O mundo da leitura é sempre um desdobramento. Quanto mais se lê, mais se descobre a leitura dos outros, o caminho percorrido por determinadas pessoas, autores, filósofos, poetas, romancistas. Dos menores aos centenários.
É a floresta do conhecimento diante do leitor, que ás vezes caminha apenas ao lado dela, mas há muitos que adentram a espessa mata, se perde, se acha, abre caminhos, refaz picadas, e assim segue a jornada de prazer e arduidade.
Um sujeito bem intencionado, mas desavisado, corre o risco de ver a máxima usada por Maquiavel, em O Príncipe, como um pensamento original do gênio florentino. “O povo é mais propenso ao mal do que ao bem”. É só ler o Antigo Testamento – aliás, ali está a fonte de parte considerável da cultura ocidental; a outra sedimenta-se na Grécia, ou melhor, no Mediterrâneo – e verá a face hereditária da condição humana.
Quando Moisés já estava a caminho da Terra Prometida e parou no Monte Sinai para falar com Deus, o povo de Israel ficou no pé da montanha, acompanhado de Arão, o orador da turma, irmão de Moisés.
O fato é que o sábio israelita demorava demais lá em cima, e o povo já se impacientava cá embaixo. Foi quando o rebanho de dura cerviz reclamou para Arão, dizendo que Deus não podia fazer aquilo com eles, que deveria tê-los deixado sofrendo na escravidão do Egito, que ninguém merece, que o deserto é assaz penoso. O povo encheu tanto o saco de Arão que este resolveu fazer um bezerro de ouro para ser adorado.
Resultado: Deus ficou furioso. Moisés suou para acalmar a fúria divina, e ao descer deu um esporro considerável em seu irmão. “Que te fez este povo, que trouxeste sobre ele tamanho pecado?”, pergunta, indignado. “Tu sabes que o povo é propenso para o mal”, replica Arão.
Frases e falas que viram títulos, máximas que viram versos, trechos alhures que se tornam canções populares, e aí, para descobrir a fonte é preciso um mergulho na arquegenealogia do saber. Do Manifesto comunista, de Marx e Engels, Marshal Berman retirou a observação “Tudo que é sólido desmancha no ar” para o título de seu livro.
Alguém que não conheço (sendo eu ignorante por demais), traduziu do grego o primeiro aforismo de Hipócrates para o latim: “Ars longa, vita brevis”, “a arte é longa e a vida é breve”, que Goethe usou em seu Fausto, “Deus! Como a arte é longa/ E tão breve a vida!”, que Joseph Conrad também usou, e até Chico Buarque, numa canção, “Longa é a arte, tão breve a vida”.
Em Odisséia, Homero conta a história do triângulo amoroso entre Afrodite, seu marido, Hefesto (o gênio manco) e Ares, o deus sanguinolento, amante da voluptuosa deusa. Quando Hefesto pegou os dois na cama, genial armador, deus do fogo e das artimanhas, conhecedor de todos os nós e truques, ele prendeu Ares em correntes impossíveis de serem cortadas ou desatadas por outrem.
Os deuses não costumam se meter nos negócios de seus colegas, mas Posídon, o Sacudidor dos mares, quis ajudar Ares, e pediu pela libertação do guerreiro, sob a condição de restituir ao deus cambeta, mas valente e gênio, todos os presentes que ele havia dado à sua esposa pérfida.
Hefesto concordou em libertar Ares, mas sobre Afrodite, deixou escapar um epíteto pouco elogioso: “Pode ser bela, mas não tem vergonha”. E daí provavelmente nasceu o título da peça de Nelson Rodrigues, “Bonitinha, mas ordinária”.
Renato Russo copiou ipsis litteris Camões, e repassou um trecho das Cartas aos Coríntios, de Paulo, para compor uma deliciosa canção.
Coríntios: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine”.
Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer.”
Já Renato, todos já sabem, e cantam e choram, relembram, relêem e não se esquecem.
Cazuza fez um blues melífluo chamado Só as mães são felizes, em que diz: “Reparou na inocência cruel das criancinhas, com seus comentários desconcertantes?”. Não é absurdo dizer que tal frase é uma releitura de Nietzsche.
Em Assim Falou Zaratustra, o filósofo alemão comenta: “Gosto de estar deitado aqui, onde as crianças brincam (...). Inocentes são elas, mesmo em sua maldade”.
Há uma conotação profunda nessas duas frases, de algo que nasce e que, para crescer, não há como escapar dos primeiros passos, carregados de uma valoração perigosa, como são as crianças na sua inocência.
