Um livro competente por um aspecto nem sempre o é por outro. Veja o caso de Humana, demasiado humana, biografia de Lou Andreas-Salomé escrita por Luzilá Gonçalves Ferreira. Trata-se de um belíssimo trabalho acerca da vida dessa russa encantadora, intelectual de traços fortes, autora do interessante Nietzsche em suas obras. Já no que diz respeito a comentários de filosofia da linguagem na obra de Luzilá, a biógrafa deixa um pouco a desejar.
Ela comete uma desatenção crítica ao falar de aforismos. Sobre os dias em que Lou passou numa cidade alemã chamada Stibbe, por exemplo, e lá escreveu uma série desse tipo de texto, Luizilá comenta: “Esses aforismos estão reunidos sob o título de Livro de Stibbe (...). Algumas vezes a afirmação do aforismo escrito por ela é reescrita e transformada em seu contrário [por outra pessoa], como se corrigida, numa espécie de censura à sua autora.”
Ainda mais adiante, faz uma relação dos aforismos de Lou com o seu contrário escrito por Rée ou por Nietzsche: “‘Toda felicidade morre dela própria’ (Rée)”. “‘Toda felicidade sobrevive a ela própria’ (Lou)”. “‘O espírito nem sempre é obtuso’”. “[Os espíritos penetrantes freqüentemente são pobres, e uma grande riqueza de espírito se encontra às vezes entre pessoas obtusas]”. E assim por diante.
Acontece que esse tipo de exercício está dentro da lógica do aforismo, e muita gente faz isso. Não é correção, não é censura, nem uma simples brincadeira, joguetinho de palavras. No livro Sobre literatura, Umberto Eco faz uma análise sobre aforismos, e cita o italiano Pitigrilli, intelectual do começo do século XX, autor de Dizionario anti-ballistico, em que há vários desses textos. Eco enumera alguns deles feitos por Pitigrilli, e vai além: diz que “muitos aforismos brilhantes podem ser invertidos sem perder a força”.
Em seguida, demonstra como funciona a inversão:
“Muitos desprezam a riqueza mas poucos a sabem distribuir”;
“Muitos sabem distribuir a riqueza, mas poucos a desprezam”.
“A história nada mais é que uma aventura da liberdade”;
“A liberdade nada mais é que uma aventura da história”.
Ou seja, as anotações de aforismos com seus contrários, verificados por Luzilá, da maneira como estavam escritos, com certeza não eram uma simples brincadeira, nem correção. Era um exercício de sua lógica. Segundo Eco, a essência do aforismo se diferencia do paradoxo e da máxima, por ser esta mais longa e aquele impossível de ter seu contrário.
2 comentários:
não por esse, mas por todos os conteúdos, esse blog é muito culto!
maravilha!
Muito obrigado, Nunez!
Abraço!
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