A literatura pode, sim, contribuir para a autocrítica e a reflexão social, sem nenhum prejuízo à sua qualidade estética. Um exemplo é o primeiro livro de Marcelo Ferroni (35 anos), membro dessa novíssima geração de escritores brasileiros, uma safra que promete revelar grandes autores.
Em Dia dos Mortos (Editora Globo, 2004, 150 páginas), vemos por meio de nove contos o esgotamento dos nervos e do afeto da sociedade urbana contemporânea. À exceção de uma delas, todas as histórias são ambientadas em São Paulo, mas a cidade poderia ser o Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, não importa. O que o autor consegue imprimir é quase que universal: relacionamentos frustrados, tentativas malogradas de encontrar o outro, e muito, mas, muito ódio à diferença.
No primeiro conto, intitulado, Os últimos dias de Pompeia, o Narrador-personagem é um rapaz, oriundo da classe média, preconceituoso e individualista, que percorre as ruas da Zona Oeste paulistana, como a Turiassu e a Caraíbas, para ir jantar com a namorada Giselle em algum restaurante de Perdizes (bairro próximo ao de Pompeia, aludido no título, que também faz uma referência à cidade romana varrida do mapa pela erupção do Vesúvio, em 79 d.C.).
Enquanto dirige, o que ele sabe fazer é resmungar e proferir xingamentos contra negros e nordestinos, sentindo-se incomodado pelo trânsito infernal da cidade, no momento em que acaba um jogo do Palmeiras, no Parque Antártica.
“Nem devia ter me enfiado em noite de jogo. Na minha frente, um Gol com os faróis queimados saiu de ré pela pizzaria quando viu a negrada deixando o estádio”, narra o personagem, que se utiliza de um vasto vocabulário para destilar seu preconceito. Concatena frases como: “Uma turba de maloqueiros passa por nós, espero que não risquem meu carro”; Ou, “olha só aquele negrinho, parece que escapou da Febém.”
Mas não é só nesse conto que lemos frases, quase de ordem, que saem redondas do coração dos personagens. Nem a intolerância parte apenas da classe média. Em Mulher de Cubatão; menina lagarto, a narrativa está em terceira pessoa, mas a situação é semelhante. Um rapaz negro e pobre mantém um caso com sua colega de trabalho, branca, gorda e também pobre. Ou seja, duas figuras-alvo do preconceito.
Neste caso, porém, ela se sente superior, por ser branca, e, com meio sorriso nos lábios, chama seu amante de “meu neguinho subnutrido (...), meu cafezinho com leite (...), meu pardinho, meu docinho de coco queimado”, e o rapaz, embora não gostando, suporta os pseudocarinhos.
Entre os dois aparece o nome de outra moça, branca, rica e bem educada, estagiária da empresa. E aí, a amante não aguenta o desaforo. Chama o rapaz de brocha. Ele também não suporta o insulto e dá-lhe uma porrada de derrubar camelo. A relação acaba ali.
E assim desfila um exército de situações e pessoas raivosas, no desenho de uma cidade onde há conflitos intermináveis, com relações interrompidas pela metade, com o preconceito à flor da pele, contra qualquer minoria sociológica, sejam negros, nordestinos, gordos, pobres, gays, mas, principalmente contra negros.
O fio tênue do equilíbrio
Esse desprezo por qualquer tipo de minoria, presente nos contos de Ferroni, revela uma situação muito próxima de qualquer leitor que mora em São Paulo ou em outra grande cidade. É um dos méritos de Dia dos Mortos.
Quem nunca viu ou ouviu alguém assim, carregado até a tampa de palavrões xenófobos, racistas, desrespeitosos, intolerantes? Quiçá o próprio leitor já não tenha contribuído com sua cota vergonhosa de preconceito? Quem sabe o próprio autor deste blog, mesmo sendo minoria também, e sentindo uma profunda comoção pelas minorias?
Além desses recortes do cotidiano da metrópole – uma cidade viva, pulsante, em que sobressai um cenário de desencanto e tentativas fracassadas, uma cidade em que o fio tênue do equilíbrio está sempre prestes a se partir –, outra qualidade do livro é o cuidado à palavra, a palavra burilada, em frases bem construídas, chegando a criar uma esfera ressonante.
Dia dos Mortos também se diferencia de outras narrativas pela ausência de protagonistas mocinhos, ou que pelo menos cause no leitor certa simpatia. Essa é uma forte característica do livro. Tampouco há anti-heróis.
A tensão é construída exatamente nas ações dos antagonistas, que comandam a teia central de todos os contos. Os personagens principais não demonstram capacidade verdadeira de afeto ou compreensão. São capazes apenas de destilar veneno contra o outro e reclamar da sorte.
Dignos de nota
Dois contos se sobressaem. Um deles é o já referido Os últimos dias de Pompeia, em que o Narrador-personagem desfere ferozes golpes verbais contra as pessoas e a cidade, chegando a dizer: “Não me esqueço do que meu avô disse uma vez: por ele, soltava uma bomba de nêutrons em São Paulo. Eu topo dizimar todo mundo para andar de carro em paz.”
Mas esse narrador, ao mostrar o mal maior da capital paulista, o ponto fraco dos nervos paulistanos, fazendo da cidade um encontro de repulsas, ele mesmo não vale muita coisa, ele mesmo, no íntimo da sua consciência, sabe que é desprezível.
Sua namorada o larga no restaurante e, na sua frente, começa um novo relacionamento. Tudo que ele consegue fazer é ir embora, disfarçando a humilhação, covardemente. Não bateu, não enfrentou ninguém, não por ser um gentleman, mas por absoluta pusilanimidade.
Sua malha de neurônios faz de seus sentimentos e de seus pensamentos uma cidade venenosa, passível de aniquilação. E por isso ele diz a si mesmo: “Talvez eu deva engolir uma bomba de nêutrons.” A cidade está dentro dele.
Outro conto digno de nota é Angélica e irmãs, ambientado fora de São Paulo, numa cidadezinha interiorana chamada Montes Altos (imaginária, já que a real se chama Monte Alto), emplacando o conflito entre rapaz do interior e rapaz da metrópole.
A melhor abertura de narrativa está ali, num conto que pode ser considerado policial. “Se Murilo Toneleiro morrer nas tardes quentes desse mês de novembro, aposto que algum parente sabe-tudo, misterioso, dirá com as sobrancelhas arqueadas que era até possível notar, pelos olhos tristes do rapaz, que o seu destino trágico estava definido.” É assim que começa.
O narrador parte de um crime cometido, uma situação dada, para contar como ela se desenrolou. O conflito continua sendo entre duas pessoas, mas entra aí outra variante, a que existe entre interioranos e metropolitanos.
Quem vem para a cidade grande é tratado com desdém. Quem vai para o interior é tratado com desconfiança. Neste caso, o embate nasce entre os dois, por causa de uma mulher, e o resultado é a violência, sem que Murilo Toneleiro saiba de alguma coisa.
Lapsos
Marcelo Ferroni, nascido em São Paulo, em 1974, é jornalista, tendo boa experiência nas redações da grande imprensa, como a Folha de S. Paulo. Mas também já trabalhou com a edição de livros, na Editora Globo, a casa que publicou Dia dos mortos, quando ele tinha 30 anos de idade.
Foi justamente por causa de seu livro, aprovado imediatamente pela editora, que ele foi chamado para trabalhar lá. Hoje está na Rádio CBN e divide seu amor à literatura pelo jornalismo esportivo, inclusive narrando partidas de futebol. Talvez por isso, ainda não tenha aparecido com outra publicação.
Dia dos Mortos, que também é título de um conto, é seu primeiro livro, mas já tem uma narrativa invulgar, sem dúvida. Embora não escape de certos defeitos, como trazer alguns estereótipos, chavões, para identificar pobres.
Um dos personagens, por exemplo, ouve um “jato d’água no copo de requeijão.” Isso não dá mais para iconizar, representar nada, desde que surgiram no mercado as lojas de 1,99. Copo de requeijão virou eco de clichê.
O último conto, As dores da princesa, também nos deixa a impressão de que foi escrito às pressas para completar o número de histórias, apesar do elogio de Moacyr Scliar, que é quem assina a orelha do livro.
Mas, no fim das contas, por tudo que foi dito, é um livro com muitas qualidades. É para todos, principalmente para quem quer refletir sobre os sentimentos raivosos que cada vez mais tomam conta das pessoas nas grandes cidades.
2 comentários:
Anotado aqui, vou ler assim que der. Infelizmente eu não conhecia o autor...agora conheço, graças a você.
Abraço
Obrigado, Leila! A ideia é escrever sobre uns trinta autores da novíssima geração, escritores nascidos de 1970 para cá.
O caso de Marcelo Ferroni é interessante porque ele também é narrador de futebol na CBN. Dois tipos de narrativas que não se cruzam muito bem, né (rs). O ouvinte dele pode nunca saber que poderia ser seu leitor, e o contrário também pode acontecer.
Um abraço!
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