terça-feira, 3 de novembro de 2009

Memórias de uma nação

Dalia Sofer: exilada em Nova York, cidade onde chegou aos dez anos de idade, em 1982

Não dá para ler tudo nem todos. Os grandes e céleres leitores como Harold Bloom e Alberto Manguel, para citar os vivos, ou Martin Seymour-Smith, Otto Maria Carpeaux e Samuel Johnson, para não esquecer os mortos, leem ou leram o escopo da literatura universal, construindo uma sabedoria enciclopédica impressionante.

No caso dos mortais simples, feito o autor desta coluna, a leitura segue apenas o ritmo de um cavalo bom que de vez em quando ganha a corrida. Nada mais que isso. Para ler bem, e bons autores, é preciso, portanto, fazer o recorte certo, ao mesmo tempo em que não se devem fechar as portas para o novo. Vez ou outra é indispensável lançar os olhos ao longe e captar o significado da vida além de nosso umbigo intraatlântico. 

É com esses olhos que podemos ver escritores como a iraniana Dalia Sofer, que em 2007 publicou seu primeiro romance, Setembros de Shiraz (Rocco, 2008, 286 páginas). O livro retrata um problema que nós brasileiros conhecemos, seja pelo viés da história recente, seja pelo ardor da própria pele: os danos de um golpe de Estado que revira de pernas para o ar uma sociedade inteira e acabam levando alguns ao exílio. No Brasil isso foi passageiro e de baixo impacto. Já em outros lugares não se pode dizer o mesmo.

A história tem mil e um relatos sobre o assunto, mas à arte também interessa o registro da miséria e grandeza dos homens no poder e o que eles fazem quando conseguem montar o Estado Totalitário. Esta é uma das razões pelas quais os cidadãos desenraizados escrevem sobre suas experiências, e por igual motivo o leitor deve ler.

A chamada literatura de migrantes (Migrantenliteratur, em alemão) nos deu um legado enorme da experiência de expatriados, por causa de revoluções políticas, em países comunistas como China, Cuba, Rússia, Angola, Bulgária e muitos outros, ou na Alemanha nazista, na Itália fascista e nas repúblicas islâmicas, como o Irã. Em função disso, os Estados Unidos estão cheios de colônias feitas exclusivamente por expatriados, todas formadas ao longo do século XX, a era dos extremos, marcada pela diáspora nos quatro cantos do planeta.

Em Setembros de Shiraz, Dalia resgata a história do golpe de Estado iraniano que pôs no poder os mulás, ou seja, os radicais islâmicos que subjugam os atos políticos aos da lei do Corão. É a partir desse acontecimento que Setembros de Shiraz ganha forma. Em 1981, em pleno começo da guerra Irã-Iraque, que durou de 1980 a 1988, a família judia de Isaac Amin se viu encurralada pela polícia política do novo líder da nação, o aiatolá Ruhollah Khomeini, que dois anos antes derrubara o Xá Mohammad Reza Pahlevi.

Isaac, gemólogo e joalheiro bem sucedido, é preso pela Guarda Revolucionária iraniana, é torturado e vê os colegas sendo torturados também, muitos deles morrem, sob acusações de crimes inexistentes, só para justificar a transferência de poder e de riquezas. Enquanto isso, sua mulher, Farnaz, e sua filha, Shirin, têm de se virar como pode para não sucumbir diante do novo regime. Só quem está a salvo é o filho mais velho do casal, Parviz, que já se encontra em Nova York e faz o contrapé da realidade vivida pelos pais e a irmã.

O ideal desse novo governo iraniano é socialista, mas ele não se submete aos caprichos de forças como a então União Soviética. Quem passa a mandar são os líderes religiosos. “Os cartazes de cinema e anúncios de xampu foram substituídos por extensos murais clérigos. As ruas que tinham nomes de reis agora manifestam que a revolução é sua patrocinadora. E homens e mulheres um dia bem vestidos transformaram-se em sombras barbadas e véus negros”, diz um trecho.

Ao longo do romance, cuja ambientação principal é a Teerã sob permanente estado de tensão, o leitor acompanha o choque de costumes e de valores. No momento da prisão de Isaac, há um exemplo do que se tornaria comum no Irã dos aiatolás. “Há uma motocicleta preta estacionada no meio-fio, ao lado do seu Jaguar verde-esmeralda lustroso. O homenzinho faz cara de desprezo para o elegante automóvel, monta na sua moto, solta o freio e liga o motor. Isaac monta em seguida, com o segundo soldado atrás.”

Ao ser literatura de migrantes, Setembros de Shiraz resgata a questão da memória, e desse modo pode ser chamado também de romance histórico e político. A intenção da autora é mostrar a qualquer interessado o lado íntimo da expatriação. 

Ao fazer isso, ela se equilibra numa corda muito fina que separa a intenção de produzir literatura e a vontade pessoal de se vingar por meio da arte de narrar. A própria autora é uma expatriada e conta justamente a história de sua família, não necessariamente ao pé da letra, claro, já que se trata de um trabalho literário. Dalia está hoje com 37 anos e mora em Nova York, cidade onde chegou aos dez, em 1982.

O título do romance se refere aos dois setembros (de 1981 e 1982) entre os quais Isaac foi preso, torturado e extorquido. Teve de dar quase toda sua fortuna para poder ganhar a liberdade e fugir com a família para os Estados Unidos. Os setembros de Shiraz são as lembranças que recortam essa realidade bruta, as memórias da juventude do casal, quando os dois se conheceram na cidade do título, em férias de fim de verão.

Setembros de Shiraz é, portanto, um livro que usa a memória para construir o drama da vida no processo de transição de um regime para o outro, sejam as reminiscências da infância da autora, sejam os relatos dos que sofreram na pele o impacto do golpe de estado no Irã. Em seus agradecimentos, no fim do livro, Dalia diz que tem uma dívida eterna com uma amiga por “restaurar a minha fé na possibilidade da bondade.” Ou seja, a autora sentia uma espécie de rancor com seu próprio passado.

Mais adiante ela diz: “obrigado aos muitos prisioneiros políticos cujos relatos espontâneos forneceram os dolorosos detalhes da prisão e da tortura”, entre os quais está seu pai, Simon Sofer. Todas essas menções referem-se ao material de construção de sua ficcionalidade, em que há inclusive a luta eterna entre árabes e judeus. A narração supostamente distanciada, ao ser feita em terceira pessoa, faz um desenho milimétrico das emoções dos personagens judeus, das vítimas do estado totalitário. Mas o inimigo aparece apenas em vultos.

Os novos donos do Irã, na narrativa de Dalia, são como homens brutos sem o menor senso estético ou sensibilidade. Quando tomam o poder, tudo que é ocidental é retirado da vitrine social iraniana, o valor da alta cultura, a ostentação de riquezas, Mozart, Debussy, Frank Sinatra.

Nesse sentido, Setembros de Shiraz é um romance de mão única, quer dizer, retrata a realidade vivida por um grupo de pessoas a partir de um ponto de vista particular. O narrador tem um ângulo de visão muito bem delimitado, ao narrar com certo ressentimento, o que remete o leitor a uma frase muito copiada de Carlos Drummond de Andrade: “Toda história é remorso.”

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