A beleza criada na obra literária está vinculada a algum
tipo de tensão. Parece solta – uma beleza flutuando nos espaços entre um drama
e outro, entre conflitos, no espaço moroso da espera, no olho do furacão dos
acontecimentos que tensionam a trama -, porque é o resultado da operação
estética. É uma beleza desvinculada da ética, mas não existe sem passar pelas
fibras do jogo moral dentro do qual a obra é feita.
Esta aparente contradição da criação literária é explicada
por Alfredo Bosi em Literatura e resistência,
livro que reúne uma série de textos que jogam luz sobre o assunto. Nesse livro,
Bosi analisa autores como Padre Antônio Vieira, Luigi Pirandelo, Albert Camus,
Cruz e Sousa, Lima Barreto e João Antônio, mostrando como um conceito
inicialmente ligado à ética, o de resistência, torna-se de suma importância
para explicar a arte literária, que tem como fim o resultado estético.
No livro de Bosi, dois textos são fundamentais para
explicar o significado de resistência e tensão na literatura. O primeiro é Narrativa
e resistência, em que o autor aponta o problema dos conceitos
abordados, apontando inclusive alguns exemplos históricos e marcando a
diferença entre a resistência como tema e a resistência como “processo inerente
à escrita” (referência), que é justamente a outra ponta do problema criado por
Bosi, e aonde ele queria chegar.
Em Um boêmio entre duas cidades, o
segundo texto em questão, Bosi analisa a relação literária entre a vida e a
obra do paulistano João Antônio, que usou sua cidade natal para ambientar a
maior parte de seus contos. São Paulo não foi apenas onde João Antônio nasceu,
foi também onde ele se fez como escritor marginalizado pela sua “condição
humana e literária”, sendo “pobre, boêmio e suburbano numa São Paulo ainda não
devorada pelo consumo; jornalista de raça e escritor atracado com o real.”
Antes de chegarmos ao ponto fulcral da resistência na
literatura de João Antônio, no entanto, vamos esclarecer os conceitos estudados
por Bosi no texto Narrativa e resistência. Para ele, a resistência tem um
significado ético, uma vez que se trata da vontade que resiste a outra vontade.
“Resistir é opor a força própria à força alheia”, e a arte “não é uma atividade
que nasça da força de vontade”. Ela nasce, isso sim, das “potências do conhecimento:
a intuição, a imaginação, a percepção e a memória.”
Mas há um momento em que esses dois campos se encontram,
diz Bosi. É quando, de um lado, desejo, pulsões, signos e imagens –
representando o sentimento da arte e da vida prática, do viver – se amarram a
política, teorias, ações e conceitos, que representam aqui a ideia de razão e
de vontade. “Essa interação é a garantia da vitalidade mesma das esferas
artística e teórica”, diz o autor. Quando os signos nascem da intuição
artística e criam uma narrativa, esta narrativa traz uma resistência, que pode
vir de duas formas: como tema ou de modo inerente à própria escrita.
Segundo Bosi, isso sempre acontece nos grandes autores,
porque eles sabem como manipular os signos para conseguir, como efeito, catalisar
a tensão da vida social. Nesse sentido, o autor se utiliza da esfera ética para
chegar à estética. Ou seja, quem interfere de fato na vida social é o homem de
ação, o político, o educador, valendo-se de teorias e da vontade para atingir
seu fim, racionalizando cada passo que dá. Esta é a esfera ética. Mas este
homem de ação só consegue fazer isso por meio dos valores, e estes só podem ir
adiante combatendo os antivalores inerentes.
Daí, para catalisar a vida, os artistas elaboram a tensão
entre valores e antivalores no interior dos signos. Esta é a esfera da
estética: “Só para ilustrar: o despotismo traduz-se por atos arbitrários e tons
de voz autoritários daquele que detém poder. Leia-se Balzac descrevendo com
vivacidade a conduta doméstica tirânica de um castelão decadente, um emigrado
da Restauração, o conde de Mortsauf, que inferniza a esposa e os criados (Le lys de la vallée [O lírio do vale]). Que riqueza de
pormenores e de matizes aproximáveis pela categoria do despotismo patriarca!”
Outros exemplos: a vilania se revela na palavra injuriosa
lançada em rosto a um inocente; a traição se faz com sorrisos cúmplices, meias
palavras. Nas tragédias de Shakespeare há uma riquíssima messe de situações em
que os antivalores tomam corpo. A cupidez das filhas traidores de Rei Lear, Goneril e Ragane, é
contrastada com a lealdade discreta da filha mais moça, Cordélia: o antivalor
nas primeiras e o valor na última têm voz, têm gesto, têm rosto.
