sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O TEATRO DE SABBATH: a encenação de um destruidor de virtudes


O teatro de Sabbath é um dos livros mais interessantes da literatura norte-americana, entre os melhores da safra da segunda metade do século XX, escrito por um genuíno discípulo de Shakespeare, Philip Roth.

Harold Bloom fala de Proust, Freud e Nietzsche como autênticos filhos de Shakespeare, mas não lembra este outro autor saído do universo shakespeariano. Provavelmente porque não o vê à altura dos três citados. Em todo caso, eis um espírito elevado, cuja obra merece ser lida com atenção.

Ler Nietzsche não é suficiente. Há verdades nos livros de Roth que jamais seriam encontradas em outro lugar. Assim como não existiria Nietzsche sem Shakespeare, conforme disse Bloom, também não teríamos Roth sem o dramaturgo inglês.

Roth nos presenteia com personagens capazes de revelar verdades profundas da alma humana. Vemos isso em livros como O complexo de Portnoy, Animal agonizante, Pastoral Americana e, especialmente, este que é o nosso assunto.

O teatro de Sabbath conta a história de Morris ‘Mickey’ Sabbath, homem de 64 anos em crise existencial após mais de uma década de relação extraconjugal com Drenka Balich, doze anos mais jovem do que ele e sua razão de existir no absurdo mundo das convenções. É o ponto de partida do romance, que começa com a frase cortante:

“Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado.”

Para logo em seguida dar a tonalidade da trama:

“Esse foi o ultimato, o ultimato enlouquecedoramente inverossímil, totalmente imprevisto, que a mulher de cinqüenta e dois anos apresentou, chorando, ao seu amante de sessenta e quatro anos, no aniversário de um relacionamento que persistira com uma surpreendente licenciosidade – e esse, de forma não menos surpreendente, era o segredo deles – durante treze anos. Mas agora, com o refluxo das infusões hormonais, com a próstata inchando e, na certa, com apenas uns poucos anos de potência mais ou menos segura para ele – e com um resto de vida que talvez não fosse muito além disso –, aqui, ao se aproximar do final de tudo, ele, sob pena de perdê-la, se via compelido a fazer das tripas coração.”

O perfil do sedutor

Casado com Roseanna, Sabbath era titereiro, ator de teatro de fantoches, que depois montou sua própria companhia, chamada de teatro Indecente de Manhattan, raiz de sua ruína. Mudou-se de Nova York para o interior, Madamaska Falls, quando sua primeira mulher, Nikki, desaparecera, deixando no ar a incerteza se havia sido ele ou não o assassino. Mas o corpo dela nunca apareceria.

Prestidigitador do verbo, de mãos rápidas e palavras certas na hora certa, Sabbath usava o teatro como farsa para seduzir as garotas que assistiam ao show. Falava o que as mulheres queriam ouvir, e as adolescentes eram como coelhos mesmerizados por serpentes devoradoras, conforme o trecho abaixo:

“Após uma ligeira troca de palavras educadas, o dedo começava um sério interrogatório, indagando se a moça já havia namorado um dedo, se sua família aprovava os dedos, se ela mesma achava um dedo atraente, se podia imaginar-se vivendo feliz com um só dedo ... e a outra mão, enquanto isso, furtivamente, começava a desabotoar ou abrir o zíper do agasalho da moça. Em geral, a mão não ia além disso; Sabbath sabia muito bem que não devia passar dos limites.”

“Mas, às vezes, quando Sabbath deduzia pelas respostas da moça, que sua consorte era mais brincalhona do que a maioria das pessoas ou mais profundamente enfeitiçada, o interrogatório de repente se tornava libertino e os dedos iam em frente a fim de desabotoar a blusa da moça. Só por duas vezes os dedos chegaram a abrir o fecho de um sutiã e só uma vez tentaram acariciar os mamilos expostos. E foi então que Sabbath foi preso.”


Foi quando ele perdeu o direito de se apresentar. Tornou-se professor de teatro universitário e também cometeu crimes semelhantes, sendo expulso da faculdade.

Nessa ocasião ele conheceu Drenka e a seduziu. Na verdade, ela se deixou seduzir porque queria viver a porção secreta de seu mundo e se sentir aliviada de um casamento congelado pelo tempo. O drama de Sabbath se desenha quando Drenka, seu único grande amor, morre de câncer.

Verdades imanentes

Todos os fantasmas do passado dele se misturam em sua crise existencial a partir de então, mesclados na memória irrevogável de Drenka. A figura da mãe, que já havia morrido, mas o atormentava (dilema de quase todos os personagens de Roth, sempre judeus, como o próprio autor, num eterno não-querer-desligar-se do fio materno), a imagem viva do irmão querido, morto na Segunda Guerra Mundial, as mulheres de sua vida, a corrosão da alma e tantas outras amarguras.

Nessa jornada, o narrador em terceira pessoa e a personagem principal – que no fim das contas são a mesma figura, já que estamos no teatro de Sabbath – nos oferecem momentos de surpresa, riso, lamento e decepção, ao termos diante dos olhos a alma do homem tão exposta. Muitas frases no meio do texto trazem juntas beleza e verdade, não a dogmática, mas a humana, a verdade cercada de contradições.

“Tão pouca coisa na vida é passível de ser conhecida”, diz o narrador, ao pedir que não sejamos tão duros com Sabbath. É ele, o próprio Sabbath, sem dúvida, pedindo, entre risinhos de canalhice, cinicamente, o nosso perdão. “Muitas transações cômicas, ilógicas e inconcebíveis se acham subordinadas às manhas da luxúria”, completa o narrador. E, com isso, tacitamente consentimos.

