quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

The Witcher – entre Game of Thrones e o fracasso

Yennefer de Vengerberg, Geralt de Rívia e Cirilla, a trindade heroica da série, cada um com seu conjunto de atributos conflitantes, que na segunda temporada deve mostrar mais a que veio, caso contrário, a série não decolará

Se a Netflix apostou nos Fandoms dos livros e do game The witcher – criação literária do polonês Andrzej Sapkowski – para o sucesso da série homônima lançada no final de 2019, pode ser que dê certo. São milhões de apreciadores da narrativa que conta a saga do renegado bruxo mercenário Geralt de Rívia rumo ao seu destino, a saber, proteger uma princesa (que tem poderes ocultos) de 12 anos.

Mas cada formato tem suas peculiaridades. Todo mundo sabe disso. Não há ninguém bobo numa produção de US$ 80 milhões. The witcher chegou ao serviço de streaming com grande expectativa, com muita jogada de marketing, alguns jornalistas dizendo inclusive que veio para ocupar o lugar de Game of thrones, mas a realidade é mais complicada. 

Não é a primeira vez que a Netflix inventa de concorrer com o megablockbuster da HBO, cuja última temporada foi ao ar em 2019. Em dezembro de 2014, com Game of thrones no auge de sua performance, a Netflix lançara Marco Polo, com esse mesmo intuito, fazer frente à poderosa intriga de Westeros. Marco Polo, também superprodução, tinha um roteiro mais bem trabalhado que The witcher, e só durou duas temporadas. 

Os realizadores da nova série querem fazê-la durar até a oitava temporada. Sei não. Muitos elementos contribuem para um possível fracasso. Além de problemas no roteiro (coisa que pode ser consertada a partir do segundo ano), os atores são fracos e os personagens são mal desenvolvidos, principalmente Geralt de Rívia (Henry Cavill). 

A direção não joga com a empatia do público, a fotografia é um permanente déjà vu, e as estratégias de narrativa enrolaram mais a cabeça do espectador do que ajudaram a acompanhar a introdução e o desenvolvimento dos arcos dramáticos.

Para se ter ideia, a confusão do roteiro fez a jornalista do portal UOL Beatriz Amendola, em reportagem esclarecedora em muitos aspectos (22/12/2019), dizer que “a jornada de Geralt de Rívia desenrola-se em paralelo a um grande confronto entre os reinos de Nilfgaard e Cintra”.

Não é bem isso que acontece. Para ser paralelo, deveriam ser duas narrativas. No caso da trama de The witcher, há apenas uma narrativa. O que causa o estranhamento é um imenso flashback que dá início à história, com Geralt de Rívia matando uma quiquimora (com garras de rapina, cabeça meio humana e corpo de aranha), muitos anos antes do nascimento da princesa Cirilla (Freya Allan), o seu destino.

O espectador acompanha Geralt (lê-se Guéralt) em sua sanha de caça ao monstro, matando um aqui outro acolá, inclusive uma princesa amaldiçoada (salvando outra lá na frente, mas tudo antes do nascimento de Cirilla) até o minuto 12 do primeiro episódio, quando entra em cena o tempo presente da narrativa, com Cirilla aos 12 anos, jogando bugalha com seus jovens súditos.

A ruína de Cintra

Este jogo entre presente e passado da narrativa não são eventos paralelos, são eventos de um mesmo tempo, de uma mesma história, que se intercalam para exibir uma trama que não é contada de modo linear.

A primeira sequência do tempo presente mostra o reino de Cintra e sua rainha, Calanthe, arrogante e violenta, avó de Cirilla, e o avanço do reino de Nilfgaard que toma Cintra e mata todo mundo no castelo real, sobrando apenas Cirilla, que foge. Calanthe se mata, mas antes pede para a neta procurar Geralt de Rívia, que é seu destino.

Não há spoiler aqui. O que há, isso, sim, é uma dica para se seguirem as pegadas de um longo flashback com suas reviravoltas. O flashback dura os sete primeiros episódios de uma série de oito, intercalando com o tênue fio do presente. 

Quando se entende isso, segue-se a marcha de Cirilla com clareza. A intercalação do flashback acompanha não só Geralt, mas todos os outros personagens, incluindo uma terceira muito importante na série, a bela Yennefer.

