segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pelo prisma da adaptação


O cinema, arte de narrar por meio da imagem, tem uma dívida impagável com a escrita. Raros são os filmes que não nascem de um roteiro prévio, escrito, que coloca os atores no universo do que será filmado, que os prepara para as contracenas, um roteiro que vai mudando ao longo das filmagens, é verdade, mas que é também a linha mestra do diretor. Além disso, o cinema tem uma dívida com a própria literatura, e ao mesmo tempo um conflito permanente com ela.

Para mostrar como o universo literário foi usado pelo cinema e de que forma ainda hoje contribui para o enriquecimento da linguagem cinematográfica, o professor de literatura comparada da Universidade de Nova York, Robert Stam, publicou um livro interessante, intitulado A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação (UFMG, 2008, 512 páginas).


São sete capítulos em que o autor mergulha, com sinceridade e conhecimento, no mundo das adaptações literárias para o cinema e as recriações de textos (hibridismo, intertextualidade), indo desde Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, até Macunaíma, de Mário de Andrade, livro este que, sem pestanejar, Stam afirma ser a “mãe ignorada de todos os romances do realismo mágico”, embora, por isso mesmo, quem fique com os louros da influência seja a obra do colombiano Gabriel García Márquez.


E o autor não fala isso gratuitamente. Ele faz questão de dizer que lê em português, que conhece bem nossa literatura, além de ter o Brasil como uma “segunda pátria”. Ou seja, é uma espécie de brasilianista dos estudos literários. “O Brasil sempre esteve presente em minha trajetória intelectual nesses últimos trinta e cinco anos. A tal ponto que tenho sempre em mente meus interlocutores brasileiros mesmo quando escrevo em inglês”, afirma o autor, no prefácio direcionado a seu público tupiniquim.


Cruzando estilos


O grande valor de leitura deste livro é a maneira como Stam vê a história do romance e a influência do gênero tanto em novas criações literárias quanto nas produções fílmicas. No escopo de sua argumentação, o autor aponta duas principais tradições de romances que chegam aos dias de hoje como as linhas básicas dessas releituras e adaptações: Dom Quixote e Robinson Crusoé.


Para ele, o livro de Cervantes é o modelo da paródia, da intertextualidade e até do realismo mágico, cujos artifícios e técnicas criativas são encontrados dentro da própria linguagem, influenciando outros clássicos como Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e Tom Jones, de Henry Fielding. Neste caso, não sobra mais nada de original para a literatura seguinte, tanto é que o próprio Stam chega a dizer que “toda a história da literatura moderna pode ser vista como uma nota de rodapé de Dom Quixote.”


Mas, em último caso, havendo outra vertente, Robinson Crusoé, do inglês Daniel Defoe, é o texto-fonte das criações miméticas, aquelas que querem “gerar uma forte impressão da realidade factual”, ou seja, os romances realistas, conceito que não se refere apenas à escola do Realismo Naturalismo.


Para não terminar a discussão e mostrar as filigranas da criação textual, entre esses dois gigantes, outros clássicos germinam novas tendências literárias que também deram ao cinema uma força de expressão muito em voga até hoje, renovando-se em releituras, muitas delas buscando um sentido inverso, uma espécie de contra-leitura.


Esses outros cinco estilos fundamentais são a própria narrativa de Fielding, a perspectiva de Gustav Flaubert criada em Madame Bovary, a polifonia de Dostoievski, em Notas do subterrâneo (que recentemente teve uma edição em português com o título de Memórias do Subsolo), o experimentalismo da nouvelle vague francesa – que parte do processo inverso, criando uma estética cinematográfica que influencia a literatura – e o realismo mágico de Márquez.


Notas do subterrâneo é um romance dialógico, polifônico (dotado da capacidade de auto-articulação e de cruzamento de vozes na consciência do personagem, segundo o teórico do formalismo russo Mikhail Bakhtin) que apresenta um narrador atormentado, neurótico, mas confessional, engraçado, autoconsciente.


Para se ter uma ideia de como esses fios de linguagem se entrelaçam na tese de Stam, Notas teria sido a influência direta de livros como A náusea, de Sartre, Lolita, de Nabokov, e até A hora da estrela, de Clarice Lispector, além de filmes de Woody Allen e mesmo as esquetes dos comediantes atuais da stand-up comedy.


O autor cita uma lista das várias adaptações de Crusoé para o cinema, começando com filmes de 1916, como o Robinson Crusoé americano, passando por produções francesas e holandesas, a versão de Luís Buñuel, de 1954, o brasileiro As aventuras de Robinson Crusoé, com Costinha e Grande Otelo, de 1978, até chegar a Lagoa Azul, de 1980, e O náufrago, com Tom Hanks, de 2000. A disseminação dos exemplares do romance de Defoe pelo mundo todo, diz Stam, citando um estudioso do autor inglês, foi como “sementes espalhadas pelo vento, gerando novas obras onde quer que caíssem.”


Nesse sentido, continua ele, filmes como Máquina mortífera, MIB – homens de preto, Grand Canyon – ansiedade de uma geração, Jerry Mcguire – a grande virada, todos eles se basearam na amizade birracial, presente em Crusoé (na relação deste com o negro Sexta-Feira) para criarem seus personagens.