Para tensionar a
linguagem
Mesmo que Shakespeare não sublinhasse, mediante frases
sentenciosas ditas por outras personagens, a fealdade de umas e a beleza da
outra, a resistência ao mal foi trabalhada de tal maneira que o ético e o estético
se converteram mutuamente.
Está claro, consequentemente, que, segundo Bosi, o autor
cria a narrativa a partir de valores morais, e a resistência nesta narrativa
nasce das representações do bem e do mal, de forma ambivalente, uma buscando
forçar a negação da outra. “Graças à exploração das técnicas do foco narrativo,
o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma
fenomenologia de resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio.”
A resistência na literatura não é um caráter explorado
apenas na prosa. Segundo Bosi, a poesia também se vale dos valores éticos para
tensionar a linguagem. Mas aqui a intenção do autor é mostrar a resistência
como tema da narrativa.
Para tanto, Bosi assinala exemplos máximos da literatura,
como Shakespeare, que extrapola os limites do gênero, mas, principalmente
apontando os mestres na técnica de narrar ficções. Neste caso, a narrativa
busca os valores morais apenas para chegar ao valor estético:
“A partir do momento em que o romancista molda a
personagem, dando-lhe aquele tanto de caráter que lhe confere alguma identidade
no interior da trama, todo o esforço da escrita se voltará para conquistar a
verdade da expressão. A exigência estética assume, no caso, uma genuína face
ética.”
Os romancistas recorrem aos valores morais, segundo Bosi,
e atingem a esfera da tensão, escolhendo “tudo quanto a ideologia dominante
esquece, evita ou repele” e forjando a resistência. Esta aparece na narrativa
de duas maneiras, conforme já foi mencionado.
No primeiro caso, o da resistência como tema, os
romancistas se valem da ideologia pela qual combatem certos valores que, no
caso, seriam antivalores. Por exemplo, entre 1930 e 1950, muitos escritores se
engajaram na luta contra o fascismo e o nazismo e suas ramificações, como o
franquismo, na Espanha, e o salazarismo, em Portugal.
Nesse período, diz Bosi, foi produzido “o cerne da
literatura de resistência, coincidente.” Ele assinala como exemplo dessa
literatura o livro de memórias intitulado É
isto um homem?, de Primo Levi, que narra a experiência dramática e
traumática de Levi em um campo de concentração nazista. Outros exemplos de
utilização da resistência como tema são Memórias
do cárcere, de Graciliano Ramos, A
peste, de Albert Camus e a trilogia Os
caminhos da liberdade (A idade da
razão, Sursis e Com a morte na alma), de Jean-Paul
Sartre.
Esforço crítico da
subjetividade
Essa tendência dentro da literatura em relação a uma
“cultura de resistência política” é, segundo Bosi, imanente à teoria marxista e
estendeu-se com o debate filosófico da fenomenologia, que fez nascer o existencialismo:
“Existencialismo e marxismo irão encontrar-se no imediato pós-guerra para
propor uma arte empenhada e ao mesmo tempo implacavelmente analítica dos
mínimos movimentos da consciência.”
Os autores desta última corrente, como Sartre e Camus, fundaram,
na interpretação de Bosi, uma “palavra radicalmente antiburguesa, não
conformista, revolucionária, voltada para a construção do novo Homem.”
Já a resistência “como forma imanente da escrita” é
independe de cultura política e está em vários autores de diferentes épocas.
Trata-se de obras que buscam uma “tensão interna que as faz resistentes,
enquanto escrita, e não só, ou não principalmente, enquanto tema” (ibidem,
passim). Para esclarecer o significado de resistência, Bosi comenta o conceito
“tensão”, utilizando-se de teorias marxistas, por meio de Georg Lukács e Lucien
Goldmann.
A “tensão” surge como um esforço crítico da subjetividade
que se lança contra o mundo, o eu/mundo se manifesta no interior da linguagem
numa perspectiva crítica, tirando a mensagem da rotina social, dos aspectos que
aparecem na malha da vida comum, e colocando-a no campo de batalha interna, no
eu, onde os símbolos se elaboram para surgir ao mundo. O romance não é “uma
variante literária da rotina social, mas seu avesso; logo, o oposto do discurso
ideológico do homem médio.”
Não que o romancista deixe de imitar a vida, mas agora o
faz de outra forma. Bosi, indica que a vida apresentada é aquela “cujo sentido
dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus
hábitos cotidianos.” A escrita da resistência é, portanto, “a narrativa
atravessada pela tensão crítica.”
