Obra-prima do escritor Mark Twain (1835 - 1910), As aventuras de Huckleberry Finn (Ática, 2002) desenha o rosto pouco lisonjeiro de uma sociedade que começava a se firmar num mundo novo: a sociedade norte-americana, escravagista, ignorante, ou simplória, violenta e cheia de elementos marginalizados, mãe de trapaceiros e pilantras de toda ordem.
O sonho americano que se vê no cinema, na literatura, nos objetos fetichizados da sociedade de consumo a partir dos anos pós-guerra, e que já está se perdendo, nasceu desse pesadelo narrado por Twain. Está ali o ambiente dentro do qual se formaria o império, dando os primeiros passos em sua revolução industrial, em alguns Estados, sem ainda ter abolido a escravidão (que seria feito em 1865).
Escrito em 1885, As aventuras de Huckleberry Finn foi ambientado bem antes, no período da infância do próprio Twain, quando ainda não haviam sido fixados na mente norte-americana os conceitos de ‘vencedor’ e ‘perdedor’. Mas isso estava sendo articulado no pensamento do filósofo inglês Herbert Spencer (1820 - 1903), que contribuiu para a criação do que seria o maior berço de psicopatas do mundo, o que é outra história
Na época de Huckleberry, o grande e único fio integrador entre sul e norte dos Estados Unidos era o rio Mississípi, cenário das aventuras do menino de 13 anos, que era órfão de mãe e tinha um pai opressor, violento e bêbado, na maior parte do tempo.
Foi para fugir desse pai que Huck desembestou numas das mais fantásticas narrativas da história da literatura mundial, recriando ao modo do gênio de Twain as características das principais ficções de aventura, como Dom Quixote, Robinson Crusoé e As mil e uma noites.
Margens
Huck esteve nas Aventuras de Tom Sawyer, romance anterior de Twain narrado em terceira pessoa, que Tom protagoniza. Mas aqui é o próprio Huckleberry Finn que registra suas peripécias. Após ganhar um bom dinheiro na companhia de Tom, ainda na outra história, e ser adotado por uma viúva, dona de um escravo chamado Jim, agora Huck começa a viver a sua própria aventura.
O pai de Huck ficou sabendo dessa história do dinheiro e o sequestrou numa tentativa desesperada de ficar com a poupança do filho. Huck consegue escapar, armando um cenário de horror, ao forjar seu próprio assassinato. Enquanto todos pensavam que o menino prodígio estava morto, ele descia numa jangada as águas do velho Mississípi.
Para ninguém descobrir seu paradeiro, só navegava à noite (ora acompanhado da luz da lua, ora enfiado na escuridão), escondendo-se durante o dia, enquanto se alimentava de frutas encontradas pelo caminho. Ao se refugiar numa ilha no meio do Mississipi (ilha Jackson), Huck encontra Jim, que também havia fugido por outras razões. E os dois seguem uma aventura de farsas e desafios até o fim.
Duas cenas
Entre as qualidades desse livro que influenciou muitos escritores no mundo inteiro, inclusive o nosso talentoso Monteiro Lobato, está a narração clara, com quadros pintados com vivacidade, às vezes bucólica, entrecortada pela realidade nua, crua, cômica e quase sempre violenta.
Um exemplo de clareza são duas cenas que se contrapõem pela posição do narrador Huckleberry, em que, numa, ele está na jangada no embalo da correnteza do rio noturno, ouvindo um grupo de homens à margem, e noutra, é ele que está em terra firme (na ilha Jackson), observando às escondidas uma expedição que saíra à procura do suposto corpo de Huck.
