O poeta curitibano Paulo Leminski escreveu uma das melhores introduções de livros que já li. O seu pequenino e delicioso Cruz e Sousa – o negro branco começa assim:
“‘O Setor de Pessoal da Estrada de Ferro Central do Brasil vem, por meio desta, denunciar à Diretoria desta Empresa, que foi encontrado em poder de João da Cruz e Sousa, negro, natural de Sta. Catarina, um poema de sua lavra, com o seguinte teor:
Tu és o louco da imortal loucura.
O louco da loucura mais suprema,
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.
Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
Pedem-se providências’.
Este livro é uma providência.”
De ironia e anagramas
O livro de Leminski é uma providência contra a parvoíce. É claro que o que se pedia, pedia-se não por causa da falta do que fazer do poeta, a ponto de escrever um poema na hora do trabalho. Era pelo tema, o teor da poesia. Um negro fazendo versos sobre a loucura deveria ser um perigo iminente na cabecinha dos burocratas de coração de aço.
Cruz e Sousa – o negro branco só tem uma edição, que é de 1983 (Brasiliense, coleção Encanto Radical), mas em 2003 teve uma reimpressão. São 13 capítulos distribuídos em 80 páginas, em que o autor, brincando com as palavras, cria um perfil do poeta negro catarinense.
No primeiro parágrafo, já temos uma dimensão do que encontraremos no livreto, em que o autor define a vida de Cruz e Sousa como um oxímoro, figura de retórica que exprime a ironia.
É irônico, por exemplo, o fato de ser o poeta catarinense negro retinto, nascido num período escravagista, receber a melhor educação que se podia ter no Brasil da época e dominar a arte poética branca, dos franceses, alemães, ingleses, cantando sua condição de negro. Além disso, enquanto sobrevivia na miséria, sob o olhar atravessado dos outros, cultivava o espírito nas alturas.
Outra ironia Leminski demonstra sem denominá-la como tal: “Não deixa de haver muito mistério no fenômeno de serem negros, oriundos da raça-mão-de-obra, o maior prosador da literatura brasileira, Machado de Assis, e, sob certos aspectos, nosso mais fundo e intenso poeta.”
É irônica essa realidade, em se tratando de um país cuja sociedade – ignorantes e letrados – finge, em sua maioria, não haver racismo e, principalmente a elite, trata a questão como o mais sincero dos cínicos.
Para Leminski, Cruz e Sousa, com sua dolorida experiência de vida, e a genialidade sensível, poderia ter criado o blues, se tivesse nascido nos Estados Unidos, junto àquela tradição. No Brasil, só pôde fazer uso da palavra “para construir a expressão da sua pena”.
Veja como Leminski lapida num só vocábulo (pena) pelo menos três significados que se encaixam perfeitamente na alma e na vida de Cruz e Sousa: instrumento usado para escrever seus versos; condenação (e aí pode significar condenado à poesia, ao racismo, à exclusão); aflição, dor, agente da tristeza sentida pelo poeta.
O mais interessante desse livrinho, no entanto, está no ensinamento de Leminski de como ler Cruz e Sousa. Segundo ele, “a figura prevalente, na poesia de Cruz e Sousa, não é a aliteração, nem a harmonia imitativa, onomatopeia dos sentimentos, nem a ecolalia, mas o anagrama.”
O anagrama é a palavra dentro da palavra. Conforme explica Leminski, Cruz e Sousa compunha “vendo, na luz de uma palavra, a outra luz de outra palavra.” E nos dá dois exemplos significativos:
“Rio de esquecimento tenebroso,
Amargamente frio,
Amargamente sepulcral, lutuoso,
Amargamente rio!”
[Esquecimento]
“Alma sem rumo, a modorrar de sono,
Mole, túrbida, lassa ...
Monotonias lúbricas de um mono
Dançando numa praça ...”
[Tédio]
No primeiro caso, “quem vai poder dizer se este ‘rio’ é o aquático substantivo ou a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo rir?”, pergunta Leminski, para depois completar: “As palavras naufragaram dentro das palavras (naugrafaram), passando por esse rio, que corre por dentro da palavra F-rio.”
No segundo caso, também vemos o mesmo procedimento, com a ‘raça’ dançando na P-raça.
É uma leitura semiótica, sem dúvida, de quem vê a poesia como detentora de uma gramática sígnica. Os principais influentes dessa corrente de leitores semióticos da poesia, no Brasil, são os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, junto com Décio Pignatari e seguidores, principalmente os oriundos da PUC de São Paulo e do Rio, pelo menos. O que não é demérito. É qualidade.
Leminski fazia parte dessa turma. Claro que nem sua poesia nem a sousiana oferecem apenas essa face de leitura. Mas, para quem gosta de ambos, seguindo essas pegadas, poderá receber na mente uma explosão de sentidos.
Ler é reler
No final do livro, vemos ainda uma fusão Leminski e Sousa, na fiel tradição antropofágica, em que o poeta curitibano mostra saber que eu, o leitor, aprovaria seu livreto feito para quem começa na poesia. Mas não podemos nos esquecer de que a poesia é sempre um recomeço.
“Perfeição só existe na integração/dissolução do sujeito no objeto”, ensina Leminski.
“Na tradução do eu no outro.
É por isso que você gostou tanto deste livro.
Você, agora, sabe. Você, eu sou Cruz e Sousa.”
2 comentários:
Bom Dia, eu lendo este resumo, eu terei uma boa idéia do livro ? Pois ele é uma obra para o vestibular, mas nao consigo na internet pra baixar, e pra comprar demora mto a chegar, vocÊ acha que essa síntese sua é completa ? Obrigado pela atenção. Aguardo ansioso um retorno!
Oi, Robson! Infelizmente não sei o que você entende por boa ideia do livro, portanto, não posso responder. O que posso te dizer é que passei para esse texto a ideia que eu apreendi do livro de Leminski. Mas também não o fiz pensando no vestibular, nem pensando em dar a alguém um resumo. Eu o fiz com o objetivo de sugerir uma leitura. Eis a minha sugestão para quem esteja estudando para o vestibular e tem este livro como leitura obrigatória: nestes casos, a melhor sugestão é a leitura própria do livro. Agradeço sua visita ao meu blog, mas para qualquer leitor que o acesse, devo dizer que todos os meus textos são sugestões (acertadas ou equivocadas), um exercício, jamais o extrato, o esqueleto (às vezes trechos). É sempre uma leitura, um recorte(nada impede que você se oriente por ela, mas deve fazê-lo conscientemente). Um abraço e boa sorte!
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