Ao Rei Sol, Louis XIV, que comandou a França entre os séculos XVII e XVIII, é atribuída a frase “L'État c'est moi”, “o Estado sou”, referindo-se ao seu absolutismo diante do trono francês.
Gustave Flaubert, imperador das letras no século XIX, foi acusado de corromper a moral dos franceses com seu livro Madame Bovary, em razão de o personagem principal, que dá nome ao título, ser uma adúltera.
Diziam que Flaubert tripudiava sobre a decência das mulheres francesas, todas santas e abnegadas. O romancista não pensou duas vezes e disse no tribunal: “Madame Bovary sou eu”; para que ninguém se sentisse atingido, nem com chifres nem com pudores, e o processo se enterrasse.
A mesma declaração teria feito Bento Santiago, se fosse encostado na parede quando ainda vivo, na cabeça dos leitores contemporâneos de Machado de Assis, autor de Dom Casmurro: “Capitu sou eu.” Mas quem o fez foi Dalton Trevisan, num livro de contos de 2003, que nada tem a ver com o presente texto. Aliás, a aproximação da frase com o conteúdo do livro é apenas de cunho confessional.
“Capitu sou eu”, teria dito Bentinho para explicar sua severa acusação, velada, enviesada, dissimulada, tramada com urdidura de velhaco, contra sua amada Capitu.
O leitor de hoje já sabe que o valioso nesse romance singular de Machado de Assis está na habilidade da narrativa, na tergiversação da trama, e não no fato, porque não há fatos. O que há são indícios subjetivados pela forte impressão de Bentinho junto às coisas não vistas.
Olhando bem para Bentinho, não deixando escapar as nuanças da sua fala, vemos que na composição de sua alma e sua maneira de olhar o mundo há um estranhamento. No plano psicológico, Bentinho não enxerga outra coisa, nem ninguém, a não ser a si mesmo. E é aí que reside a força da trama.
O ouvido e o olho dos outros
No primeiro capítulo lemos atentamente a explicação de Bentinho de como passou a ser chamado de Dom Casmurro por algumas pessoas. Recebera o apelido por não ter prestado atenção na leitura de poemas que um conhecido lhe fazia. O próprio Bentinho explica o significado da alcunha:
“Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.” Ou seja, casmurro, nesse sentido, é ensimesmado, aquele que tem o olhar para dentro de si mesmo e não vê o outro.
Tudo que Bentinho vê do mundo exterior de certa forma passa pelo crivo do olhar do outro. Ele, por ter os olhos voltados para a alma, só sabe de si.
O romance Dom Casmurro, publicado em 1900, conta a história de Bento Santiago (Dom Casmurro ou Bentinho), que se vê às voltas de uma suspeita de adultério de sua mulher, Capitolina, ou Capitu, com o melhor amigo dele, Escobar.
Bentinho e Capitu se conheciam desde criança. E quando começa a escrever suas memórias, concentradas nas lembranças de sua amada, é desde a infância de ambos que ele busca os traços que revelariam a construção do universo íntimo de Capitu.
É dessa suspeita que ele se alimenta, juntando pedaços de indícios contra ela, palavras sopradas por todos, inclusive pela própria Capitu.
Uma das primeiras recordações dá o tom da memória enviesada. Bentinho fica sabendo que vai para um seminário, não porque a mãe lhe diz, diretamente, mas porque ele ouve, atrás da porta, uma conversa entre sua mãe e o senhor José Dias sobre o assunto.
O papel de José Dias nessa história toda é revelador. Foi ele o primeiro a dizer para Bentinho que Capitu era uma menina pouco confiável. “Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”, diz o homem que era agregado da família abastada de nosso narrador.
Ao longo da narrativa, José Dias está sempre por perto, incutindo idéias e opiniões na alma vacilante de Bentinho. A título de comparação, José Dias se aproxima de Iago, algoz de Otelo. Na peça de Shakespeare, Iago aproveita cada fato e insinuação para criar ciladas que incriminem Desdêmona como adúltera, colocando Otelo contra sua amada.
Deus e o diabo
Mas, Bentinho não tem perfil de Otelo, e José Dias, tampouco, não se sustenta como Iago por muito tempo. Não corre pelas suas veias o sangue ruim do antagonista shakespeariano. Com mais sutileza, vemos isso em Bentinho. Este age sutilmente para construir a imagem adúltera de Capitu. Ele manipula o leitor.
Ao mesmo tempo, Bentinho tem um passado religioso, foi seminarista, quase padre, temente a Deus. É um homem que demonstra atitudes de bondade para com seus escravos, e as pessoas de modo geral gostam dele, pelo menos é o que diz sua narração.
Essas características fazem de Bentinho um personagem complexo – principalmente por tornar complexo o comportamento de Capitu – e do livro de Machado de Assis uma obra densa, flexível e aberta.
