Há quase um mês estou em Goiânia, vendo o nascer do sol, vermelho e tranquilo, todas as manhãs. Não me lembro quantas vezes tive a oportunidade de assistir a tal espetáculo em São Paulo, cidade que me ofereceu todas as oportunidades, menos esta.
Mas nem o pôr do sol, nem as estrelas no baixo céu da Goiânia noturna, nem o vento de meia estação nesta época do ano me oferecem o prazer das palavras pronunciadas no silêncio da minha voz interior.
Longe dos meus livros, por causa desta mudança, estou distante de uma parte importante de mim mesmo, que me acompanha há um bom tempo. Para não dizer que estou desamparado, trouxe comigo uns dez títulos, entre eles Nunca o nome do menino, de Estevão Azevedo, Flores azuis, de Carola Saavedra e Abismo poente, de Whisner Fraga, que já resenhei neste blog (blog meu, existe alguém mais triste do que eu?).
É bom rever passagens de livros já lidos, acompanhar trechos quando se escreve um texto. Gosto, por exemplo, do primeiro parágrafo de Ana Karenina, de Tolstoi, em que o narrador diz que famílias felizes são felizes do mesmo jeito. Mas as famílias infelizes são infelizes cada uma a seu modo. Mas Tolstoi, claro, escreve melhor.
Essa frase em Ana Karenina me vem à mente, por exemplo, quando leio Milton Hatoum. Ou não seriam feitas dessa exclusividade de dor as tragédias que rondam e vencem as famílias dos livros dele? Dois irmãos mostra uma dor a seu modo, Cinzas do Norte, outra, e Órfãos do Eldorado, outra. Relatos de um certo Oriente é um retalho dolorido de lembranças, aquele mar partido ao meio por penínsulas de felicidade.
Entre meus livros distantes está um que vinha lendo com frequência, Cavalos do amanhecer, do uruguaio Mario Arregui. São vários contos gauchescos, traduzidos pelo gaúcho Sérgio Faraco. Um livrinho fino de grande importância para os amantes da boa literatura.
O conto do título faz uma releitura de Odisseia e traz um Ulisses absolutamente acovardado, cansado de guerra. A ambientação e o conflito são por ocasião da guerra entre blancos e colorados, no Uruguai. Mas o arquétipo é um resgate das personagens de Homero, que já vimos em várias outras literaturas, como em James Joyce, Nathaniel Hawthorne e até Dalton Trevisan.
Martiniano Rios é o Ulisses dos pampas no conto Cavalos do amanhecer. Já havia lutado em várias contendas, mas queria ficar em paz, curtindo a mulher, o filho e o cachorro.
Eis que numa madrugada atroz, o cachorro levanta a orelha para o que viria a ser o trote de cavalos se aproximando, e Martiniano Rios resolve então deixar a família em casa e se esconder na cisterna, imaginando que a tropa não o convocaria para mais uma guerra e o deixaria em paz.
Passado muito tempo, nosso herói sai do poço e encontra a desolação. O cachorro morto, a mulher estuprada e o menino castrado. O narrador é implacável com as palavras usadas para retratar a violência. Diz que Rios logo percebeu que muitos tinham entrado e saído de sua mulher. Os termos não são exatamente estes, já que estou sem meus livros. Mas é próximo disso.
O que vale a leitura, no entanto, não é a violência verbalizada. É o tratamento dado ao tema, o ritmo da narrativa e as palavras empregadas para desenhar cada passo rumo à desgraça total de Martiniano Rios e sua família.
Mas nem o pôr do sol, nem as estrelas no baixo céu da Goiânia noturna, nem o vento de meia estação nesta época do ano me oferecem o prazer das palavras pronunciadas no silêncio da minha voz interior.
Longe dos meus livros, por causa desta mudança, estou distante de uma parte importante de mim mesmo, que me acompanha há um bom tempo. Para não dizer que estou desamparado, trouxe comigo uns dez títulos, entre eles Nunca o nome do menino, de Estevão Azevedo, Flores azuis, de Carola Saavedra e Abismo poente, de Whisner Fraga, que já resenhei neste blog (blog meu, existe alguém mais triste do que eu?).
É bom rever passagens de livros já lidos, acompanhar trechos quando se escreve um texto. Gosto, por exemplo, do primeiro parágrafo de Ana Karenina, de Tolstoi, em que o narrador diz que famílias felizes são felizes do mesmo jeito. Mas as famílias infelizes são infelizes cada uma a seu modo. Mas Tolstoi, claro, escreve melhor.
Essa frase em Ana Karenina me vem à mente, por exemplo, quando leio Milton Hatoum. Ou não seriam feitas dessa exclusividade de dor as tragédias que rondam e vencem as famílias dos livros dele? Dois irmãos mostra uma dor a seu modo, Cinzas do Norte, outra, e Órfãos do Eldorado, outra. Relatos de um certo Oriente é um retalho dolorido de lembranças, aquele mar partido ao meio por penínsulas de felicidade.
Entre meus livros distantes está um que vinha lendo com frequência, Cavalos do amanhecer, do uruguaio Mario Arregui. São vários contos gauchescos, traduzidos pelo gaúcho Sérgio Faraco. Um livrinho fino de grande importância para os amantes da boa literatura.
O conto do título faz uma releitura de Odisseia e traz um Ulisses absolutamente acovardado, cansado de guerra. A ambientação e o conflito são por ocasião da guerra entre blancos e colorados, no Uruguai. Mas o arquétipo é um resgate das personagens de Homero, que já vimos em várias outras literaturas, como em James Joyce, Nathaniel Hawthorne e até Dalton Trevisan.
Martiniano Rios é o Ulisses dos pampas no conto Cavalos do amanhecer. Já havia lutado em várias contendas, mas queria ficar em paz, curtindo a mulher, o filho e o cachorro.
Eis que numa madrugada atroz, o cachorro levanta a orelha para o que viria a ser o trote de cavalos se aproximando, e Martiniano Rios resolve então deixar a família em casa e se esconder na cisterna, imaginando que a tropa não o convocaria para mais uma guerra e o deixaria em paz.
Passado muito tempo, nosso herói sai do poço e encontra a desolação. O cachorro morto, a mulher estuprada e o menino castrado. O narrador é implacável com as palavras usadas para retratar a violência. Diz que Rios logo percebeu que muitos tinham entrado e saído de sua mulher. Os termos não são exatamente estes, já que estou sem meus livros. Mas é próximo disso.
O que vale a leitura, no entanto, não é a violência verbalizada. É o tratamento dado ao tema, o ritmo da narrativa e as palavras empregadas para desenhar cada passo rumo à desgraça total de Martiniano Rios e sua família.
Neste livro de Arregui, há também Lua de outubro, que virou filme. É de fato uma belíssima seleção de contos desse tão pouco conhecido escritor uruguaio. Enquanto meus livros não vêm, relembro e seleciono as coisas boas de ler. Releio na memória, sem o mesmo verde do registro original. Mas vale.
2 comentários:
Então está orfão dos seus livros? Posso entender o sentimento...
Bom fim de semana.
Abraço
Obrigado, Leila!
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