A primeira confusão do roteiro (tentativa de inovação?) se dá justamente com esta sequência da tomada de Cintra, a morte de Calanthe e a fuga de Cirilla, porque faz o espectador achar que este é o Incidente Incitante da série, ou seja, aquele momento em que o herói aceita ir à luta para salvar o mundo.

Mas, neste caso, Cirilla é quem ouve da avó “procura Geralt”, o herói de fato. E ela é a protagonista, não a heroína. O herói é Geralt, que muito antes de Cirilla nascer ouvira de Renfri, a princesa amaldiçoada que ele matou (ou pelo menos cremos assim), a seguinte profecia: “A garota da floresta sempre estará com você. Ela é seu destino.”

O Incidente Incitante, portanto, não é a destruição de Cintra. O espectador vai descobrir mais tarde qual é a importância dessa sequência. Revelar a função desta cena seria, aí, sim, um spoiler imperdoável. 

O Incidente Incitante, na verdade, está escondido no flashback, e aparece no episódio 4, um erro de estratégia narrativa, ao meu ver. Pode dar certo para um romance literário, não para uma série.

Quiromancia, tripas e ritmo

Entre os muitos recursos cênicos da série toda, esse flashback extraordinário que toma sete episódios, intercalando com o presente de Cirilla, há um flashforward dentro do flashback, que ficou esteticamente muito bem feito, uma cena de necromancia. 

Nesse flashforward (um pequeno spoiler, mas que segue a linha de esclarecer o confuso curso da trama), o corpo da rainha Calanthe é encontrado pelos Nilfgaardenses, e um homem corta um pedaço do braço da rainha morta e come. 

Em seguida, Fringilla, feiticeira oficial de Nilfgaard, enfia um punhal no ventre do homem que comeu a carne da rainha e lhe estripa. As vísceras caem para frente e o corpo para trás. Fringilla então lê nas tripas do antropófago o paradeiro da princesa Cirilla: “Está na Floresta Brokilon.” 

Esta cena é um acerto narrativo, e há muitas neste sentido. Em alguns momentos, a condução da narrativa segue um ritmo incrível, como uma dança, com cenas, cenário e atuações okay. Mas os erros de estratégia são marcantes porque tiram a paciência do espectador e complicam o sucesso da série. 

Eu nem precisaria dizer, mas devo dizer, que esta é apenas uma leitura, uma análise que pode se mostrar equivocada. Logo, The witcher pode se tornar um sucesso. Mas, se continuar nessa toada, não será, não.

Elementos

Tendo como fulcro a jornada de Geralt e o drama de Cirilla, a trama ocorre num espaço geral chamado Continente, com muitos reinos. Há um embate ideológico, uma polarização entre Norte e Sul. O Sul está sendo dominado por Nilfgaard, que representa um novo tipo de poder. Sua empreitada começa tomando justamente Cintra, que poderia ter tido o auxílio dos magos de Aretusa, mas estes lavaram as mãos.

Quem poderá deter Nilfgaard? Os poderes de Cirilla com a ajuda de Geralt e a feiticeira Yennefer (dissidente da escola de Aretusa, mas que volta para ajudá-los a conter o avanço de Nilfgaard rumo ao Norte)? 

O personagem de Cirilla se desenvolverá (e precisa) muito na segunda temporada, porque na primeira é só uma menina assustada, à deriva, em meio à violência de todo lado.

Geralt é um bruxo mercenário que sai por aí matando monstros por encomenda. Tem uma égua chamada Plotka, com quem conversa. É sério, anda calmamente, fala calmamente. Tem longos cabelos embranquecidos. 

Ele usa uma vestimenta preta, com uma fina armadura de cavaleiro também preta, um colar, com um medalhão, e duas espadas numa aljava. Em seu código de honra, não mata humanos nem dragões, e sabe-se lá mais o que vai dizer que não está disposto a matar. 

Esteticamente, o problema de Geralt é duplo: a atuação de Henry Cavill, que não consegue marcar seus gestos com expressões que gerem empatia (embora diga que bruxos não têm sentimentos), e a própria construção do personagem. 

Por exemplo, há duas informações que deveriam vir no começo, mas só aparecem no último episódio. Quem se encheu da trama antes, nem viu. A primeira é o fato de Geralt ter sido abandonado pela mãe quando criança para ser criado por um bruxo. É um órfão, portanto, que passou poucas e boas (e ali, ele demonstrou que tinha sentimentos).

