Quando Marcelo Gleiser lançou A dança do universo, em 2001, ainda seguia a proposição segundo a qual tudo que existe no cosmo é fruto de uma perfeição incontestável, uma arquitetura simétrica atrás da qual todos estavam e estão até hoje. Mas logo em seguida, o físico brasileiro, que construiu toda a sua carreira nos Estados Unidos e na Inglaterra, começou a mudar de ideia.
Este ano, ele lançou Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza (Record, 2010, 366 páginas), livro que explica passo a passo as razões porque o Universo e, consequentemente, toda a matéria existente, até mesmo a vida na terra, não pode ser fruto da simetria tão buscada nos mínimos detalhes pela ciência.
Em Criação Imperfeita, Gleiser repassa um conhecimento gigantesco da astronomia desde seus primórdios até os dias de hoje para mostrar como os cientistas traçaram o conhecimento cosmológico sempre se baseando na linha invisível de Deus e como estão todos equivocados neste sentido. Ninguém, de Pitágoras a Einstein, salvo raras exceções, como Louis Pasteur, nega a criação de um Universo perfeito, simétrico.
Todas as pesquisas perseguem o achado que demonstraria a tese da simetria universal, em que tudo, das partículas mais elementares até a complexidade da inteligência humana, estaria simetricamente ligado a partir de uma origem comum. Esta ‘origem comum’ é o que muitos chamam de dedo de Deus, a chave para o acesso à mente de Deus. Mas, na verdade, diz Gleiser, esta busca pela explicação da simetria é quixotesca, desperdício de energia, de dinheiro e de tempo.
De acordo com Gleiser, os cientistas querem descobrir um mundo perfeito porque não suportam a ideia da imperfeição, da assimetria do Universo. E neste caso, a ciência segue um modelo divino da cosmologia. Para a maior parte das religiões, os deuses criaram o mundo. Não é diferente no pensamento religioso da chamada civilização Judaico-Cristã. Neste caso, um só Deus, Jeová, criou o universo, tão perfeito quanto Ele. É a fé monoteísta.
Os cientistas ateus, claro, negam a existência deste Deus, mas procuram respostas da perfeição do Universo nas leis da física. Esta busca é chamada de Teoria Final, ou Teoria do Campo Unificado. Haveria uma lei da física que explicaria passo a passo, simetricamente, a criação do Universo inteiro, com cada pedrinha se encaixando na outra, como luva na mão.
A pedrinha, neste caso, seria uma partícula elementar a partir da qual todas as partículas estariam ligadas de alguma forma, uma partícula tão polivalente que seria capaz de se tornar outras partículas, que se aglomeram e formam moléculas, gases e matérias. Todos os campos de força (o eletromagnetismo, a gravidade, a força nuclear forte e a força nuclear fraca) estariam ligados a ela.
Mas tal partícula nunca foi descoberta. Provavelmente não existe, diz Gleiser. No entanto, há muitas buscas, e a mais recente e mais famosa é a busca pelo bóson de Higgs, “a partícula responsável por dar massa a todas as partículas de matéria e de força”. Tudo isso é sonho em vão. “A Teoria Final é uma construção da mente humana, um mito monoteísta”, diz Gleiser.
Espelho quebrado
O espetacular no livro de Gleiser é sua recusa em acreditar em tudo que os mais geniais estudiosos da cosmologia e da física de partículas dizem. E ele faz isso usando as armas deles, quer dizer, apropriando-se dos estudos mais atuais dos próprios ‘simetristas’ que apontam para os fenômenos imperfeitos da criação, mas que os próprios estudiosos não acreditam, sempre levantando hipóteses belas, no entanto, improváveis.
Segundo Gleiser, esta insistência em querer descobrir um Universo perfeito é porque os cientistas não suportam a ideia de que o mundo é torto. Eles não aceitam o fato de que tudo que existe pode ser fruto de acidentes e imperfeições. Além disso, a assimetria tira o ideal de beleza que há nas teorias físicas que formam a Teoria do Campo Unificado.
No ambiente científico dominado pelos senhores da razão pura, da verdade absoluta, em que a palavra de ordem perfeição, a assimetria incomoda. Gleiser, no entanto, é categórico: “O fim de um certo modo de se fazer ciência se faz necessário, uma ciência que projeta conceitos divinos de ordem e simetria num mundo cheio de assimetrias e imperfeições.”
Há beleza na imperfeição do Universo, diz Gleiser. Somos “acidentes imperfeitos da criação”. Somos “agregados raros de átomos”. O universo é assimétrico e “a natureza usa um espelho quebrado”. Mas, apesar disso, ou por isso mesmo, há uma beleza fulgurante na existência. Apesar disso, ou por isso mesmo, somos especiais demais, diz Gleiser.
Cuidadosamente dividido em capítulos curtos, Criação Imperfeita é uma aventura pelas bandas mais incríveis do Universo. Apesar das densas teorias discutidas no livro, não há enfado, nem dificuldade de compreensão, porque Gleiser soube lidar com as palavras. Neste sentido, Gleiser é tão brilhante quanto Richard Dawkins, e muito mais diplomático do que este.
Dawkins, biólogo e intelectual brilhante, grande propagador da Teoria da Evolução de Darwin, diz que Deus é um delírio e que só idiotas acreditam no fenômeno divino. Diz isso com um escancaro de ofensas e sentenças que acredita serem verdades. Gleiser, por sua vez, sugere que se Deus é um delírio, a Teoria do Campo Unificado também o é.
