Roberto Saviano ainda é um garotão, tendo apenas 29 anos de idade. Mas desde 2006, quando lançou Gomorra, deve ter envelhecido duas décadas interiormente. Isso porque seu livro denuncia a máfia napolitana, a Camorra, em riqueza de detalhes sórdidos e violentos.
O resultado foi uma ameaça de morte para a vida toda, que o fez se mudar da cidade natal, Nápoles, para viver em Roma, sob proteção policial 24 horas por dia.
Saviano nunca mais terá paz. A menos que a justiça de seu país consiga acabar com os 80 clãs e mais de três mil filiados da máfia, “aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores”, conforme diz a ótima reportagem de El País, escrita por Miguel Mora, replicado no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo de domingo passado (26/04).
O livro de Saviano foi traduzido para mais de 30 línguas, entre elas o português. Só na Itália, já vendeu 2 milhões de exemplares, e no Brasil, quase 40 mil. Virou filme e escancarou ainda mais a técnica de matar e comandar o crime da Camorra. A imprensa ajudou a espalhar o caso, apoiando-se na palavra do jovem corajoso, nascido na mesma região da máfia.
Mas os mafiosos não gostaram de ver sua imagem de inofensivos e até de bons moços ser estraçalhada pela pena de Saviano. Nem os mafiosos, nem boa parte da população mais pobre, os jovens que muitas vezes se tornam mão-de-obra da Camorra, porque lhes oferece dinheiro fácil, porque não há outras oportunidades de trabalho. “Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra e abandonado por seus amigos”, diz a reportagem.
A vida do jovem jornalista mudou radicalmente. “Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (...). E Saviano se culpa por tudo isso.”
Antes do livro, Saviano tinha um futuro brilhante. Agora, o que vê à sua frente é a possibilidade da morte a qualquer hora. Provavelmente, o que os mafiosos esperam para cumprir a promessa de matá-lo é o silêncio das ameaças. Saviano sabe disso.
Enxergando coisas que escapam a outros
Formado em filosofia e com uma grande capacidade de articular ideias e fatos, Saviano sabe que é um mártir vivo da palavra. Sabe que o que escreveu atingiu a fundo o coração da máfia e vai permanecer como um registro indelével do mal. E por isso mesmo é consciente de seu destino. “Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo”, diz ele a Mora.
Sua análise sobre a palavra escrita também é arguta. “Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas.”
Por causa de sua condição de protegido da Justiça, fez amigos entre os homens da lei. Aliás, segundo ele mesmo, seus amigos mais próximos são os cinco guardas que fazem sua proteção. Mas há também os de alta patente, como o general Gaetano Marucchia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles, homem afável, culto e cortês, segundo a descrição de Mora.
O depoimento do general Marucchia sobre Saviano revela a razão do alcance de Gomorra:
“É um jovem brilhante, inteligentíssimo, sabe manejar as informações com enorme visão, analisando o presente e prevendo o futuro. Seu grande talento para escrever lhe permitiu fazer esse livro, baseado no estudo analítico do fenômeno e em seu grande conhecimento do terreno. Sabe enxergar coisas que escapam a outros.”
Fatidicamente, Saviano agora enxerga um futuro negro. Dificilmente a máfia vai deixá-lo respirar com a naturalidade da vida cotidiana. Como diz Mora, o autor de Gomorra terá de viver sempre “agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.”
Trecho da entrevista
Roberto Saviano: Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafisoso da Camorra] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem – virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policias militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.
Pergunta: O senhor encontra amigos em casa?
RS: Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...
Pergunta: A normalidade se torna absurda.
RS: Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.
Pergunta: E quais autores o ajudaram?
RS: Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82]... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.
Pergunta: Quando decidiu ser escritor?
RS: Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue - você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.
A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A “Anábasis” de Xenofonte se parece comigo.
Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: “Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas”.
Pergunta: O senhor pensa muito em sua própria morte?
RS: Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas. Sei que me farão pagar - está escrito. Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo.
A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.
Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade.
Pergunta: Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.
RS: Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.
Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.