Banner com as ilustrações de Molly Crabapple (capa e contracapa)
Angustiado
com o disparate entre a vida burguesa que levava em Manhattan e a situação de
miséria de seu irmão mais novo, que pulava de abrigo em abrigo na mesma cidade,
John Freeman percebeu como é difícil lidar com as desigualdades. Isso porque
ele sofria vendo Tim Freeman (portador de uma doença mental com certa
independência) viver daquele jeito.
Ao
mesmo tempo, argumenta John, não podia levar Tim para morar com ele porque a
experiência já havia sido feita e a vida dos dois virava um caos. Ademais, o
irmão caçula nunca lhe pedira abrigo, e ele, do seu lado, estava determinado a
não oferecê-lo.
Foi
dessa angústia de perceber uma cidade bipartida a partir da situação bipartida
entre seu padrão de vida e o padrão de vida do irmão que John Freeman decidiu
pedir a 27 autores que moram ou moraram em Nova York (vindos de várias partes
do mundo, como Índia, Escócia, Jamaica, México) para escreverem textos que
mostrassem a cidade dividida entre um mundo glamoroso e outro flertando com a
miséria absoluta.
O
resultado é Histórias de duas cidades: o
melhor e o pior da Nova York de hoje (Bertrand Brasil, 2016, 320 páginas,
tradução de Paulo Afonso), livro organizado por John, que assina o prefácio,
com belas ilustrações de Molly Crabapple. Os textos variam em estilo e
linguagem, indo desde relatos extraordinariamente bem escritos a contos,
memórias, colagens e reportagens.
Alguns
autores publicados no livro já são velhos conhecidos do público leitor brasileiro,
como o crítico literário Edmund White, os romancistas Dave Eggers e Johnathan
Safran Foer e o músico David Byrne. Mas nem todos com bons textos. O de White,
por exemplo, é ruim, pouco contribui para uma discussão efetiva da realidade
nova-iorquina. Em compensação, Byrne nos brinda com uma bela análise sobre a
cidade.
A
ideia do livro é brilhante. Os textos, de autores escolhidos por John, editor e escritor bem–sucedido na
grande metrópole, nos mostram uma Nova York bem real, que explora cada gota de
sangue de seus moradores mais pobres, enquanto há uma nababesca nesga de
bilionários e milionários que desfruta de um paraíso terrestre.
A
proposta de John é discutir essa desigualdade social e econômica. “As razões
que a determinam (a desigualdade) são tão complexas quanto as razões pelas
quais meu irmão foi parar em um abrigo”, diz ele, argumentando que, se isso
acontece dentro de uma família, imagina a dificuldade que é resolver o problema
numa cidade inteira como Nova York (8,5 milhões de habitantes).
Ao
longo dos textos, nos deparamos com números que ilustram a realidade
nova-iorquina. Entre 1980 e 2010, por exemplo, a classe média encolheu. O 1% do
topo (a nesga de bilionários e milionários) ficou mais rico e os 50% da base (o
exército de explorados) ficaram mais pobres.
Hoje,
“quase metade da população de Nova York vive abaixo da linha da pobreza.” O
número de suicídios entre os adolescentes vem aumentando. Cerca de 55 mil
pessoas dormem em abrigos, das quais 23 mil são crianças. É a mesma cidade que
tem o deslumbrante Central Parque com suas fileiras de museus ao redor, as
lojas mais chiques do mundo, os restaurantes com os pratos mais caros e
exuberantes do planeta, os espetáculos mais vistos, a cidade que arrasta um
séquito imenso de turistas todos os anos para conferir seu fascínio ao sol do
dia e à luz da noite.
A
disputa de espaço está cada vez mais acirrada. Os pobres estão sendo expulsos
até de lugares que durante séculos foram seus lares. Alguns bairros do
Brooklin, por exemplo, estão sofrendo o que os americanos chamam de
gentrification (gentrificação, ou seja, revitalização de uma área pobre pela
instalação de lojas caras e a construção de prédios de alto padrão). E bairros
que antes eram frequentados por milionários estão sendo tomados por
bilionários.
Encantado
Apesar
dos problemas, Nova York segue encantando e atraindo cérebros privilegiados,
que se unem aos que nascem lá. No livro organizado por John Freeman poucos são
nativos. Entre as exceções está uma jovem escritora de texto cativante e nome
difícil, Chaasadahya Jackson, hoje com 17 anos, nascida no Brooklin. Ela tinha
15 anos quando escreveu para esta coletânea, em 2014 (nos EUA o livro foi
publicado em 2015).
O
artigo de Dave Eggers, autor do emocionante relato autobiográfico Uma comovente obra de espantoso talento,
é uma apresentação ao texto de Chaasadahya.
E a enche de elogios: “Não se deve avaliar uma cidade sem consultar os jovens”,
diz ele sobre a “estudante extraordinariamente sensível”, que de fato escreve
um relato claro e amplo sobre Park Slope, um dos bairros do Brooklin que sofre
a tal gentrificação.
“Muitos
estabelecimentos novos têm surgido em todos os quarteirões, como pipoca
saltitando num micro-ondas”, diz Chaasadahya, uma garota negra, sobre seu
bairro estar sendo invadido pelos brancos milionários. As metáforas são bem
utilizadas na pena da jovem escritora. “Posso rebobinar meu cérebro como uma
fita de vídeo e me lembrar de estar caminhando até a creche com meus pais”,
escreve, e mais adiante arremata com novas imagens: “Gosto de me sentar no
quarto e contemplar o alvorecer se esfumaçar naquelas cores laranja e
rosa-sorvete.” Dave Eggers fica encantado com a descrição estilizante de
Chaasadahya.
Vários
textos surpreendem pela fluidez das palavras e ainda pelo inusitado da trama,
como o relato de Colum Mccann, No limiar das trevas, sobre seus
passeios pelos túneis de Nova York colhendo material para um romance. Nessas
andanças, ele encontra Denise, uma moradora de rua que adora receber dele
lenços de papel que ele ganha nos voos que faz frequentemente. Mas quando
decide inovar e lhe comprar lenços em caixa no supermercado, que são maiores,
ela se decepciona e fica enfurecida.
Em
outro texto, provavelmente um conto, Patrick Ryan expõe uma das facetas das almas
de Nova York, que devem aparecer aos montes, nunca se sabe, e que são de
assustar qualquer turista: “Li no jornal uma história a respeito de um
suspeito, ainda à solta, que perambulava pela cidade com uma lata de spray,
borrifando ‘água de cocô’ em bufês de comidas quentes de delicatéssens”, diz o
narrador, que é o próprio Patrick, contando sua experiência de quando chegou à
Big Apple. E água de cocô neste caso não é um erro de ortografia tal como se
costuma ler em placas de vendedores de coco nos litorais e praças de grandes
cidades no Brasil.
Dois irmãos
John
Freeman e o irmão cresceram em Utica, cidadezinha de 60 mil habitantes no
centro do Estado de Nova York. John se contenta em escrever apenas o prefácio,
mas, como já foi dito, um prefácio que expõe uma ferida familiar. “Durante todo
o tempo em que meu irmão permaneceu sem moradia, jamais o convidei para se
hospedar em minha casa nem para visitá-la. Amo meu irmão. Ele pode ser
encantador e muito engraçado; é bom e gentil com os idosos. Mesmo quando
ganhava menos de 10 mil dólares por ano, passava boas horas, todas as semanas,
ensinando inglês a pessoas pobres. É um dos indivíduos mais inteligentes que
conheço; sempre que o vejo penso em como tenho sorte de tê-lo como irmão.”
Lendo
assim, despretensiosamente, parece cruel. Aqui no Brasil, embora aconteça
exatamente isso que John Freeman narra sobre ele e o irmão, nós inventaríamos
mil desculpas e jamais exporíamos (a não ser na literatura) essas dores à luz da opinião pública. Por isso, minha admiração pelo
organizador do livro, pelo livro, pela malha de textos maravilhosos em suas
páginas.
Apesar
da doença e da luta pela sobrevivência, Tim Freeman realmente não é um coitado.
Formado em Letras, tem inclusive artigos publicados em jornais. No texto para o
livro de John, Lar, ele não toca na questão de o irmão viver bem em Manhattan,
enquanto ele se lascava nos abrigos para sem-tetos. Mas faz uma análise
perspicaz sobre a situação: “Os sem-tetos de Nova York”, diz ele, “são os refugiados
da cidade, e os abrigos são seus campos de concentração.” E lembra que “nova-iorquinos
desalojados já não tem condições de morar nos bairros em que foram criados.”
Playgrounds vibrantes
Esse
tom de expulsão, de exclusão em massa promovida por quem tem dinheiro perpassa
a crítica de todo o livro. Em seu artigo, intitulado Se o um por cento sufocar o
talento criativo de Nova York, vou embora daqui, David Byrne, que
nasceu na Escócia e se naturalizou americano aos sete anos e aos vinte e poucos
mudou-se para Nova York, diz que a cidade ainda tem uma “energia revigorante”,
mas lhe falta o “humanismo cívico e inteligente” de alguns centros europeus.
Para ele, Manhattan (onde mora no bairro do Chelsea) e Brooklin são
“playgrounds vibrantes”.
A
cidade tem riqueza, mas a distribuição desta riqueza não ocorre com a mesma
generosidade com que bilionários investem em Wall Street e atraem as mentes
mais brilhantes. Para Byrne, “a melhoria na qualidade de vida tem de ser para
todos, não para uns poucos”, avalia. Sua manifestação é tipicamente de um
democrata, e por isso faz sua mea culpa. “A maior parte de Manhattan e muitas
partes do Brooklin são hoje comunidades muradas, paraísos para os ricos (entre
os quais, devo reconhecer, eu me incluo).”
O
resultado disso é que “a parte cultural da cidade – a mente – tem sido usurpada
pelo um por cento do topo da pirâmide”, e o que fica no lugar é “uma cultura de
arrogância, soberba e elitismo”, onde o talento “se tornou recurso limitado,
exceto para Wall Street”, observa Byrne com argúcia.
Segundo
ele, a ganância está virando as costas para a criatividade na cidade que um dia
foi o celeiro dos espíritos libertários e criativos. Não só em relação a
artistas, escritores, diretores, diz o músico, mas até 2008, antes da megacrise
financeira, “qualquer atividade que pudesse empregar indivíduos criativos tinha
dificuldade para sobreviver.”
Um
exemplo que deveria ser seguido, na opinião de Byrne, é Islândia, “onde o
governo deixou que bancos malcomportados falissem e garotos talentosos se
tornassem menos interessados em mergulhar na cloaca financeira.” E finaliza seu
texto fazendo uma ameaça: Se Nova York estiver indo na direção de centros
financeiros como Hong Kong e Abu Dhabi, por exemplo, onde há museus, mas não há
cultura, “eu irei embora.”
Sentimento pulsante
O
título Histórias de duas cidades foi
inspirado no romance Um conto de duas
cidades, de Charles Dickens. A diferença é que em Dickens a comparação é
realmente entre duas cidades, em que Londres representa a segurança e a
estabilidade e Paris da Revolução Francesa aparece como o habitat do medo e da
pobreza. Aqui no Brasil, também costuma-se falar em dois brasis, pelas mesmas
razões de desigualdade tratada no livro de John Freeman.
É
um livro à altura de Nova York. Apesar das severas críticas, existe um
sentimento pulsante em suas páginas que exala esperança. É um livro que
emociona. Suas histórias inspiram. A gente sente que há alguém querendo fazer
alguma coisa pela cidade.
É
como John Freeman diz no prefácio: “Quando lemos esses textos, é difícil não
sentirmos que o que define uma cidade moderna – e talvez qualquer cidade de
hoje – são os desafios colocados diante dos que lutam para alcançar direitos
básicos e dignidade.”
Histórias de duas cidades é o tipo de livro que vale tanto para um
turista que adora ler quanto para um leitor cujo imaginário está povoado de
histórias de Nova York. Ou um cinéfilo com incontáveis imagens da delirante
capital do mundo na sua memória poética. Ou um estudioso de urbanismo. Ou um
sociólogo. Ou um antropólogo. Ou até mesmo um apreciador das narrativas
distópicas, com a diferença de que Nova York e sua disparidade - sua beleza, a
violência pulsante nas margens, a vibração opulenta no centro, e sua capacidade
de “alimentar esperanças, a servir como um farol para gente de todos os
quadrantes” - é real.
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