A diferença é que Gleiser, mais polido nas palavras, sabe lidar com o divino com mais sabedoria. Ele afasta Deus de qualquer possibilidade de explicação cosmológica. Mas faz isso com muita diplomacia. “Acusar as pessoas que acreditam em Deus de serem ignorantes, loucas ou simplesmente estúpidas, não leva a nada”, diz.
Gleiser ainda levanta uma possibilidade. Segundo ele, ridicularizar a necessidade humana de fé é “demonstrar uma profunda ignorância (ou indiferença?) do que passa pelos corações e mentes de bilhões de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do mundo.” Mesmo assim, seu livro, tal como os de Dawkins, nos joga na cara que a consciência é privilégio de poucos.
Homem culto e cientista aplicado, Gleiser cria com maestria uma espécie de passarela por onde desfilam os grandes magos da física, um por um, com o fim de montar as peças do quebra-cabeça do Universo. Pitágoras, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Maxwell, Einstein, Bohr, e um imenso time de seguidores e renovadores de teorias estão presentes e analisados em Criação Imperfeita.
Brilhante
Muitos leitores já conhecem Gleiser de sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Houve um tempo em que ele também aparecia na TV Globo, na série Poeira das Estrelas, no Fantástico. Ele nasceu em 1959, no Rio de Janeiro. Graduou-se em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e em seguida foi para a Inglaterra dar continuidade em seus estudos. Seu pós-doutorado foi feito no Instituto de Física Teórica da Universidade da Califórnia.
Atualmente mora em Dartmouth, Estados Unidos, onde é professor de Filosofia Natural e de Física e Astronomia, no Dartmouth College. Casado e pai de quatro filhos, Gleiser está entre as mentes mais brilhantes da cosmologia. Aos que acham que para ser brilhante tem de criar algo novo, a tese defendida neste livro é profunda e no mínimo inquietante, embora não seja um pensamento original. Original talvez seja a abordagem.
A teoria da imperfeição vem sendo partilhada com outros pensadores e cientistas de nível não menos elevado, como o francês Louis Pasteur, citado por Gleiser, que disse: “O Universo é assimétrico e estou persuadido de que a vida, como nós a conhecemos, é resultado direto da assimetria do Universo ou de suas consequências indiretas.”
O filósofo alemão Hans Jonas também diz que “somos um acidente da matéria”. A Arte, como um dos campos do saber humano já havia cantado essa pedra de que se pode fazer a beleza a partir de elementos grotescos, horrorosos, anormais e outras assimetrias, há pelo menos uns três séculos, saindo da esfera clássica da criação e entrando na era moderna.
Já Gleiser, armado de argumentos e dados científicos, afirma que “a presença de toda uma gama de imperfeições terá um papel crucial na origem e na evolução da vida”. Criação Imperfeita é um belo livro. Para mentes mais suscetíveis talvez traga um pouco de desassossego. Mas aquele que sabe reconhecer o limite de seus horizontes não enlouquece com a vastidão do Universo.
Criação Imperfeita nos sugere uma dimensão extremosa do que pode ser o mundo e a vida. Mostra-nos o Universo como um abismo de segredos que se planta diante de nossos olhos e jamais sairá, como a esfinge nunca vencida, como a luz fina rodeada de escuridão. Esta floresta de desejo de conhecer, este mar de sede de saber mais sobre o fio destecido do destino humano, do fado da terra, nosso único lar até o momento, é a deliciosa aventura imprensa no livro de Gleiser.
Números
13,7 bilhões
de anos: idade do Universo, segundo a Teoria do Big Bang
13 bilhões
de anos: idade
da Via Láctea
4,6 bilhões
de anos: Idade da terra
3,6 bilhões
de anos atrás: a vida começou a
surgir na Terra
1,6 bilhão
de anos: surgem os
seres multicelulares
4 milhões
de anos atrás: surgem na África os primeiros gêneros Homo
1 milhão
de anos atrás (0,02% da história da Terra): manifesta-se e a inteligência tal como se conhece hoje
380 mil
quilômetros por segundo:
é a velocidade da luz
9,5 trilhões
de quilômetros: é o que a luz percorre em um ano, distância chamada
de 1 ano-luz
65 milhões
de anos-luz: é o limite do cosmo em expansão
2,5 milhões
de anos-luz: é a distância
de Andrômeda, galáxia vizinha da Via Láctea
4,37
anos-luz: é a distância
da estrela mais próxima
do Sol, a Alfa Centauro
100 mil
anos-luz: é o diâmetro
da Via Láctea
96%
da composição material do cosmo: são desconhecidos (73% = energia escura;
23% matéria escura)
4%
da composição material restante do cosmo: Prótons e Elétrons
Desses 4%:
75%
da matéria existente conhecida no cosmo:
Hidrogênio
24%
da matéria existente conhecida no cosmo:
Hélio
1%
restante: Carbono e urânio
e os outros elementos
da tabela periódica
1 trilhão
de trilhões de átomos: presentes em um grama de matéria
12
partículas (elétron, múon, tau, 3 neutrinos e 6 quarks).
“As outras centenas detectadas em experiências são combinações ou manifestações dessas 12 partículas.”
Serviço
Título: Criação Imperfeita
Autor: Marcelo Gleiser
Editora: Record, 2010, 368 páginas
Preço: R$ 49,90
(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto)