No documentário homônimo sobre Vinicius de Moraes, Chico Buarque, ao depor sobre o amigo e parceiro, embargou a voz. Na sala de exibição ouviam-se suspiros de homens e mulheres, e eu, entusiasta da poesia de Vinícius, também chorei tacitamente. Mas é essa a intenção do diretor Miguel Faria Jr., emocionar o público, tal como fazia Vinícius em sua obra poética e musical, e até nas várias crônicas distribuídas pelos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.
Numa dessas crônicas, que pode ser lida no livro Para viver um grande amor, totalmente dedicado à Lucinha Proença, sua quarta mulher e grande paixão, ele fala do instante – termo até hoje entendido por poucos, porque embora Vinícius seja um poeta popular, considerado menor pela crítica, para compreender o conceito de instante na profundidade vivida por ele é preciso ler Platão (Parmênides), Pascal e Kierkeggard, no mínimo, e deixar de associar o nome do poeta aos românticos –: “Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci”. Quisera dar à sua amada vários instantes e situações temporais, o oceano de onde ele contemplava o espaço e tudo que há nele, inclusive “a placenta do infinito”.
Para Gilberto Gil, Vinicius trabalhava no cerne do afeto. E foi assim que o poeta se aventurou em nove casamentos e numa dúzia de affairs que se construíam pelas beiradas da afetividade. O filme de Faria Jr. vende bem a idéia de que Vinícius tencionava viver na alegria e no prazer da vida. Foi ele próprio, o poeta do amor efemeramente eterno, quem disse que a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não. Mas foi ele também, que ao falar do samba, identificou a tristeza indelével no coração das pessoas. Foi ele que num poema-crônica, minúsculo, efêmero, disse a um passarinho: “O que veio fazer na minha janela, meter o nariz? Se foi por um verso, não sou mais poeta, ando tão feliz!”. Ser poeta era ser triste, e ele vivia a alegria dentro da tristeza, e ainda dizia que era melhor viver do que ser feliz.
Ou seja, viver para Vinícius era mais do que ser feliz, era estar no olho do furacão das contradições humanas. Viver para ele era amar, acima de tudo, ainda que o amor doesse, e dói, porque fora do amor há um espaço vazio, e no fim do amor está a solidão. E amar a todos. Numa de suas cartas, presente na coletânea organizada por Ruy Castro, ele traça sua condição humana, a regra de sua própria vida, que ele mesmo diz ser regra que não é regra. "Não é nada senão um uso poético da minha vida. Só andar na ponta dos pés. Só ser delicado. Só castigar a si (sic) próprio. Só aceitar o inaceitável. Só criar em alegria. Etc., e sobretudo: só ser íntimo."
Sobre Vinícius, sou mais ou menos como Menocchio sobre o universo (aquele personagem de O queijo os vermes, que queria impressionar reis e papas), tenho muito a dizer: mas não há tempo, e é tudo muito efêmero. Veja o documentário e chore. Se não chorar, não valeu. Veja de novo.
Uma última coisa. Se considerarmos as palavras de Drummond, clamando a todos o seu sentimento, explodindo seu vigor poético e bradando que seu coração é mais vasto que o mundo, para dez anos depois se redimir e dizer “não, meu coração não é maior que o mundo./ É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores”. Se observarmos o que há de profundo na reflexão de Affonso Romano de Sant’Anna, ao se descobrir finito dentro de uma vastidão que igualmente fenece, que demora mas finda, se considerarmos tudo isso, Vinícius de Moraes tinha razão: é bom viver e amar “dentro da eternidade e a cada instante”. E só.
Uma segunda última coisa: Para Lucinha Proença, entre tantas palavras, ele dedicou o belíssimo Soneto do amor como um rio. Se ainda não leu, leia. Se já, não custa nada ler de novo.
Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.
Este amor que surgiu inesperado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.
Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo
E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo ...
Vinícius de Moraes (113 – 1980), poema escrito em Montevidéu, 1959.
Um comentário:
Que texto lindo! Parabéns!
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