quarta-feira, 23 de junho de 2010

Solidão e tristeza: um elogio da literatura latino-americana

Foto: Gabriel Figueroa Flores - 1984
Juan Rulfo (1918 - 1985): autor da obra prima Pedro Páramo

“— Como é que o senhor disse que se chama o povoado que se vê lá embaixo?
— Comala, senhor.
— Tem certeza de que já é Comala?
— Tenho, sim senhor.
— E por que isto parece tão triste?
— São os tempos, senhor.”
(Trecho de Pedro Páramo)


Uma vertente da literatura latino-americana rendeu muitos frutos nos últimos 50 anos. Vários escritores exploraram esse filão, vários leitores se identificaram com o tema: a solidão e a tristeza como essência da paisagem político-social em que todos se afundam. Em matizes diferentes, escritores como o peruano Manuel Scorza (1928 - 1983), o colombiano Gabriel García Márquez (1927 - ), o mexicano Ruan Rulfo (1918 – 1985) e o uruguaio Eduardo Galeano (1940 - ) se preocuparam em transferir para a ficção o peso dessa realidade. A obra deste último deixou mais marcas com um livro de pretensões sociológicas, As veias abertas da América Latina, que retrata a espoliação da riqueza do continente pelos predadores do Velho Mundo.

Mas é com Pedro Páramo, fonte da epígrafe do presente texto, que se sente a estocada maior. Rulfo escreveu este pequeno romance em 1958. Em cem páginas, o autor consegue armar e desfechar uma história densa, dramática, tendo como protagonista um rapaz chamado Juan Preciado que, quando a mãe morre, vai para uma cidadezinha chamada Comala, procurar o poderoso e violento Pedro Páramo, seu pai.

Narrado em primeira pessoa, o romance é polifônico. Juan não é o único a contar a história. Muitas vozes aparecem e somem, o que dá uma sensação de ladainha fantasmagórica, que posteriormente a trama se encarrega de revelar por quê. É assim que várias ações se sucedem, com diálogos que trazem à tona o silêncio e a indiferença, tudo milimetricamente pensado pelo escritor, com o objetivo de mostrar numa golfada de palavras o sentimento do povo.

Em certa passagem, a conversa entre duas mulheres nos dá a dimensão desse drama:

“ — Quantos pássaros você já matou na vida, Justina?
— Muitos, Suzana.
— E não ficou triste?
— Sim, Suzana.
— Então, o que é que você está esperando para morrer?
— A morte, Suzana.
— Se é só isso, já vem. Não se preocupe.”

Na visão do autor, eis o destino do homem comum: vir à terra para figurar como invisível, viver, se arrepender de ter vindo ao mundo e morrer. Rulfo é feliz em sua construção. O que se vê ao longo da trama é o tempo marcando o ambiente com o som e o cheiro da morte, envolvida em acrimônia e silêncio, medo e tristeza.

Mas por que a literatura latino-americana absorve tal sentimento, e faz dele quase um gênero? É verdade que isso está presente nas outras literaturas, mas não como uma corrente estética. Troquemos aqui o termo “tristeza” por “nostalgia”, ou seja, “estado de tristeza causado pela distância da terra natal”. E aí, pode-se traçar uma conjetura plausível.

O fato é que a nostalgia é endêmica à consciência histórica da América Latina. No Velho Mundo, esse tipo de saudade não existe tal como existe aqui, porque o povo de lá já executou seu processo migratório há milhares de anos. Depois disso, ao descobrir o Novo Mundo, a Europa enviou para um contexto geográfico diferente e longínquo seus aventureiros que há 500 anos chegaram e arrombaram tudo, rasgando a paisagem idílica que havia, se instalando feito donos do mundo e arquitetando a saudade de casa.

Nas américas, há um deslocamento impossível de ser corrigido. Os brancos, pobres ou ricos, vieram da Europa, os negros, miseráveis ou bem de vida, vieram da África, e os índios já quase não há. Dentro desse novo continente, o que diferencia a América Latina da Anglo-saxônica é a solidão. Só os daqui estão esquecidos pelo resto do mundo, e lembrados apenas como excêntricos, ou sendo levados a aparecer como tais. Foram essa solidão e essa tristeza que forçaram passagem no universo criativo de uma vertente de escritores, preocupados com o absurdo de sua realidade.

Mesmo com essa diferença entre as duas américas, existe uma tangência entre o círculo de suas culturas, que é o que vem dos negros dos Estados Unidos e do Brasil. Lá eles fazem blues, soul, gospel. Aqui, faz-se o samba. E o interessante é que quando se trata de tristeza na América Latina, talvez seja o único caso em que o Brasil se vira de frente para o resto do continente e compartilha essa dor. O samba de raiz apresenta um sentimento de saudade, um rasgo de nostalgia que não dá para não sentir.

É uma dor que está presente em todas as melodias do gênero. No carnaval ele parece animado, mas é só disfarce de alegria, como bem diz Vinícius de Moraes em seu Samba da benção: “fazer samba não é contar piada; quem faz samba assim não é de nada”, para emendar logo depois, “o samba é a tristeza que balança, e a tristeza tem sempre uma esperança (...) de um dia não ser mais triste, não”.

Mas a metáfora de maior impacto vem na frase que mais parece um chavão à toa: “o samba nasceu lá na Bahia, e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Mais do que um trocadilho, há aqui uma constatação essencial. No cerne do samba paira uma tristeza que não tem mais fim. Na raiz do samba está a escuridão, a noite que se faz dia no instante da canção realizada – em nítida contradição – para alegrar a alma, porque a “alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração”.

Ao mesmo tempo que expõe a dor da alma, essa literatura da nostalgia apresenta contraditoriamente um viés irônico, risível da própria condição humana, talvez para continuar suportando o peso da vida. O primeiro livro da pentalogia de Scorza, sobre uma revolta camponesa por causa da exploração de uma companhia mineradora norte-americana, em 1960, no Peru, retrata bem esse outro lado da moeda. Bom dia para os defuntos, de 1970, é um grito de sobrevivência, mas com humor, a começar pelo título, que é uma tradução, mas que tem a mesma carga de ironia do título em espanhol, Redoble por Rancas.

A idéia de dar bom dia a um defunto é irônica, e a imagem de alguém cumprimentando vários deles é cômica, de um riso que não quer chegar à superfície, mas que se espalha nas camadas internas da consciência. E tudo isso para não morrer na solidão dos vivos.

Na verdade, a história do país de Scorza não dá muita margem a risos. A literatura da tristeza com lufadas de ironia serve como catarse, porque senão, seria preciso encarar no percurso de seu povo, do ‘descobrimento’ até hoje, um passado de violência e desamparo, como toda a realidade da América Latina, que muda muito lentamente, tão lentamente que os versos de Affonso Romano de Sant’Anna podem servir como eco para todos, ao falar da espada de Francisco Pizarro, o espanhol ambicioso que dizimou os incas e se figurou como o primeiro espoliador do Peru: “Eu vi a espada de Pizarro/ - era fina -/ numa tarde cinzenta em Lima.// Num museu podia ser um histórico ornamento./ Mas uma gota de sangue escorria/ escorria no assoalho ainda.”

(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto em março de 2006)

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