quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

As feias não precisam se desculpar

Gina Lollobrigida em O Corcunda de Notre-Dame, clássico de 1956

Na literatura, “seria a beleza apenas o açúcar usado para adoçar um remédio amargo?” (Elif Batuman, in: Ilustríssima, FSP, 30 de janeiro de 2011). Não, de modo algum.

A beleza é o que o artista produz a partir de dados extraídos da imaginação, da realidade em volta, das verdades estabelecidas, dos fluxos de intriga e conflitos nascidos e sugeridos dentro da sociedade, da vida comum, da vida em solidão, da esperança, do desespero, da vontade de saber, de poder, de ser e até não ser.

A maneira como o artista trata tudo isso é a forma. O que ele consegue criar com tudo isso é o conteúdo. Não de modo tão simples. Forma e conteúdo, a coisa dita e o modo de dizê-la, são dois elementos que se constroem e se mostram inseparavelmente. Isso é literatura, é arte.

Há uma verdade, sempre plural, no interior da criação artística que para ser alcançada é preciso que se tenha disponível a consciência aberta, o sentimento sinestésico da vida, a capacidade de sentir pelos poros, a habilidade para captar sons, significados, cheiros, movimentos, cores, sabores, a espessura da carga verbal, a nervura dos objetos imaginados, como alguém capaz de sentir a presença do outro apenas pelos delicados filamentos de tecidos na planta dos pés.

Potencial

No caso específico da literatura, a imaginação, a inteligência treinada, a sensibilidade educada, o senso de observação do autor também devem estar no leitor, porque este tem de refazer o caminho daquele para se deliciar com tudo aquilo de que se falou anteriormente. Ler é colher cada palavra, cada som, para em seu conjunto oferecer um significado possível.

Na literatura, tudo isso se potencializa, porque a intenção do autor é aguçada e voltada para o plural, na vontade de tecer o mundo inteiro ao redor da vida recriada. A beleza não é só o belo. É também o feio, o ridículo, o mal, o bem, a torpeza (corroendo a alma) e a virtude (absconsa na lama).

“As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental” (Vinícius de Moraes) é uma frase engraçadinha, mas sem valor estético, e até mesmo equivocada, porque beleza, ainda que seja fundamental, não é antônimo de feiúra. São duas coisas que existem independentemente, inclusive podendo ser a feiúra aquilo que há de mais importante numa estrutura de beleza, como toda a espinha dorsal de Flores do mal, ou O corcunda de Notre-Dame. As feias não precisam se desculpar.

4 comentários:

Webston Moura disse...

Ótimo, Gilberto! Beleza em sentido maior, o que me lembra esses livros cheios de dor ou terror ou angústia. Abraços.

Gilberto G. Pereira disse...

Pois é, né. Senão não poderíamos apreciar o riso e até o esculacho em Rabelais (a beleza do cômico), ou a beleza de Vidas Secas, né, ou Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro, um de seus livros mais interessantes. Enfim. Grande abraço, Webston!

Wedis disse...

Muito bom esse post. Confesso que o li todo e só consegui entender o que você estava querendo dizer quando você citou Corcunda de Notre Dame. Seja lá o que for o feio, ele pode ser muito bonito. Esse filme é um exemplo.

Gilberto G. Pereira disse...

Então, você entendeu tudo, Wedis. O livro de Victor Hugo, que deu origem às duas versões do filme (o outro é com a Selma Hayak) dá essa dimensão do grotesco e do sublime e de como o sentimento moderno se tornou mais plural com essa aceitação na estética. Abç!