cantava canções espirituais [spirituals] carregadas de códigos que traziam suas experiências. Mas o que queria era esquecer tudo aquilo e seguir adiante, explica.

Inclusive, escritores como Frederick Douglas [abolicionista do século XIX] não cantava os spirituals. O que eles queriam era que se abolissem as leis racistas, e não ficar falando de seu sofrimento, comenta Morrison, que, em função disso, decidiu romper o silêncio dos autores negros em torno do tema.

Não queria que outros falassem por mim. Não me parecia razoável viver com esse passado escondido. Desde então, muitos escritores escrevem sobre o assunto. Particularmente, fiz isso para entender minha própria identidade.

O mesmo ocorre com a impulsiva Florens, protagonista do romance de Morrison, que com arroubo e força conta sua história na fazenda, sua amizade com a leal Lina e a paixão por um negro livre.

À medida que Florens vai escrevendo, também vai se desenvolvendo, evoluindo a partir do próprio ato de escrever, e isso acaba outorgando-lhe um novo poder. É isso que faz o mundo ter sentido para ela, e tem sido assim para mim também. A escrita é sempre urgente, diz.

Com o passar dos anos, a senhora mudou como escritora?

Sempre me senti controlada quando escrevo, mas uso máscaras diferentes. Minha escrita agora é mais arriscada, e confio mais em mim, gosto de criar um diálogo entre o leitor e o texto. Isso dá vida, responde.

Feminista e lutadora, Morrison retoma em Una bendición outro dos grandes temas que marcaram seu trabalho: a amizade entre mulheres.

Nem mesmo nos romances de Jane Austen, as mulheres eram amigas. A única coisa sobre a qual falavam era de como se casariam. Não era assim entre a comunidade negra em que cresci, no entanto, a literatura relegava isso. Agora, a submissão da mulher continua até hoje, com a clássica burca ou com o que chamo de burca moderna, ou seja, a cirurgia plástica, que impede saber quem é quem.

Morrison arqueia as sobrancelhas quando se refere aos leitores que dizem que seus livros são tristes. Ela não concorda.

No final de meus livros, os personagens têm uma sabedoria que não tinham no começo. Há um raio de lucidez que os ilumina. Mas, digamos que o paraíso não existiria se o mundo inteiro fosse admitido nele.

2 comentários:

Madame Poison disse...

Gostei do que achei por aqui. Voltarei mais vezes!!!

Gilberto G. Pereira disse...

Muito obrigado, Madame. Merci!