Gustave Flaubert, imperador das letras no século XIX, foi acusado de corromper a moral dos franceses com seu livro Madame Bovary, em razão de o personagem principal, que dá nome ao título, ser uma adúltera.
Diziam que Flaubert tripudiava sobre a decência das mulheres francesas, todas santas e abnegadas. O romancista não pensou duas vezes e disse no tribunal: “Madame Bovary sou eu”; para que ninguém se sentisse atingido, nem com chifres nem com pudores, e o processo se enterrasse.
A mesma declaração teria feito Bento Santiago, se fosse encostado na parede quando ainda vivo, na cabeça dos leitores contemporâneos de Machado de Assis, autor de Dom Casmurro: “Capitu sou eu.” Mas quem o fez foi Dalton Trevisan, num livro de contos de 2003, que nada tem a ver com o presente texto. Aliás, a aproximação da frase com o conteúdo do livro é apenas de cunho confessional.
“Capitu sou eu”, teria dito Bentinho para explicar sua severa acusação, velada, enviesada, dissimulada, tramada com urdidura de velhaco, contra sua amada Capitu.
O leitor de hoje já sabe que o valioso nesse romance singular de Machado de Assis está na habilidade da narrativa, na tergiversação da trama, e não no fato, porque não há fatos. O que há são indícios subjetivados pela forte impressão de Bentinho junto às coisas não vistas.
Olhando bem para Bentinho, não deixando escapar as nuanças da sua fala, vemos que na composição de sua alma e sua maneira de olhar o mundo há um estranhamento. No plano psicológico, Bentinho não enxerga outra coisa, nem ninguém, a não ser a si mesmo. E é aí que reside a força da trama.
O ouvido e o olho dos outros
No primeiro capítulo lemos atentamente a explicação de Bentinho de como passou a ser chamado de Dom Casmurro por algumas pessoas. Recebera o apelido por não ter prestado atenção na leitura de poemas que um conhecido lhe fazia. O próprio Bentinho explica o significado da alcunha:
“Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.” Ou seja, casmurro, nesse sentido, é ensimesmado, aquele que tem o olhar para dentro de si mesmo e não vê o outro.
Tudo que Bentinho vê do mundo exterior de certa forma passa pelo crivo do olhar do outro. Ele, por ter os olhos voltados para a alma, só sabe de si.
O romance Dom Casmurro, publicado em 1900, conta a história de Bento Santiago (Dom Casmurro ou Bentinho), que se vê às voltas de uma suspeita de adultério de sua mulher, Capitolina, ou Capitu, com o melhor amigo dele, Escobar.
Bentinho e Capitu se conheciam desde criança. E quando começa a escrever suas memórias, concentradas nas lembranças de sua amada, é desde a infância de ambos que ele busca os traços que revelariam a construção do universo íntimo de Capitu.
É dessa suspeita que ele se alimenta, juntando pedaços de indícios contra ela, palavras sopradas por todos, inclusive pela própria Capitu.
Uma das primeiras recordações dá o tom da memória enviesada. Bentinho fica sabendo que vai para um seminário, não porque a mãe lhe diz, diretamente, mas porque ele ouve, atrás da porta, uma conversa entre sua mãe e o senhor José Dias sobre o assunto.
O papel de José Dias nessa história toda é revelador. Foi ele o primeiro a dizer para Bentinho que Capitu era uma menina pouco confiável. “Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”, diz o homem que era agregado da família abastada de nosso narrador.
Ao longo da narrativa, José Dias está sempre por perto, incutindo idéias e opiniões na alma vacilante de Bentinho. A título de comparação, José Dias se aproxima de Iago, algoz de Otelo. Na peça de Shakespeare, Iago aproveita cada fato e insinuação para criar ciladas que incriminem Desdêmona como adúltera, colocando Otelo contra sua amada.
Deus e o diabo
Mas, Bentinho não tem perfil de Otelo, e José Dias, tampouco, não se sustenta como Iago por muito tempo. Não corre pelas suas veias o sangue ruim do antagonista shakespeariano. Com mais sutileza, vemos isso em Bentinho. Este age sutilmente para construir a imagem adúltera de Capitu. Ele manipula o leitor.
Ao mesmo tempo, Bentinho tem um passado religioso, foi seminarista, quase padre, temente a Deus. É um homem que demonstra atitudes de bondade para com seus escravos, e as pessoas de modo geral gostam dele, pelo menos é o que diz sua narração.
Essas características fazem de Bentinho um personagem complexo – principalmente por tornar complexo o comportamento de Capitu – e do livro de Machado de Assis uma obra densa, flexível e aberta.
O princípio dessa flexibilidade está no próprio nome do personagem: Bento Santiago. Ele é bento, é santo, e ao mesmo tempo é Iago. É santo e Iago numa só pessoa. É Deus e o diabo, as mesmas características que ele pretende que sejam de Capitu. “Capitu sou eu”, seria a máxima de Bentinho.
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