Primeira:
“Enfiei a canoa pelo meio dos troncos que passavam, me estendi no fundo e deixei ela ser levada pelo rio. Fiquei ali deitado, descansando e fumando meu cachimbo, olhando para o céu, sem nenhuma nuvem. O céu parece sem fundo quando a gente olha para ele desse jeito, deitado de costas numa noite de luar; nunca tinha reparado nisso antes. E como dá para ouvir de longe na água, numa noite assim! Escutei gente falando na estação da balsa. E ouvi cada palavra que eles diziam. Um homem disse que os dias estavam ficando mais comprimidos e as noites mais curtas. Outro disse que podia ser, mas que aquela ainda estava sendo bem comprida – e os dois riram, aí ele repetiu a piada e os dois riram de novo; depois acordaram um outro sujeito e contaram para ele, rindo, mas ele não achou graça nenhuma; só xingou os outros e disse para deixarem ele em paz. O primeiro sujeito disse que precisava contar aquela história para a mulher dele – ela ia gostar; mas que o outro precisava ver as piadas que ele já tinha inventado no tempo dele. Ouvi alguém dizer que já eram três da madrugada, e que esperava que não levasse ainda muito tempo para o dia amanhecer. Depois disso, a conversa foi ficando cada vez mais distante, e aí eu não conseguia mais entender as palavras, só dava para ouvir um murmúrio; e de vez em quando uma risada também, mas muito longe.”
Segunda (em que são dados tiros de canhão na água para fazer flutuar o suposto corpo de Huckleberry):
“Aos poucos a balsa foi chegando, foi chegando, e passou tão perto que dava para terem descido uma prancha e desembarcado na ilha. Estava quase todo mundo a bordo daquela balsa. Meu pai, o juiz Thatcher, Bessie Thatcher, e Jo Harper, e Tom Sawyer, e a tia Polly, e Sid e Mary, e muito mais gente. Todo mundo só falava do assassinato, mas o capitão interrompeu e disse:
‘Olhem bem; aqui é o ponto onde a correnteza passa mais perto da ilha. Talvez a água tenha trazido ele para junto da margem e ele tenha ficado preso nas plantas na beira do rio. Pelo menos é o que eu espero.’
Mas eu não estava esperando. Todos os passageiros da balsa se amontoaram junto da amurada, bem pertinho da minha cara, e ficaram bem quietos, olhando com a maior atenção. Dava para ver todo mundo com toda a clareza, mas eles não conseguiam me ver. E aí o capitão avisou:
‘Cuidado!’, e o canhão deu um tamanho tiro bem na minha frente que eu fiquei surdo com o barulho e quase cego com a fumaça, e até achei que tinha morrido. Se o canhão estivesse carregado, eles bem que iam acabar com o corpo que estavam procurando. Mas eu vi que não tinha me machucado, graças a Deus. O barco seguiu em frente e desapareceu atrás da ponta de baixo da ilha. Eu ainda escutava os estrondos de vez em quando, mas cada vez mais longe, e mais ou menos depois de uma hora parei de ouvir.”
O riso e o drama
No ambiente das aventuras de Huck Finn, o caudaloso rio, com sua gente e cidades ribeirinhas, representando o provincianismo norte-americano daquele século, Twain arma seu show, na voz do garoto Huckleberry, trazendo à tona o riso e o drama.
Mas um riso feito do trágico. O humor de Twain é marcado pela ironia e pelo sarcasmo (humor negro). Esse tom tragicômico começa na advertência do autor, que diz: “Se alguém tentar encontrar um tema nesta narrativa, será processado; se tentar encontrar uma moral, será banido; se tentar encontrar um enredo, será fuzilado.”
Ao longo da narrativa, a cara do país vai aparecendo em tom de galhofa. Huck narra sua história de forma séria, querendo fazer-nos acreditar em suas aventuras. Mas, o que vemos é o ridículo, às vezes a ingenuidade, a simplicidade, a ignorância, e, principalmente, a face má de uma sociedade a caminho.