Cazuza também sabia das coisas.
É a floresta do conhecimento diante do leitor, que ás vezes caminha apenas ao lado dela, mas há muitos que adentram a espessa mata, se perde, se acha, abre caminhos, refaz picadas, e assim segue a jornada de prazer e arduidade.
Um sujeito bem intencionado, mas desavisado, corre o risco de ver a máxima usada por Maquiavel, em O Príncipe, como um pensamento original do gênio florentino. “O povo é mais propenso ao mal do que ao bem”. É só ler o Antigo Testamento – aliás, ali está a fonte de parte considerável da cultura ocidental; a outra sedimenta-se na Grécia, ou melhor, no Mediterrâneo – e verá a face hereditária da condição humana.
Quando Moisés já estava a caminho da Terra Prometida e parou no Monte Sinai para falar com Deus, o povo de Israel ficou no pé da montanha, acompanhado de Arão, o orador da turma, irmão de Moisés.
O fato é que o sábio israelita demorava demais lá em cima, e o povo já se impacientava cá embaixo. Foi quando o rebanho de dura cerviz reclamou para Arão, dizendo que Deus não podia fazer aquilo com eles, que deveria tê-los deixado sofrendo na escravidão do Egito, que ninguém merece, que o deserto é assaz penoso. O povo encheu tanto o saco de Arão que este resolveu fazer um bezerro de ouro para ser adorado.
Resultado: Deus ficou furioso. Moisés suou para acalmar a fúria divina, e ao descer deu um esporro considerável em seu irmão. “Que te fez este povo, que trouxeste sobre ele tamanho pecado?”, pergunta, indignado. “Tu sabes que o povo é propenso para o mal”, replica Arão.
Frases e falas que viram títulos, máximas que viram versos, trechos alhures que se tornam canções populares, e aí, para descobrir a fonte é preciso um mergulho na arquegenealogia do saber. Do Manifesto comunista, de Marx e Engels, Marshal Berman retirou a observação “Tudo que é sólido desmancha no ar” para o título de seu livro.
Alguém que não conheço (sendo eu ignorante por demais), traduziu do grego o primeiro aforismo de Hipócrates para o latim: “Ars longa, vita brevis”, “a arte é longa e a vida é breve”, que Goethe usou em seu Fausto, “Deus! Como a arte é longa/ E tão breve a vida!”, que Joseph Conrad também usou, e até Chico Buarque, numa canção, “Longa é a arte, tão breve a vida”.
Em Odisséia, Homero conta a história do triângulo amoroso entre Afrodite, seu marido, Hefesto (o gênio manco) e Ares, o deus sanguinolento, amante da voluptuosa deusa. Quando Hefesto pegou os dois na cama, genial armador, deus do fogo e das artimanhas, conhecedor de todos os nós e truques, ele prendeu Ares em correntes impossíveis de serem cortadas ou desatadas por outrem.
Os deuses não costumam se meter nos negócios de seus colegas, mas Posídon, o Sacudidor dos mares, quis ajudar Ares, e pediu pela libertação do guerreiro, sob a condição de restituir ao deus cambeta, mas valente e gênio, todos os presentes que ele havia dado à sua esposa pérfida.
Hefesto concordou em libertar Ares, mas sobre Afrodite, deixou escapar um epíteto pouco elogioso: “Pode ser bela, mas não tem vergonha”. E daí provavelmente nasceu o título da peça de Nelson Rodrigues, “Bonitinha, mas ordinária”.
Renato Russo copiou ipsis litteris Camões, e repassou um trecho das Cartas aos Coríntios, de Paulo, para compor uma deliciosa canção.
Coríntios: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine”.
Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer.”
Já Renato, todos já sabem, e cantam e choram, relembram, relêem e não se esquecem.
Cazuza fez um blues melífluo chamado Só as mães são felizes, em que diz: “Reparou na inocência cruel das criancinhas, com seus comentários desconcertantes?”. Não é absurdo dizer que tal frase é uma releitura de Nietzsche.
Em Assim Falou Zaratustra, o filósofo alemão comenta: “Gosto de estar deitado aqui, onde as crianças brincam (...). Inocentes são elas, mesmo em sua maldade”.
Há uma conotação profunda nessas duas frases, de algo que nasce e que, para crescer, não há como escapar dos primeiros passos, carregados de uma valoração perigosa, como são as crianças na sua inocência.
Cazuza também sabia das coisas.
Ler é isso. É retomar o fio da meada e mandar ver, até que se produza algo diferente. Mas que o autor nunca se esqueça de que a criação deve estar amarrada em alguma solidez.
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