quinta-feira, 5 de junho de 2008

FERNANDO SEGOLIN E A AULA TANGENCIAL: Lobo Antunes, Pessoa e Fellini

A tangência é a reta riscando a superfície do círculo, sem atingir seu interior, mas o suficiente para ligar um conteúdo a outro, nos ensina a matemática. A vida contingente de um círculo, por meio do qual passa uma reta, pode implicar referência em outro círculo de vida pelo qual tangencia essa mesma reta.

Com essa imagem, temos a representação daquilo que é uma aula de Fernando Segolin. Mestre na arte de ensinar literatura, Segolin é o trigo no joio da didática literária.

Especialista em Fernando Pessoa, professor do departamento de Pós-Graduação da PUC de São Paulo, ele é um raro corpo de saber que faz da literatura, de modo geral, e da poesia, em particular, sua raison d’etre.

Prefere dar aulas, mas já publicou dois livros: Personagem e anti-personagem e Fernando Pessoa – poesia, transgressão e utopia, fruto de sua tese de doutorado sobre o poeta dos heterônimos. Ambos estão esgotados.

Para Segolin, ensinar literatura é demonstrar quão viva deve ser a palavra, formando um complexo de tensão em que há toda a carga sensorial e sensual da própria vida. “Ou a literatura é esse corpo vibrante e apaixonado, ou ela não serve pra nada”, diz ele em uma de suas aulas.

Foi também em uma de suas aulas que, ao falar de António Lobo Antunes e, de quebra, Fernando Pessoa, Segolin me deu a chave para penetrar o reino imagético do cinema de Federico Fellini. Eis a tangência.

A vida capturada


"Nem história, nem intrigas, quero a vida"

Ele usa a obra de Lobo Antunes para falar do significado da literatura de modo geral, da literatura como arte. Segundo Segolin, os romances de Lobo Antunes não têm saída declarada, definida, seus personagens são labirínticos.

A história, a trama do romance, não interessa para Lobo Antunes. “O que eu quero é colocar a vida inteira entre as capas de um livro. Não quero história, não quero intrigas, eu quero a vida”, seria a afirmação categórica do romancista.

Para Segolin, esta afirmação é o resumo do objetivo do fazer literário de Lobo Antunes, cujos princípios são sustentados pela herança do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, segundo o qual, a única poesia possível seria aquela que brota do corpo, de forma espontânea e natural, captando o mundo só por meio dos sentidos, sem o uso das palavras (o que configura a utopia).

Dentro dessa premissa, a literatura quer a vida de imediato, ou seja, o que marca a literatura é a utopia da não mediação. A literatura sonha em acabar com todas as mediações, diz Segolin. As mediações são o que nos aliena, sejam linguagens, teorias, sonhos, experiências de todo tipo (a utopia em sua plenitude).

A linguagem do impossível

Segundo Segolin, a literatura quer superar as mediações, e é um sonho utópico marcadamente erótico. “O erotismo em todos nós aspira a ausência de todas as telas. O verdadeiro erotismo é aquele que promove a integração do eu com o seu outro, sem nenhum intervalo”, ensaia o professor.

Segolin continua: “Criar é eliminar mediações, é transformar aquilo que já se conhece em algo novo. A utopia existe porque somos seres inevitavelmente mediáticos. Operar com a palavra é buscar nela uma palavra que ainda não é, que ainda não há. Todo gesto criativo é a instauração de algum ser, é, portanto, transgressão.”

E diz mais: “A literatura é a linguagem do impossível num mundo pretendidamente de certezas.” Segundo ele, a vida nunca se deixa captar completamente, pelo menos pela linguagem. Eis a utopia, a contradição da literatura. Retomando Lobo Antunes e Pessoa, Segolin arremata: “A vida nas capas do livro só é possível se ela aparecer inteira, sem nenhuma máscara.”

A humanidade como nuvens

É aí que entra o cinema de Fellini. “Não quero história, não quero intrigas, eu quero a vida”. Eis a frase lapidar, que pode se aplicar em vários filmes do gênio italiano.

Em A Doce Vida, é como se Fellini quisesse sempre captar o momento, e esse momento escapasse sempre, deixando apenas rastros da vida. O que a câmara de Fellini capta e projeta na tela é uma atmosfera que insufla leveza em nossa alma e nos faz flutuar.

A câmara de Fellini capta e projeta na tela uma
atmosfera que insufla leveza em nossa alma

Essa mesma sensação pode ser vista também em A Cidade das Mulheres, Fellini 8 ½ e Amarcord. Está menos presente em Noites de Cabíria, porque o lirismo aqui é mais unívoco, algo do tipo que se concentra na imagem do personagem de Cabíria, no sonho dela, na ingenuidade, ou na fé que tem nas pessoas. É um filme lindo, mas é mais pé no chão, como também o é A estrada da vida.

Ao conversar com um amigo cinéfilo, falamos justamente dessa tentativa felliniana de captar a vida. Fellini chegou a dizer que seus filmes não eram para ser entendidos, e sim sentidos. A gente só consegue mesmo sentir.

A tangência com a aula de Segolin me faz sentir melhor os filmes de Fellini, sem dúvida. São mesmo sensações da vida. Mas toda vez que tento explicar esse sentimento, a maior sensação que tenho é a de que Fellini via a humanidade como nuvens.

3 comentários:

laura caselli disse...

estou passada

Lívia disse...

Olá Gilberto
Um texto sobre um dos meus eternos professores!! Você é ou foi aluno da PUC? Sou ex-aluna de lá e seu o que esse senhor de óculos escuros pode causar. Uma simples frase dele me fez perder semanas de sono...
Um Abraço

Anônimo disse...

Entre coisas perenes e não,
Por sobre fachadas e em in-interiores, (intencionalmente),
Em meios hemo/homo/hetero/hipo/critas,
Um ser pul
pen
sante santo
per verso
versamente e
per igosamente
erótico. Evoé!

Flávia.