A ignorância aparece, por exemplo, na maneira como o pai de Huckleberry o repreende por ter sido posto na escola pela viúva que o adotara, e ele ter aprendido a ler. “Eu vou ensinar essas pessoas que elas não podem meter na cabeça de um menino a ideia que ele é melhor que o pai dele, e que pode ficar melhor ainda. Eu não quero te ver nunca mais naquela escola, ouviu? A sua mãe morreu sem ter aprendido a ler e nem escrever. Ninguém da família aprendeu. Eu mesmo nunca aprendi; e aí vem você e me aparece com um rei na barriga. Eu não vou deixar – ouviu bem? Mas primeiro deixe eu ver você lendo.”
Numa das aventuras de Huck, ele ajuda uma dupla de trapaceiros a escapar do linchamento. E aí o mais jovem deles descreve seu currículo, expondo ao ridículo várias atividades, mas principalmente a de jornalista:
“De ofício, sou jornalista e impressor; mas também mexo um pouco com a venda de remédios; sou ator de teatro – especializado em tragédias, sabe?; também pratico um pouco de mesmerismo e frenologia quando dá; ainda ensino geografia nas escolas para variar; e às vezes faço conferências – sabe como é, eu faço muita coisa – quase tudo que aparecer, contanto que não seja trabalho.”
Ainda na esteira do riso, a narrativa de Huck mostra a situação dramática dos negros. Numa conversa entre ele, se passando por outro garoto, e uma dona da casa, há uma pitada de humor negro:
“‘O vapor encalhou – mas, a gente só se atrasou um pouco por causa disso. É que explodiu a cabeça de um cilindro.’
‘Meu Deus! E alguém se machucou?’
‘Não. Só matou um negro.’
‘Que sorte; porque às vezes tem gente que se machuca.’”
Em outra cena, o leitor experimenta mais uma dose desse humor e dessa realidade, que, diga-se de passagem, não era diferente da vivida pelos negros brasileiros.
“‘Quando a gente estava almoçando, você não viu um negro entrar lá levando comida?’
‘Foi.’
‘E você pensou que a comida era para quem?’
‘Para um cachorro.’
‘Eu também. Mas não era.’
‘Por quê?’
‘Porque tinha melancia.’”
2 comentários:
meu caro, gostei muito do seu artigo sobre as aventurs de hucklebarry finn, estou pensando em fazer minha monografia, comparando essa obra e menino e engenho de jose lins,estou pensando na questao de escravatura, a questao social do negro na sociedade da é poca, o que achas? em que devo me focar? profricard0@hotmail.com esse é meu e-mail se poder me ajudar serei grato.
Meu caro, é com muita vergonha que me sinto no dever de informar que não li José Lins do Rego. É claro que eu poderia mentir, trapacear, dar conselhos, correr à biblioteca pública e folhear, correr ao google e buscar resenhas de O menino do engenho, mas seria vergonhoso para minha própria consciência mentir em cima daquilo que mais amo, que é a literatura. Estou sempre para ler Lins do Rego, mas sempre caio em Graciliano Ramos. É uma falha gigantesca em minha formação de leitor, não ter lido ainda este escritor, mas sei também que não é a maior de minhas lacunas. Vivo lendo tanto e parece que cada vez mais me afasto de certos traços literários que eu já deveria ter lido. Em todo caso, se me permite, posso tatear uma possibilidade: Se é literatura comparada, talvez se você aproximar a construção dos dois persoangens principais, que são os narradores também, para, a partir daí, analisar como um e outro veem, ou se relacionam com, o negro e sua cultura, lá e cá, talvez seja interessante. O problema maior, neste caso, talvez seja o fato de serem homens de épocas diferentes. O olhar da criança narradora de Lins do Rego, portanto, é diferente do olhar da criança de Twain, não só em relação ao espaço e contexto cultural, mas também ao tempo e à dinâmica das ideias, das mentalidades. Huck via um mundo de escravos. O menino do Engenho, não. Pelo menos acho que não, se ele estiver inserido no tempo biográfico do próprio autor, que nasceu em 1901, já depois da abolição da escravatura nas Américas. Em todo caso, pode ser muito interessante, mas vai dar um trabalho dos diabos. Boa sorte!
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