O segundo livro do paulista Tiago Novaes, Estado vegetativo (Callis, 2007, 260 páginas), mesmo apresentando altos e baixos, é recomendável, principalmente porque, além de criar efeitos inteligentes, tem um estilo agradável.
Trata-se de um romance policial, que às vezes descamba para uma interminável apreciação do gênero, metacrítica, mas que traz grande qualidade na proposta estética e no conteúdo inusitado, incluindo Novaes (30 anos) entre os talentosos escritores dessa novíssima geração.
Narrado em primeira pessoa pelo detetive Guedes, que, em resumo, conta como e o que aconteceu na investigação que fazia sobre uma série de assassinatos de escritores de romance policial, Estado vegetativo também faz uma leitura da cidade de São Paulo.
O livro é dividido em três partes. A primeira tem uma pegada filosófica, é intelectualizada e cheia de aforismos, em meio a retalhos de mil citações. É a mais cativante, porque parece mais ágil e com um cálculo acertado do efeito que prende o leitor.
Mas não é só isso. Guedes diz narrar sua história de um leito de hospital, em coma. “Do leito do hospital, onde vegeto. Será que se me enfiarem numa máquina de lavar, eu vou perceber alguma coisa?”
“Será que escuto um grito no ouvido? Se algum tarado me violar, sentirei dor? Se uma gueixa me massagear, se um padre me excomungar, se meus defuntos antepassados me puxarem os pés, se derrubarem um cofre na minha cabeça, se cantarem a nona de Beethoven, se uma namorada de infância empapar meu pijama de lágrimas e preces – se tudo isso junto estiver ocorrendo do lado de fora, do meu lado, dentro do quarto, poderei reagir? Serei ainda este objeto quase inanimado, este corpo horizontalmente trágico?”
Ou seja, sua narrativa não é um registro, é uma divagação no plano da consciência, cujo contato com o leitor sugere um mistério insolúvel, já que a linguagem, neste caso, está levitando em outra dimensão, encontra-se apenas na cabeça de um homem completamente incomunicável.
Escrutínio da consciência
É mais um fio que se desprende do pavio joyciano. A diferença aqui é que, enquanto o fluxo de consciência de Joyce se dá a partir do registro da palavra, presumindo um narrador que escreve linha por linha, o detetive Guedes elabora tudo em mente isolada das demais, sem nunca estabelecer uma ligação física.
É algo semelhante ao que acontece com o personagem de Jorge Luis Borges, em O milagre secreto, segundo lembra Manuel da Costa Pinto, que escreveu a orelha do livro. “Tiago Novaes recria em chave policialesca – e borgeana – essa eternidade em que a narrativa é ‘a única coisa que restou.’”
Esse jogo labiríntico, em que o autor (Novaes) brinca com a linguagem, é interessante. O leitor tem diante de seus olhos um vaivém entre a narração do fato policial e as ruminações vegetativas do homem preso a um leito de hospital, completamente imóvel, existindo apenas pelo fio da consciência trabalhando.
Neste caso, Novaes, que é psicanalista, se vale muito de seu saber de investigador da alma humana para construir os atributos intelectuais e a agudeza de espírito criativo – e as neuroses que nascem do estado vegetativo – de seu personagem principal.
Se por um lado, o leitor pode seguir as pegadas do romance policial, se deixando levar pelas pistas falsas para recuperar o sentido da trama logo adiante, seguindo os fatos concretos da narrativa, os diálogos, os nomes de ruas e lugares, por outro, o leitor pode se enveredar pela filosofia da linguagem.
A casa do ser
Guedes é um detetive que investiga não só os homens, mas também a alma, a sua própria. É um detetive que cita Heidegger, e é nesta proposta, que mistura especulação filosófica e literatura ensaística, em que se insere o fulcro da narrativa. Segundo o filósofo alemão, a linguagem é a casa do ser, mas quem mora nela é o homem, e os guardiões dessa casa são filósofos e poetas.
Ser e homem são duas coisas distintas. De acordo com este conceito heideggeriano, o ser não está na linguagem, está atrás dela, num plano metafísico, como um deus. O homem é que está na linguagem.
Mas, no caso de Guedes, em coma, o homem praticamente não existe. É como se o ser voltasse à casa após despejar seu inquilino. E aí, tudo é possível. Tudo que ele diz é fruto de sua imaginação, sai de um exercício de linguagem. É nesse exercício que o leitor tem de estar atento para não se perder, pois o romance é um amálgama de coisas mostradas à meia luz.
Investigação e a leitura de São Paulo
Como sempre o leitor, desconfiado, segue as palavras do narrador. Auxiliado por Gregório, um misterioso garoto de 19 anos, que lê à exaustão a literatura policial, Guedes a princípio trabalha com investigação de casos conjugais até aparecer uma mulher chamada Veronica Drake que o contrata para solucionar a morte de um colega, e logo depois o detetive se vê às voltas de um assassinato em série.
Estado vegetativo é um romance cheio de humor e ironia, nem sempre explícito, muitas vezes saem tacitamente pelos poros das frases. Na primeira parte, Guedes é mais engraçado e está sempre em situações cômicas. “Talvez a única coisa que ainda leve a sério neste mundo seja um bom prato.” Gordo, pesa 180 quilos e chega a 200, quando em coma. Ainda não é sombrio como se tornará nas duas partes seguintes.
No entrecorte de diálogos introspectivos, entre outras intersecções, há uma visível homenagem à velha São Paulo. Guedes mora no Brás. Mas seu escritório fica próximo à Praça da Sé, talvez na Paranapiacaba, rua imortalizada na literatura por um conto de João Antônio.
Nessa narrativa, há um traçado geográfico que abarca os monumentos arquitetônicos e paisagísticos do centro expandido da capital paulista, por onde Guedes flana, avenida Paulista, vale do Anhangabaú, viaduto do Chá, calçadão da Ipiranga, Copan (o enorme prédio em forma de S), Nove de Julho, rua Paim.
Entre os nomes fictícios de estabelecimentos, aparece a real Livraria da Vila, onde os escritores assassinados se encontravam para fazer lançamentos. A verdade é que, no romance, o nome da Livraria da Vila aparece mais do que o do Itaú em novela das oito.
Trata-se de um romance policial, que às vezes descamba para uma interminável apreciação do gênero, metacrítica, mas que traz grande qualidade na proposta estética e no conteúdo inusitado, incluindo Novaes (30 anos) entre os talentosos escritores dessa novíssima geração.
Narrado em primeira pessoa pelo detetive Guedes, que, em resumo, conta como e o que aconteceu na investigação que fazia sobre uma série de assassinatos de escritores de romance policial, Estado vegetativo também faz uma leitura da cidade de São Paulo.
O livro é dividido em três partes. A primeira tem uma pegada filosófica, é intelectualizada e cheia de aforismos, em meio a retalhos de mil citações. É a mais cativante, porque parece mais ágil e com um cálculo acertado do efeito que prende o leitor.
Mas não é só isso. Guedes diz narrar sua história de um leito de hospital, em coma. “Do leito do hospital, onde vegeto. Será que se me enfiarem numa máquina de lavar, eu vou perceber alguma coisa?”
“Será que escuto um grito no ouvido? Se algum tarado me violar, sentirei dor? Se uma gueixa me massagear, se um padre me excomungar, se meus defuntos antepassados me puxarem os pés, se derrubarem um cofre na minha cabeça, se cantarem a nona de Beethoven, se uma namorada de infância empapar meu pijama de lágrimas e preces – se tudo isso junto estiver ocorrendo do lado de fora, do meu lado, dentro do quarto, poderei reagir? Serei ainda este objeto quase inanimado, este corpo horizontalmente trágico?”
Ou seja, sua narrativa não é um registro, é uma divagação no plano da consciência, cujo contato com o leitor sugere um mistério insolúvel, já que a linguagem, neste caso, está levitando em outra dimensão, encontra-se apenas na cabeça de um homem completamente incomunicável.
Escrutínio da consciência
É mais um fio que se desprende do pavio joyciano. A diferença aqui é que, enquanto o fluxo de consciência de Joyce se dá a partir do registro da palavra, presumindo um narrador que escreve linha por linha, o detetive Guedes elabora tudo em mente isolada das demais, sem nunca estabelecer uma ligação física.
É algo semelhante ao que acontece com o personagem de Jorge Luis Borges, em O milagre secreto, segundo lembra Manuel da Costa Pinto, que escreveu a orelha do livro. “Tiago Novaes recria em chave policialesca – e borgeana – essa eternidade em que a narrativa é ‘a única coisa que restou.’”
Esse jogo labiríntico, em que o autor (Novaes) brinca com a linguagem, é interessante. O leitor tem diante de seus olhos um vaivém entre a narração do fato policial e as ruminações vegetativas do homem preso a um leito de hospital, completamente imóvel, existindo apenas pelo fio da consciência trabalhando.
Neste caso, Novaes, que é psicanalista, se vale muito de seu saber de investigador da alma humana para construir os atributos intelectuais e a agudeza de espírito criativo – e as neuroses que nascem do estado vegetativo – de seu personagem principal.
Se por um lado, o leitor pode seguir as pegadas do romance policial, se deixando levar pelas pistas falsas para recuperar o sentido da trama logo adiante, seguindo os fatos concretos da narrativa, os diálogos, os nomes de ruas e lugares, por outro, o leitor pode se enveredar pela filosofia da linguagem.
A casa do ser
Guedes é um detetive que investiga não só os homens, mas também a alma, a sua própria. É um detetive que cita Heidegger, e é nesta proposta, que mistura especulação filosófica e literatura ensaística, em que se insere o fulcro da narrativa. Segundo o filósofo alemão, a linguagem é a casa do ser, mas quem mora nela é o homem, e os guardiões dessa casa são filósofos e poetas.
Ser e homem são duas coisas distintas. De acordo com este conceito heideggeriano, o ser não está na linguagem, está atrás dela, num plano metafísico, como um deus. O homem é que está na linguagem.
Mas, no caso de Guedes, em coma, o homem praticamente não existe. É como se o ser voltasse à casa após despejar seu inquilino. E aí, tudo é possível. Tudo que ele diz é fruto de sua imaginação, sai de um exercício de linguagem. É nesse exercício que o leitor tem de estar atento para não se perder, pois o romance é um amálgama de coisas mostradas à meia luz.
Investigação e a leitura de São Paulo
Como sempre o leitor, desconfiado, segue as palavras do narrador. Auxiliado por Gregório, um misterioso garoto de 19 anos, que lê à exaustão a literatura policial, Guedes a princípio trabalha com investigação de casos conjugais até aparecer uma mulher chamada Veronica Drake que o contrata para solucionar a morte de um colega, e logo depois o detetive se vê às voltas de um assassinato em série.
Estado vegetativo é um romance cheio de humor e ironia, nem sempre explícito, muitas vezes saem tacitamente pelos poros das frases. Na primeira parte, Guedes é mais engraçado e está sempre em situações cômicas. “Talvez a única coisa que ainda leve a sério neste mundo seja um bom prato.” Gordo, pesa 180 quilos e chega a 200, quando em coma. Ainda não é sombrio como se tornará nas duas partes seguintes.
No entrecorte de diálogos introspectivos, entre outras intersecções, há uma visível homenagem à velha São Paulo. Guedes mora no Brás. Mas seu escritório fica próximo à Praça da Sé, talvez na Paranapiacaba, rua imortalizada na literatura por um conto de João Antônio.
Nessa narrativa, há um traçado geográfico que abarca os monumentos arquitetônicos e paisagísticos do centro expandido da capital paulista, por onde Guedes flana, avenida Paulista, vale do Anhangabaú, viaduto do Chá, calçadão da Ipiranga, Copan (o enorme prédio em forma de S), Nove de Julho, rua Paim.
Entre os nomes fictícios de estabelecimentos, aparece a real Livraria da Vila, onde os escritores assassinados se encontravam para fazer lançamentos. A verdade é que, no romance, o nome da Livraria da Vila aparece mais do que o do Itaú em novela das oito.
Mas tirando esse indício de marketing na trama e o diálogo sobre literatura policial, que às vezes soa didático e juvenil, Estado vegetativo agrada, principalmente porque o leitor entra em contanto com a escrita de um autor de fina inteligência.
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