Bosi cita vários exemplos de autores que, no seu discurso,
tiram o foco da resistência da ideologia e da convenção realista para mostrar
um embate mais profundo, no interior da linguagem e também no interior do ser.
Em O Ateneu, Raul Pompeia, segundo
Bosi, “fez ora sátira direta, ora paródia, da linguagem pedagógica e da
retórica científica e literária predominante nas escolas para a elite de nosso
Segundo Império”.
Marcel Proust, segundo Bosi, no romance Em busca do tempo perdido, “fez o
passado resistir em filigrana mediante a escrita infinitesimal da memória.”
(...) “Na Paixão segundo G.H., de
Clarice Lispector, a narrativa oscila entre o confidencial e o metafísico. O
tempo do relógio é suspenso e a imaginação se projeta e se desdobra em um
espaço fluido e sem margens.”
A tensão é criada pelo embate entre o eu e o mundo, com
ambos resistindo um ao outro, ambos tecendo valores e antivalores: “A escrita
resistente não resgata apenas o que foi dito uma só vez no passado distante e
que, não raro, foi ouvido por uma única testemunha, como se dá, por exemplo, no
primeiro capítulo das Memórias do
cárcere”, avalia Bosi. Ela resgata também “o que é calado no curso da
convenção banal, por medo, angústia ou pudor”.
Tudo isso “soará no monólogo narrativo, no diálogo
dramático.” Tudo isso é escrita resistente, por meio da qual, “a narrativa
descobre a vida verdadeira”, e esta “abraça e transcende a vida real.”
Resistência por meio
da nostalgia
Quando Bosi analisa a literatura de João Antônio, no texto
Um
boêmio entre duas cidades, ele diz que o contista e romancista
paulistano faz a resistência por meio da nostalgia. As duas cidades do título
são a capital paulista separadas no tempo. Uma é a São Paulo da juventude de
João Antônio, a outra é a nova São Paulo, que existe no tempo presente da
narrativa, na vida adulta do narrador no romance Abraçado ao meu rancor, em que o autor mistura ficção e traços
autobiográficos para mostrar como a boemia foi engolida pelo progresso.
A nostalgia resiste por meio da tensão criada entre
passado e presente, boemia e amplidão de espaço contra a velocidade da nova
vida urbana que esfriou e diminuiu e liberdade das ruas, tomou o lugar dos mais
pobres, expulsando-os para mais longe.
Trata-se de uma crítica social, mas, segundo Bosi, uma
crítica social que se inscreve, na escrita de João Antônio, não apenas como uma
linguagem realista. É mais que isso. É uma “combinação de estilo original,
realista até o limite da reportagem sem deixar de envolver-se em um fortíssimo
pathos que vai do ódio à ternura e do sarcasmo à piedade.”
Neste sentido, a narrativa de João Antônio, segundo Bosi,
faz o que é próprio da “escrita resistente”, indo além do que ficou escondido
no passado, mas desatando os conflitos interiores entre o eu e o mundo por meio
do “fortíssimo pathos” de ódio e ternura. O romancista paulistano estabelece um
diálogo com a escrita de Lima Barreto, uma vez que faz a mesma coisa que fez o
carioca, e também boêmio, no começo do século XX no Rio de Janeiro.
Embora Bosi não cite o termo “burguês” para se referir ao
objeto de contradição de João Antônio, tanto este quanto Lima Barreto lançam
farpas contra os valores burgueses, principalmente aqueles ressaltados na
imprensa, e indo além, colocando a imprensa no mesmo balaio de críticas. E
assim segue a escrita de João Antônio, pondo os valores capitalistas, de
prosperidade e acúmulo de riqueza, como antivalores, para em seu lugar, pôr
como valor de fato o modo de vida do pobre, que perdeu mais um pouco de espaço,
mas que ainda joga, canta e dança.
E assim, a resistência se mantém na narrativa de João
Antônio, embora a realidade insista em mostrar outra cara, outra vida, outro
mundo que sempre, no implacável fluxo do tempo que segue adiante, sem olhar
para os lados, diz outra coisa. A tensão existe, porque o narrador não se
perdeu, e percebe isso.
O passado dá lugar ao presente para mostrar que todas as
periferias são iguais, em qualquer tempo. “Nessa franja desbotada da
metrópole”, diz Bosi, “onde se apinha a gente migrante e mestiça; nesse mar de
pura desolação e esqualidez, o boêmio vai reencontrar não mais a outra cidade,
antiga e já perdida, mas a outra face da cidade nova, face que a indústria
fabrica e recusa.”
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