Vasculhando os arquivos abertos da revista Veja, me deparei com uma matéria de 1968 sobre dois pesos pesados norte-americanos daquele tempo: Henry Miller e Norman Mailer. Junto, a revista trazia um diálogo entre ambos, em que estraçalhavam a imagem paradisíaca da grande potência.
A epígrafe do texto era uma citação de Nelson Rodrigues:
“Vejo o americano como um narciso às avessas que apedreja a própria imagem. É espantoso. Ninguém agride tanto os Estados Unidos como os próprios Estados Unidos.” Nelson Rodrigues, O Globo, Jornal da Tarde. Citação na página 53 da Veja número 9, de 6 de novembro de 1968.
Eis um ponto aonde queria chegar. Cresci ouvindo esta frase numa versão em que o narcisista às avessas era o brasileiro. Acho que o dramaturgo era original o bastante para não repetir a mesma ideia, trocando apenas o país. Será? Enfim. Do Brasil, ele já falou tanto, como quando disse que na década de 50 os brasileiros se sentiam como um vira-lata no futebol, deixando escorrer a baba bovina, humilhados e cabisbaixos, ou algo assim.
Mas, voltando a Miller e Mailer, segue abaixo um trecho do diálogo que fez os editores colocarem a epígrafe rodriguiana. É uma delícia de diálogo, que parece datado, que parece triste, melancólico, corrosivo demais, mas, ao mesmo tempo, tão atual, tão inquietantemente questionador, desenhando uma imagem tão repulsiva dos Estados Unidos, que nos força a dar um riso nervoso e pensar: 'Isso aqui se parece com todos nós, se parece com a sociedade de consumo atual daqui e de qualquer lugar.'
Henry Miller: Você sabe, Norman, escrevi ‘Pesadelo Refrigerado’ porque eu estava querendo muito uma reconciliação com minha terra natal. Era o lar, com todas as associações que essa palavra feia, má e até mesmo sinistra pode ter para uma alma irrequieta como a minha. Mas o que vi foram apenas rastos confusos da criação de monstros pré e sub-humanos, possuídos do delírio da cobiça. Tudo negativo, nada ávido de grandeza.
Norman Mailer: É o que digo, meu velho. Você se rebelou como os jovens da nova esquerda de hoje nos EUA. A autoridade atuava nos cérebros de vocês com os ‘comerciais’ e lavara-os com uma educação condicionada, uma política condicionada. A autoridade apresentara-se como honrada e era corrupta, corrupta como as falsas ideias e a falsa moral. (...) Cada um começava a pressentir intimamente os escândalos que podiam ser apontados em todos os produtos, em todos os produtos de todos os lares suburbanos, que funcionavam tão bem e enguiçavam por motivos misteriosos. A impostura estava enterrada em cada embalagem, enterrada algures nas raízes indevassáveis de todas essas modernas fábricas, com seus pavilhões higienizados e suas máquinas automatizadas. A autoridade mentia pela boca dos dirigentes das grandes companhias e dos altos funcionários do Governo, dos oficiais da polícia...
HM: Pois é, um mundo feito para monomaníacos obcecados com a ideia do progresso. Mas é um progresso falso, errado, desagradável. É uma terra cheia de objetos inúteis e ensinaram homens e mulheres a considerá-los úteis, a fim de serem explorados e degradados. O sonhador, cujos sonhos nada têm de útil, não pertence a esta terra. Tudo que não serve para ser comprado ou vendido, quer se trate de objetos, ideias, princípios ou esperanças, não tem utilidade nesta terra. Nela o poeta é amaldiçoado, o filósofo um idiota, o artista um apátrida, o homem de visão um criminoso.
NM: De acordo. Se for possível encontrar a irremediável loucura da América será naqueles rostos que, ao apagar dos projetores sobre o último páreo, acodem aos guichês de aposta, lívidos sob a luz néon, ou naquelas olheiras fundas, sem alma, das madrugadas de lugares como Las Vegas, onde as febres da América incendeiam a noite, e a Vovó, a devota Vovó, cabelos alaranjados, livro de bolso aberto, se debruça avidamente para a máquina caça-níqueis. ‘Madame’, lhe dizem, ‘eles estão queimando crianças no Vietnam.’ E ela responde: ‘Rapaz, dê o fora, a vovó vai receber uma bolada aqui no mealheiro’. (...) Las Vegas é um lugar tão emocionante!
E Jabor
O trecho demonstra a inteligência instigante de duas pessoas que sabem conversar, acima de tudo, e que sabem debater sobre aquilo que lhes inquietam.
A mis-en-scène ensaiada por Mailer no final do trecho sugere que Arnaldo Jabor sofreu grande influência desses livres-pensadores dos Estados Unidos. Aliás, nesse post está tudo que Jabor adorava: Nelson Rodrigues e o jeito de pensar yankee, que foi, sem dúvida, a formação desse cronista imagético e irrequieto. Gostemos dele ou não.