Também poderíamos aceitar outras afirmações, como as que aparecem no diálogo entre Sabbath e sua mulher, Roseanna, que sofre com o alcoolismo e a postura libertina do marido:

“Nossa vida é tão emocionante quanto os nossos segredos”, diz Sabbath, “tão abominável quanto os nossos segredos, tão vazia quanto os nossos segredos, tão desesperada quanto os nossos segredos; nós somos tão humanos quanto ...”

“Não”, retruca Roseanna. “Isso nos faz desumanos, inumanos e doentes. São os segredos que nos impedem de ficar em paz com nosso ser interior. Não podemos ter segredos e alcançar a paz interior”, argumenta ela num ponto de vista cristão, bem diferente de seu marido ateu. Nesses dois casos, o que importa é a equivalência dos argumentos, cuja verdade vai depender do leitor.

Na contramão da virtude

Mickey Sabbath é o tipo de sujeito que qualquer um, dentro dos padrões morais convencionais, só aceitaria na ficção. Se você fosse pai de uma adolescente, não se aproximaria dele, ou o “Evangelista da Fornicação” tentaria seduzi-la, e o faria. Se você fosse casado, cuidado, sua mulher correria o risco de se deixar levar pela lábia incomparável de Mickey Sabbath, o “Monge da Foda”.

Apesar da presença do sexo na literatura de Roth e, especificamente, do elogio do desejo em O teatro de Sabbath, este romance publicado originalmente em 1995 trata mesmo é do universo secreto da alma, quase sempre rondando o desejo sexual, é verdade, mas com amplos esconderijos de segredos diversos.

Na opinião do libertino e farsante Sabbath, o que aparece no comportamento social – no espaço público das relações humanas – é mera convenção, e uma convenção tingida fortemente de falsidade, fingimento e infelicidade.

O que Sabbath propõe é a liberalidade, a desamarra dessas convenções que, segundo ele, mascaram a verdade humana e fazem todo mundo viver na contramão de seus próprios desejos. O interessante é que o ator aqui é ele. Veja que ironia!

Mickey Sabbath é o Hamlet da sacanagem, o Lear da desfaçatez. Sabbath trágico, Sabbath cômico, lírico. “O reino secreto das emoções e dos disfarces, essa era a poesia da sua existência.” Sabbath satírico. “Será que alguma outra espécie de animal acorda de pau duro?” Sabbath de palavras fáceis, que flutuam como fumaça de cigarro pós-coito. “Com você, gozar é uma indústria. (...) Você é uma fábrica.”

Num momento de devaneio mórbido, Sabbath tem a visão de seu próprio mausoléu, cuja descrição deixa claro o quanto ele sabia o que era, mostra tudo aquilo que construía sua alma, mas que ele mesmo, para os outros, procurava não revelar de pronto, mantendo a farsa de ser um artista genial:

“Amado Cliente de Puteiros, Sedutor, Sodomita, Corruptor de Mulheres, Destruidor de Virtudes, Perversor de Jovens, Uxoricida, Suicida”. Era demasiado humano, mas consciente da força concentrada no desejo dos outros. Seu objetivo sempre foi cavar essa verdade e tirar proveito dela para si mesmo, individualista que era.

“A gente leva a vida inteira para entender o que realmente importa e, então, já não está mais lá”. Eis o mote e o medo de quase todos nós, pelo menos no plano do inconsciente.

Trechos:

“Tudo está abandonando Michele, exceto sua bunda, que, conforme seu guarda-roupa a tem informado, vem aumentando na última temporada.”

(...)

“Sabbath compreendeu o estado de espírito de Michele, o estado da sua vida, o estado do seu sofrimento: o sol vai se pondo, e o sexo, nosso maior luxo, está fugindo para longe a uma velocidade tremenda, e a mulher, em seu desatino, fica se perguntando se deixou passar em branco uma única e miserável chance de dar uma trepada.”

(...)

“Nada comove tanto Sabbath quanto essas gostosonas que estão ficando velhas, com seus passados promíscuos e suas filhas jovens e bonitas. Sobretudo quando elas ainda estão dispostas a rir como essa mulher. A gente vê tudo o que elas foram outrora, nessa risada. Sou o que restou da famosa trepada do motel – ponha uma medalha nos meus peitos caídos. Não é nada engraçado arder numa pira em pleno jantar.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Shalon, Gibath.
Mesmo estando no meio-prá-lá da leitura, confesso (mesmo ciente ddo pito que vou levar) que esta é uma leitura arrastada, cansativa e sem muito fascínio; teatral ao cubo pelo autor/ator/personagem e auto-manipulador, Sabath passa a vida fugindo do que tem em virtude da desvirtuação alheia. Corruptor de mentes e corpos, o estrago que causa na vida (ou morte?!)de Nikki e de Rose nem fedem nem cheiram, cada qual teve sua repercursão interna no caquético sátiro mas não o suficiente para que nenhuma evolução humana se configurasse nele. Não acredito em uma regeneração, mas essa vida sem máscaras tanto por ele apregoada não passa de ser a maior e mais indigesta delas: a máscara da auto"desaceitação". Tudo bem que assim caminha a humanidade, mas realmente, não me comoveu. Mas não é para isto a literatura??? Pois bem. Sua ~função foi cumprida, expressei algo que nasceu com as escritas de Roth. Mas que desejei abortar no meio...parto. Inté.
Fláviana Quase-parindo-um-fim. Bjs.