Capacidade de leitura


No seio das argumentações de Stam, ao abordar o problema da adaptação, está a vontade de pôr a baixo a velha ideia de que o cinema presta um desserviço à literatura. Ele avança nessa discussão ao mostrar o quanto as técnicas de narração do cinema têm das técnicas literárias, mas que isso não quer dizer, de forma alguma, que a arte cinematográfica precise ser fiel.


O que diferencia uma arte da outra é justamente a linguagem, e eis aqui mais um avanço nessa discussão, porque refuta a ideia de que o livro é sempre melhor que o filme, só porque é a matriz, quando na verdade são dois produtos diferentes. Stam encaixa aqui a tese de Bakhtin, segundo a qual toda expressão artística é uma construção híbrida, “que mistura a palavra de uma pessoa com a de outra”, principalmente quando se trata de cinema, que envolve uma série de colaborações.


A capacidade de leitura do roteirista é o grande diferencial, neste caso. Segundo Stam, embora a mediocridade exista na passagem de uma linguagem para a outra, endossar a fidelidade como um princípio metodológico só mataria o valor da expressão artística. No caso das adaptações de romances brasileiros, ele explica metodicamente como Memórias póstumas de Brás Cubas, de André Klotzel, é um filme muito bom, que conseguiu captar as veias reflexivas do livro-fonte, sem deixar de ser cinema, sem ser ‘traição’, ‘profanação’, ‘deformação’, palavras que a crítica gosta de usar ao falar de adaptações ou releituras.


“Klotzel vê o romance por aquilo que ele é – um artefato linguístico/estilístico autoconsciente.” É por isso que não importa a fidelidade e, desse modo, mesmo Memórias póstumas sendo um romance fin de siécle, publicado em 1881, Klotzel acerta ao usar comerciais de TV para anunciar a invenção de Brás, o cataplasma. Por causa de procedimentos assim, que recaem sobre a reflexividade da técnica machadiana, a adaptação foi considerada “bastante inteligente e cuidadosamente reflexiva de um clássico brilhante.”


A ousadia de Klotzel seria vista mais tarde na adaptação de outro romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, feita pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, a ótima minissérie Capitu (TV Globo). Aqui também há trechos de filmes e imagens do Rio de Janeiro produzidos ao longo do século XX e um jogo de espelhos em que o velho Dom se vê ainda jovem às voltas de uma Capitu estonteantemente bela e cheia de vida.


Nas pegadas da leitura de Stam sobre a literatura brasileira e suas apropriações fílmicas, há muito o que aproveitar. O livro foi escrito para os leitores norte-americanos, mas, mesmo assim, traz um ponto de vista extremamente interessante para quem estuda literatura no Brasil, para quem gosta de cinema e quer até mesmo investir na arte da adaptação.


No contrapé da adaptação de Klotzel, há a de Suzana Amaral em cima do romance de Clarice Lispector, A hora da estrela. Neste caso, a cineasta conscientemente muda o foco da narrativa de Clarice, que é introspectiva, que “funciona através do desdobramento da vida interior”, com um narrador sarcástico e burguês, para o realismo e a exterioridade. Segundo Stam, Amaral queria justamente tirar o reflexo do universo burguês, ou a crítica dele, para mostrar apenas o drama da mulher trabalhadora de classe inferior.


Estéticas


O livro de Stam tem uma abordagem ampla, cercando-se de um vasto acervo teórico, cujo cerne são o dialogismo de Bakhtin e o hibridismo de Julia Kristeva. Embora faça uma revisão dos questionamentos políticos e sociais na produção artística, sua preocupação maior neste livro é com a abordagem estética.


Em função dessas considerações, outro texto fundamental dentro do livro, que aborda a literatura e o cinema brasileiros, é aquele sobre Macunaíma. Stam faz uma análise detalhada do romance e do filme. Um banquete para os leitores. Sobre o filme, de Joaquim Pedro de Andrade, diz que é “um exercício absolutamente genial de atualização política e estética de uma fonte romanesca.”,


Sobre o romance, dá uma dica valiosa de como os novatos podem ler e buscar a compreensão desse texto fundador de nosso modernismo. “Macunaíma apresenta quase todos os temas e recursos bakhtinianos – inversões carnavalescas, discurso paródico de dupla voz, heterologia social e artística, polifonia cultural e textual – a ponto de o romance parecer ter sido escrito expressamente para trazer à luz uma exegese bakhtiniana.” É só ler. (Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto).

Serviço

Este livro pode ser comprado no site da Livraria Cultura.

Título: A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação
Autor: Robert Stam
Editora: UFMG, 2008, 512 páginas
Gênero: Literatura e Cinema/Interpretação
Preço: R$ 79,00

2 comentários:

Unknown disse...

Olá, Giba

Ao pesquisar sobre nova literatura brasileira, caí em seu blog. Grata surpresa..! Mais coincidências ainda: sou jornalisa, sim, formado por idealismo, como ti. Trabalho como editor na Livraria Cultura e acabei de publicar meu primeiro livro, de poemas.

Ótimo blog, camarada. Leitura informativa e leve. "Favoritado".

Abraço e tudo de bom!

Marcelo

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Vinicius! Morei em São Paulo vários anos, quando frequentei a Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Acompanhei inclusive a amplianção da Livraia, ocuoando também aquele espaço maior. Áureos tempos da minha vida.
Grande abraço!