Em 2007, o poeta, romancista e psicanalista Wesley Peres publicou dois livros:
Casa entre vértebras (Record, 224 páginas) e
Palimpsestos (UFG, 120 páginas). O primeiro até que ressoou na boca de alguns críticos. Mas o segundo, raro livro de poemas que brinca com as formas, passou em branco. Injustiça comum na literatura brasileira, principalmente quando se trata de poesia.
Pela consistência dos versos e as imagens que evoca,
Palimpsestos é um achado da recente produção literária em Goiás. São 50 poemas que versam sobre a inquietação do homem sobre sua própria natureza. Trata-se da crise existencial em que o sujeito poético se encontra deslocado. Temática vulgar na literatura contemporânea. Invulgar é a voz do autor.
O poeta busca o sentido das coisas pelo avesso, pela negação do significado gramatical da vida. Em determinado trecho, uma mulher que atravessa a crise do sujeito poético diz a ele: “‘O seu problema é chover ao contrário.’” A chuva, as águas, o vento são fenômenos constantes nos poemas, como ciclos. São elementos de passagem. Esse livro, como de qualquer jovem autor (Peres tem 34 anos), faz um exercício de amadurecimento, e esta é a razão da crise existencial configurada nos versos.
Seguindo as pegadas da inversão de sentido, vemos outras linhas como “o amor é navegar uma âncora.” Além de apontar a dimensão do amor (um sentimento profundo), o verso o coloca numa situação de imobilidade. A âncora é o esteio, aquilo que possibilita o lugar seguro, mas também pode ser a prisão, porque não permite o movimento. Pode ser a barreira no meio do caminho. Ao mesmo tempo que é bom, o amor é difícil de ser vivido. Navegar uma âncora não deve ser fácil.
Ao longo dos textos, muitas vezes minimalistas, outras, ampliando o corpo da prosa no traço do verso (prosema, definição dele, ou proemas, proesia, definição de outros poetas para técnicas similares), vemos surgir um espaço onírico, noturno, que sustenta todos os procedimentos de indagação poética, demonstrando uma situação de clausura do ser. Esse caráter do dentro, como se o sujeito poético estivesse emparedado, é muito visível. “Mesmo assim, há paredes/ dentro de cada palavra minha, estou só.”
A solidão do ser na jornada da vida. “Há um imenso ninguém em minha/ pessoa.” A vontade de cavar a linguagem para descobrir em seu cerne o sentido das coisas. “A palavra, por dentro, se veste de mim.” A configuração do nada na crise do ser. “A minha voz, círculo em para dentro,/ é o lugar mobiliado pelo silêncio.” Tudo isso é trabalhado nos poemas de Peres, não como negativismo total, mas como estranhamento, uma tentativa de se libertar da angústia da existência.
Talvez mais do que isso, ou além disso, o sujeito poético quer descobrir, esclarecer o que há dentro das coisas, na essência delas, onde há sempre a obscuridade, e também a ambiguidade, porque no esforço para enxergar nesse espaço de sombra, o que se vê é muito pouco do que se vive. E essa sensação de incompletude, sem dúvida, traz uma espécie de desconforto.
A sensação de clausura é exemplar neste outro verso: “Há uma travessia onde nada há.” O verbo ‘haver’ no sentido de ‘existir’ fecha a possibilidade de transcendência e da própria existência. Nada há, nada existe. Ou melhor, há, sim, o caos, “cuja chave é do lado de dentro.” Eis novamente o ser emparedado.
“Sou rumores”, diz o sujeito poético. E nesses rumores o que mais ecoa são palavras da ordem da sombra e do vazio, como a solidão, mas, ao mesmo tempo, são vocábulos que sugerem outras possibilidades, como o reflexo daquilo que se é, ou o espaço da crise e da reflexão: espelho, água, chuva, vento, árvores, noite, estrela, lua, sonho, insônia, café e silêncio.
Essas são palavras usuais no vocabulário de
Palimpsestos. Imagino que um dia alguém se interessará em estudar o caráter noturno desse livro. “Coleciono conchas sempre que noite – e sempre é noite.” Não é à toa que o sujeito poético não se refere ao sol, nem à palavra ‘luz’, que aparece apenas uma vez. O sol é esclarecimento, a clareza das coisas, tudo que o sujeito poético não tem. E talvez nem queira ter, embora busque. “Meu fetiche é definir, e assim me perder.”
Palimpsestos recebeu o prestígio de professores altamente capacitados na área de poesia, como James Buarque, poeta e professor do Mestrado em Teoria Literária da Universidade Federal de Goiás, que escreveu a orelha do livro e disse: “O melhor do poeta, a meu ver, é se atrever ao lugar-comum com sabor de surpresa.”
A professora Goiandira Ortiz Camargo, também da UFG, escreveu o prefácio do livro, no qual já fala em escrita peresiana. Imagino que ela tenha dito isso para prestigiar o autor, porque, na verdade, há ainda muito mais dos outros do que dele mesmo, no sentido da releitura. Afinal, o próprio título sugere essa característica, que certamente é o que há de melhor em
Palimpsestos, a formidável capacidade de ler do poeta.
Palimpsestos significa “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”, segundo o
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Tem a mesma raiz de palíndromo, que designa a palavra ou a frase que tem o mesmo significado quando lido de traz para frente. Os dois vocábulos vêm da raiz grega ‘palim’, ou seja, ‘de novo’, com repetição, em sentido inverso.
Daí o exercício de buscar o contrário das coisas, com valor de naturalidade na poesia de Peres. Mas também, eis aí a razão da raspagem do antigo para a inserção do novo olhar. Um olhar sombrio e inquieto sobre a existência, que se traduz na própria busca pela verdade do ser.
Peres é um grande leitor, e repassa aqui o sentido poético de nomes como Manoel de Barros e Guimarães Rosa, os mais visíveis nessa inscrição. O segundo, inclusive, surge na página 30, quase como uma saturação: “Nossa, o que disso escutei, haja Rosa ...” Mas há também a leitura de outros poetas, a sugestão deles marcada a ferro e fogo em muitos versos.
Nessa incursão poética, há traços de nomes como o francês Arthur Rimbaud, o austríaco Georg Trakl, o brasileiro Cruz e Sousa, e, claro, o francês Jacques Lacan, psicanalista, como o próprio Peres. Lacan foi objeto de dissertação de mestrado de Peres, na UFG, que estudou as relações icônicas da poesia de Manoel de Barros e a visão lacaniana do universo do inconsciente. Para o autor de Palimpsestos, “Lacan é bruxo porque é poeta, e os poetas sabiam do inconsciente antes mesmo de Freud.”
Num poema de título sugestivo, “Clave”, Peres lapida dois versos exemplares de como outros poetas estão presentes em sua poesia, até mesmo como o ‘outro’ em contraposição ao ‘eu’: “O corpo é um demônio que me escreve”, diz, no primeiro verso. Rimbaud, o poeta errante, também faz do corpo a inscrição de sua poesia. Como diz o professor de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Maurício Salles Vasconcelos, “integrado a um ato, o corpo, em Rimbaud, mais do que um dado de ordem temática, comparece como presença e influência sobre a escrita”, em
Rimbaud da América e outras iluminações (Estação Liberdade, 2000).
Logo abaixo, o poeta escreve: “Aranhas, móbiles do vazio.” Há uma beleza plástica angustiante nesse verso, que remete a Georg Trakl, mais do que a Rimbaud. Em versos intensos como “o silêncio próximo pensa no esquecido” e “Aranhas procuram meu coração”, Trakl representa bem o simbolismo relido por Peres, que discorre uma fileira de gestos reescrevendo, relendo a inquietação do sofrido poeta austríaco.
Nesse sentido, Peres escreveu linhas bem traklianas, como “Fala incendiada de lodo” e “É sem olhar a minha voz.” Eis aqui, uma vez mais, a escuridão, que tece o espaço poético de
Palimpsestos. É assim que o poeta tateia palavras buscando um sentido para a existência, como nos versos “Anjos são mulheres que escolheram a noite” e “Sem lua, é outra a beleza da noite.”
Em
Palimpsestos, cada ser em si é só. Soçobra nesse universo amplo de possibilidades existenciais, como no poema
Monólogo Haikai, que diz apenas “Eu”. E diz muita coisa, porque a principal característica da poesia moderna é o monólogo. Quase não há mais épicos, epopeias. Tudo gira em torno de um eu inquieto e cheio de dúvidas.
Na estrutura dessa poesia minimalista japonesa, que exige três versos (de cinco, sete e cinco sílabas), há sempre que se referir, simbólica ou metaforicamente, a uma estação do ano, para expressar pensamentos ou sentimentos. Peres não fez isso. Mas, em compensação, na palavra ‘eu’ há uma tempestade inteira, porque refere-se a todo o livro, que recorre à chuva e ao vento a todo instante.
A leitura de Palimpsestos não se esgota aqui, o que demonstra sua qualidade. O autor, ainda jovem, traz para suas páginas a experiência da psicanálise, fortemente presente no livro, principalmente no que diz respeito ao trato da linguagem e na relação do eu com o outro, no jogo entre o fora e o dentro. Exemplo desse gracejo pode ser visto no haicai à brasileira, sem nos esquecer de que em japonês ‘hai’ quer dizer ‘brincadeira’ e ‘kai’, significa ‘frase’.
“Entre aves e você
rio
anoitecendo.”
Quem não sabe diferenciar a Natureza (força bruta) da natureza humana terá dificuldades para ler esse fluxo de lágrimas que nasce do verbo rir e do substantivo rio. Aliás, há um choro permanente, uma dor existencial, característica da busca da compreensão da vida, que nasce nessa crise do sujeito poético. Nada mais é que o estopim para a busca da verdade do ser.
(Publicado originalmente no jornal
Tribuna do Planalto).