A segunda é o que sua própria mãe o ensinou, um código de ética cuja máxima é “devemos viver e deixar viver”, aliada a outra, "devemos acreditar em alguma coisa, senão, o caos toma conta do mundo".  O espectador merecia acompanhar Geralt com essas informações desde o primeiro episódio.

Além disso, não rolou química na relação entre Geralt e Yennefer. A parte da fantasia funciona mansamente, com muita citação de monstros e pouca aparição deles. A parte da ação se isola em cenas divididas entre o flashback e o tempo presente, a fuga de Cirilla. 

A parte do drama é quase nula. Não ha eficiência dramática, porque é preciso bons atores diante de uma boa direção. As atrizes que fazem Calanthe (Jodhi May) e Yennefer (Anya Chalotra) são os destaques, e das duas, Jodhi May tem a melhor atuação.

A bela bruxa

Yennefer, ainda como garota da roça, rejeitada pelo pai, corcunda, torta, fazendo sexo com o aprendiz de feiticeiro Istredd, com uma plateia que no final aplaude e desaparece (fenômeno que certamente saiu da cabeça de Istredd – só um homem para ter uma ideia espetaculosa dessas)


Anya Chalotra, porém, se destaca pelo conjunto da obra. É uma belíssima e competente atriz, que até quando está corcunda, com o queixo apontando para uma direção e o pescoço entortado para a outra, é linda, com olhos expressivos, um olhar triste e pungente, uma postura cautelosa de gato escaldado. 

Quando garota, feia, pobre, corcunda, rejeitada pelo pai, Yennefer é comprada por uma ninharia por Tissaia de Vries, reitora de Aretusa. Há uma cena em que ela, ainda toda torta, faz sexo com Istredd, um dos jovens aprendizes, com um monte de gente assistindo. Seu corpo, mesmo giboso, é de tirar o fôlego. Quando eles gozam, todos aplaudem e desaparecem.

Mais tarde, ela se tornará a toda poderosa Yennefer de Vengerberg, senhora do caos, possuidora de uma força absoluta e devastadora. Mas na maior parte da trama ela esteve solitária, mesmo nos momentos compartilhados com Geralt.

Outro ponto defeituoso da trama são os diversos arcos abertos demorando a se fechar, muitas histórias fracamente se interligando, demorando demais para seus fios se cruzarem. Como se voluntariamente misturassem mundo comum e mundo especial nas diversas subtramas para soar novo, e com isso não alcançando nada além de confusão dramática.

Apesar de muito se falar no bestiário e pouco se mostrar, o espaço do realismo fantástico está bem povoado. Há quiquimora (o primeiro monstro a aparecer, e a ser morto por Geralt, na trama), graveir, súcubos, estrige (que se alimenta de fígado e coração humanos).

Há ainda lobisomem, dermoptera, vukodlak, dragões, selkiemore, manticora, djinn (gênio da lâmpada), hirikka (bicho bípede, peludo, de orelhas grandes e pontudas) e criaturas fantásticas como elfos, dríades, feiticeiros druidas e magos.

Lilith retornará?

Outra coisa que soa inépcia, embora possam ser estratégias de arcos abertos para serem explorados nas próximas temporadas, são os tropos, os espaços e personagens que aparecem uma vez e desaparecem sem explicação.

Entre os exemplos desse procedimento está a curta aparição e o desaparecimento da vila de Blaviken e a menina Marilka, o possível retorno de Lilith (deusa demoníaca da noite, enviada para exterminar a raça humana) e o destino da família real de Teméria (após Geralt desencantar a filha, fruto de incesto do rei Foltest com a irmã Adda, que havia nascido monstro – uma estrige).

Obviamente, o show runner da série (roteirista chefe), Lauren Schmidt Hissrich, e a equipe de produção e direção ajustarão os elementos e as estratégias. E aí, o espectador poderá dar uma segunda chance. 

Mesmo porque, para além das questões de narrativa, há um teor filosófico muito forte na série, baseado na sabedoria antiga, principalmente na grega, sobre destino, lugar natural, ética e poder, que merece ser considerado e apreciado pelo espectador.

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